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O ICMBio não expressa a herança de Chico Mendes, diz Mary Allegretti

Em entrevista ao ((o))eco a antropóloga, que esteve ao lado do seringueiro durante sua luta e ainda atua pela floresta, defende uma ampla reformulação da autarquia para melhor representar o legado de Chico Mendes, assassinado há 34 anos

Fabio Pontes ·
22 de dezembro de 2022 · 2 anos atrás

A antropóloga Mary Allegretti é tida como uma das mais importantes influenciadoras intelectuais de Chico Mendes na luta dos seringueiros do Acre na defesa da manutenção da floresta em pé, durante a década de 1980. Ela viveu de perto, dentro dos seringais, toda a luta de resistência da política da ditadura militar de transformar a Amazônia em fazendas para o gado. Um dos legados desta luta foi a criação das reservas extrativistas que uniram a conservação da natureza ao modo de vida dos povos da floresta.

Graças ao engajamento de Chico Mendes, existem no país 96 reservas extrativistas, segundo o CNUC (Cadastro Nacional de Unidades de Conservação), mantido pelo Ministério do Meio Ambiente. Juntas, elas abrangem uma área de cerca de 15,7 milhões de hectares.

Durante a Semana Chico Mendes (de 15 a 22 de dezembro) Mary Allegretti, que também colaborou com o governo de transição de Luiz Inácio Lula da Silva, esteve por Rio Branco e Xapuri, onde conversou com ((o))eco. Nesta quinta-feira, 22, completam-se 34 anos do assassinato do líder seringueiro em sua casa, quando este se consolidou como uma das primeiras vozes a sair da Amazônia para o mundo em defesa da floresta. 

Foi Chico Mendes quem provou  aos bancos internacionais a relação direta entre o desmatamento e os projetos de infraestrutura, ele também foi responsável pela criação de um novo modelo de ocupação da floresta.  Mas, sua morte prematura fez com que grande parte dos entraves permanecesse e sua história fosse aos poucos apagada por quem prega um modelo desenvolvimentista da Amazônia, como o que prevaleceu no governo do presidente não reeleito, Jair Bolsonaro (PL). 

Os últimos quatro anos foram os de maiores retrocessos nessa política de proteção da floresta, com as próprias unidades de conservação não passando incólumes pela devastação. Para Allegretti, a reconstrução da política ambiental do país vai além de reestruturar órgãos do setor, como o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, o ICMBio. Ela prega que precisamos reviver os ideais defendidos pelo seringueiro, que promovia a união dos povos da floresta e a valorização do seu viver, e integrar os jovens a essa proposta. 

No caso específico do ICMBio, ela afirma, ser necessária uma redefinição ou recuperação quase existencial do propósito de criação do instituto, herança de Marina Silva – outra parceira de Chico nas lutas em defesa da floresta – em sua passagem pelo Ministério do Meio Ambiente durante o primeiro mandato de Lula (2003-2010). 

“O ICMBio perdeu, e talvez já fosse muito fraco isso antes, a identidade que o nome de Chico dá ao órgão. Ele perdeu, então ele não expressa a herança que o Chico deixou. O Instituto é muito mais a parte da conservação da biodiversidade do que a parte Chico Mendes.”, diz Allegretti. 

Chico Mendes denuncia desmatamento no Acre. Foto: Acervo da Família

((o))eco: Na década de 1980 você e outros intelectuais estiveram ao lado de Chico Mendes o auxiliando em sua luta de defesa e manutenção da floresta em pé. Desde então, já são 40 anos dessa história de resistência. O que temos hoje como resultado dessa mobilização em defesa da floresta feita por quem vive na e da floresta? 

Allegretti: Eu me surpreendo ainda hoje quando me dou conta de que uma ideia que surgiu na floresta por seringueiros tenha tido a força de se tornar uma política pública de tal dimensão que nem os moradores e nem a gente percebe a importância desta iniciativa. Mesmo durante este período crítico dos últimos anos os moradores das reservas se mantiveram em condições muito boas, e voltaram a priorizar a própria sustentação, não ficar dependentes de produtos externos e reforçar a autonomia foi surpreendente porque o número de impactados pela Covid foi muito baixo, então houve uma resiliência. Foi um teste de perceber que este modo de vida tem sua sustentação própria. E este é um elemento chave. Se não tivesse, também não permaneceria em uma área onde durante quatro anos não aconteceu nenhuma política, e no caso da Resex Chico Mendes e várias outras, que ainda sofrem com as invasões. Então a capacidade de permanência como uma proposta concreta na Amazônia é muito forte. Isso é surpreendente, acho que é um fenômeno sociológico porque já não seria possível.

