Uma das maiores preocupações com relação à pesca, tanto para pescadores quanto para ambientalistas, é garantir que as espécies exploradas tenham condições de manter populações sustentáveis no longo prazo. Na prática, isso evita a extinção de espécies e assegura a fonte de renda de quem depende da atividade pesqueira. O problema, entretanto, é que há quase uma década o Brasil sequer se dá ao trabalho de fazer a coleta e sistematização de dados estatísticos sobre a pesca nacional. O último boletim foi publicado em 2011. Ou seja, não existe informação precisa sobre quanto se pesca no Brasil. A Auditoria da Pesca no Brasil 2020, documento realizado de forma pioneira pela ONG Oceana, mapeou os 118 principais estoques pesqueiros do país. Destes, apenas 7 dispunham de avaliações atualizadas, o que representa 6% do total explorado comercialmente.
Estima-se que a produção da pesca extrativista marinha do Brasil seja algo em torno de 500 mil toneladas anuais. O cálculo, entretanto, está longe de ser preciso, justamente pela falta de informações atualizadas disponíveis.
O que se pode constatar pelos dados que existem é um declínio populacional evidente nas espécies exploradas comercialmente. A lista de fauna ameaçada produzida pelo Ministério do Meio Ambiente em 2004 (IN MMA 05/2004) trazia um total de 17 espécies de interesse comercial para pesca. Dez anos depois, na lista mais recente de espécies ameaçadas (Portaria MMA 445/2014), esse número saltou para 64, sendo que as entre elas permaneceram as 17 previamente listadas. “Ou seja, depois de 10 anos, pouco havia sido feito para reverter este cenário”, ressalta o texto do relatório.
“O panorama observado aponta um cenário de ausência de dados e informações sobre os recursos pesqueiros do país e um sistema de monitoramento da pesca claramente incapaz de gerar dados em quantidade e qualidade suficientes para embasar uma gestão pesqueira baseada em evidências científicas. A extinção dos fóruns de consulta e a ausência de transparência nos dados e nos processos decisórios também reduzem a capacidade de controle social sobre o uso comercial dos recursos pesqueiros – um bem público”, contextualiza o documento, que cita “falhas sistêmicas” na governança da pesca no país.
O lançamento da Auditoria da Pesca Brasil 2020 foi feito em evento online aberto (assista aqui) na última terça-feira (08) e contou com a participação do Secretário de Aquicultura e Pesca, Jorge Seif Jr. A apresentação dos resultados foi feita pelo diretor científico da Oceana no Brasil, o oceanógrafo Martin Dias.
De acordo com o secretário, diversos dos problemas apontados pela análise da Oceana já estão sendo trabalhados internamente pela pasta. “São problemas muito antigos da pesca. De todos os desafios propostos, o maior deles é a gente buscar o Congresso Nacional para atualizar e modernizar a Lei da Pesca [Lei nº 11.959/2009], os outros temas estão sob controle. Não que sejam fáceis, mas estamos numa frente de batalha principalmente com dados e estatísticas, com monitoramento da frota, com recadastro”, contou o Seif durante a apresentação.
“Sem dados nós não conseguiremos evoluir nenhuma das pautas apontadas e nós estamos em perfeita consonância com essas críticas”, admite Seif.
Ele acrescenta que os mapas de bordo online, ferramenta automatizada que facilita a transparência sobre dados da embarcação, já estão em fase de implementação na frota pesqueira. “Nós pegamos as principais espécies do Brasil, as mais exploradas, e as que têm as maiores frotas. Essas já estão implementadas”, afirma o secretário. “Conforme nós estamos implementando esses mapas de bordo digital, já existe um sistema que, gerido pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, que está condensando essas informações para nos dar resultados auditáveis, transparentes e publicáveis para o Brasil, para comunidade científica e para todos”, completa.
Atualmente, como destaca a Auditoria feita pela Oceana, o grau de informações disponíveis é maior para espécies migratórias, cuja avaliação e gestão são lideradas pela International Commission for the Conservation of the Atlantic Tunas (ICCAT). “Dos recursos pesqueiros cuja gestão é de competência exclusiva da autoridade pesqueira do Brasil, apenas a lagosta-vermelha (Panulirus argus) e a tainha (Mugil liza) possuem avaliações de estoque”, informa a Auditoria.
A ausência de dados impossibilita o controle e a garantia de que a atividade está sendo realizada de forma sustentável e que assegure a viabilidade populacional dos peixes explorados.
Onde há informação, a notícia não é boa. Dentre os 7 estoques pesqueiros, observados no relatório para os quais há estatísticas para avaliação, mais da metade (57%) apresenta biomassa abaixo de níveis biologicamente seguros. E 3 dos 7 (43%) sofrem com a sobrepesca, ou seja, estão sujeitos a níveis de mortalidade por pesca acima da capacidade de reposição dos estoques.
O documento também aponta o baixíssimo número de estoques – apenas 4 dos 118 analisados – que possuem parâmetros de Limites de Captura (LCs) estabelecidos. “A ausência de LCs limita a capacidade das autoridades pesqueiras em garantir que as remoções exercidas pela pesca se mantenham dentro de níveis seguros, aumentando a probabilidade de sobrepesca”, alerta o relatório.
Além disso, apenas 10 estoques, o equivalente a 8,5% do total analisado, estão incluídos dentro de Planos de Gestão, sendo 9 deles criados através de Grupos de Trabalho para espécies ameaçadas de extinção.
“O contexto indica que praticamente a totalidade dos estoques pesqueiros explorados comercialmente ao largo da costa brasileira têm suas situações biológicas desconhecidas, não possuem LCs ou regras de