Hoje tem uma situação dos filhos destes seringueiros, muitos deles, não terem mais interesse em viver na floresta, vão para as cidades. Qual o futuro dessas áreas? 

Este é um aspecto importante nesta resiliência que significa que a gente está agora numa transição geracional dentro das reservas. Agora vem um novo desafio, que significa que as novas gerações precisam se inserir neste processo de uma forma diferente das gerações anteriores porque o momento é inteiramente outro. Eles já receberam um espaço para viver, para construir um futuro. Eles precisam entrar num processo maior de qualificação apropriado às reservas extrativistas. É um desafio identificar outras formas de produção, ou seja, se os jovens que hoje vivem nas reservas desistirem de morar lá, vamos ter reservas vazias, e reservas vazias não protegem a floresta. 

Como fazer com que esses jovens continuem a viver e sobreviver da floresta, e não saiam para morar nas cidades? 

Este é um risco que a gente tem que considerar daqui para frente, que é encontrar alternativas, identificar para que estes jovens recriem o sentido. É um desafio e tanto pensar nisso, mas é uma crítica fundamental. 

Qual o desafio para a Resex Chico Mendes para os próximos anos? Como deve ser o processo a ser executado pelo governo Lula para a reconstrução da política ambiental brasileira?

Para mim, não é possível o ICMBio só recuperar o que aconteceu neste período, porque o ICMBio foi tomado por militares, os técnicos foram retirados de suas funções, houve realmente um esvaziamento. Mas não basta apenas recuperar o ICMBio nos termos anteriores. O ICMBio perdeu, e talvez fosse muito fraco isso antes, a identidade que o nome de Chico dá ao órgão. Ele perdeu, então ele não expressa a herança que o Chico deixou. O instituto é muito mais a parte da conservação da biodiversidade do que a parte Chico Mendes. Essa revisão terá que ser feita. Eu já falei isso para a Marina [Silva] nos encontros da transição para o caso de ela vir a ser a ministra [do Meio Ambiente], não sei se será. O instituto foi criado para unidades de conservação de uso sustentável e de proteção integral, só que ele passou a cuidar da conservação da biodiversidade como tema principal. Não existe uma política de desenvolvimento. Os jovens que hoje moram nas reservas têm mestrado, eles estão fazendo doutorado. Por que não são eles os gestores das reservas? 

O instituto foi criado para unidades de conservação de uso sustentável e de proteção integral, só que ele passou a cuidar da conservação da biodiversidade como tema principal. Não existe uma política de desenvolvimento. Os jovens que hoje moram nas reservas têm mestrado, eles estão fazendo doutorado. Por que não são eles os gestores das reservas? 

Mary Allegretti

O que pode ser feito com o ICMBio? 

Acho necessário chamar a atenção para a necessidade do ICMBio ser repensado e reestruturado, porque não é uma unidade de conservação pública vazia, é uma unidade onde as pessoas fazem a cogestão. Isso é um conceito muito importante que surgiu na origem, só que ainda não é aplicado. Eu acho que essa temporada de pressão sobre as reservas deixou muito aguda para os moradores a percepção de que o modelo de gestão não alcançou os objetivos originais. Ele parou no meio do caminho e isso é uma das mensagens importantes que a gente precisa passar. 

A agropecuária é o principal fator de pressão econômica sobre a Resex Chico Mendes. As poucas ou nenhuma política de valorização do extrativismo empurram as famílias para o boi. Como fazer para que a economia extrativista seja competitiva ante a pecuária? 

Ele não compete por conta própria, o extrativismo não tem condições de fazer esta competição. Mas eu acho que se o pagamento por serviços ambientais se expandirem, se organizarem como está acontecendo com a borracha, por exemplo, aqui no Acre, você tem oportunidade. Sem esta política não é possível. A política tem que reconhecer o papel dos serviços ambientais prestados. É como se fosse uma conexão que não pode ser desfeita, porque a floresta tem o serviço, e se os serviços não são reconhecidos não faz sentido, a floresta não continua existindo. Então as pessoas tendem a olhar que a castanha tem que dar resultado, o açaí já dá, mas os outros não dão. A floresta tem o serviço, mas se este valor que está junto do produto não for reconhecido, o produto em si não tem o poder de competir com a soja que está se expandindo muito. 

O que pode ou precisa ser feito para as reservas extrativistas ganharem dinheiro com os projetos de REDD (o desmatamento evitado)? 

A política econômica para as reservas extrativistas são muito mais complicadas, e por isso também que temos defendido que há oportunidade agora com os créditos do mercado de carbono, pois são áreas muito grandes, e não conseguem se manter se o valor do serviço ambiental não for recompensado. Se essa política se desenvolver, e o governo vai ter que regulamentar melhor, é uma oportunidade de a gente estar discutindo isso na reserva Chico Mendes, porque ela tem todas as características para fazer um projeto de REDD, e é uma oportunidade de a gente conseguir fazer bem feito com a regulamentação correta. É uma oportunidade que a gente tem que perseguir porque é um valor de serviço que tem um mercado. É um serviço estratégico. Essas áreas grandes você nunca vai conseguir o dinheiro que consiga compor em todas as áreas, em todas as extensões. 

Como lidar com os moradores da Resex Chico Mendes que já não têm mais o perfil de extrativistas, que já se transformaram  em pecuaristas?

A gente tem discutido isso muito em reuniões, e o que os moradores dizem é que quem vendeu a colocação (nome dado a porção destinada a cada morador em uma Resex) tem que sair. Porém, quem tem o poder maior de organizar isso são as associações de moradores, mais até do que o ICMBio, porque são elas quem podem dizer: você não pode agir desta ou daquela forma. Os moradores são vinculados à associação, que tem o poder de dizer que você não se ajusta às regras da reserva. Porém, isso não vem acontecendo porque as associações são muito frágeis, o que é um absurdo. As associações são o equivalente ao ICMBIo diante da reserva. Representam os moradores. Só que não têm dinheiro, não têm sede, não têm computadores. Não têm nada. O que é isso?  É uma política que cria uma unidade de conservação e não coloca as condições para ela se organizar. É claro que os moradores não vão bancar tudo o que uma associação precisa para fazer a cogestão. O último cadastro da Resex Chico Mendes é de 2009. Imagine! E tem moradores que se casaram e querem se estabelecer e não fazem parte do cadastro. Não tem acesso ao auxílio maternidade, não são reconhecidos, não existem.  Então é uma falha enorme, é muito crítica. Neste caso é uma reorganização, uma reestruturação.  

As associações são o equivalente ao ICMBIo diante da reserva. Representam os moradores. Só que não têm dinheiro, não têm sede, não têm computadores. Não têm nada. O que é isso?  É uma política que cria uma unidade de conservação e não coloca as condições para ela se organizar.

Mary Allegretti

Passadas mais de três décadas desde a morte de Chico Mendes, como podemos falar sobre o legado do líder seringueiro? 

Muitas pessoas me perguntam: como vocês conseguiram, durante a ditadura, criar uma política como essa, e que lição traz para o momento que vivemos? Durante a ditadura, a  gente criou uma política muito boa e neste momento eu acho que a lição principal que eu vejo é a importância das políticas públicas, a importância do Estado, e a importância de aliar as políticas à sociedade e à academia, à ciência, ao conhecimento. Eu sinto que vem nascendo um sentimento novo onde desta consciência de clima da sociedade, das forças sociais, as políticas públicas e a informação, a qualificação da informação. A experiência das reservas extrativistas, o legado do Chico é isso. É uma combinação entre sociedade, o conhecimento técnico-acadêmico, a força política. Isso foi muito pioneiro, mas é este o modelo, na força da sociedade com aquela capacidade de você saber, por exemplo, as implicações das mudanças climáticas. 

  • Fabio Pontes

    Fabio Pontes é jornalista com atuação na Amazônia, especializado nas coberturas das questões que envolvem o bioma desde 2010.

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Comentários 2

  1. Cruzes. A essência do sociocoisismo antropocêntrico querendo novamente tomar de assalto a CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE no país, essa SIM a missão principal do ICMBio – que ali’s não deveria servir para endeusamento de personalidade nenhuma. Chega dessa falácia. Todos nós que viemos do movimento dos anos 1970 sabemos perfeitamente que foi José Lutzenberger quem “inventou” a personalidade ambientalista de Chico Mendes, certamente um grande sindicalista, mas que revestiu sua militância sindical de ambiental, simplesmente. Está na hora NÃO de “voltar às origens” sindicalistas e antropocêntricas, mas sim de se transformar o ICMBio em um Instituto de Parques e Biodiversidade, onde a conservação da Natureza seja reforçada como sua missão principal.


  2. GASPAR ALENCAR diz:

    A criação do Instituto Chico Mendes, reúne um considerável numero de técnicos que por muitas décadas tiverem o anseio de se ter um órgão que cuidasse apenas das uc. Concordo contigo que a militância mudou de metodologia e o legado do Chico Mendes está presente na maioria dos servidores. A militância é outra, é a qualidade do serviço prestado a sociedade. Na minha opinião o que continua faltando é o engajamento social dos que não estão diretamente ligados no assunto. E também do modelo consumo e produção. Sem alterar as variáveis do processo, por certo continuaremos remando contra a maré. Por fim, a nossa linguagem e comunicação estão muito distantes das pessoas!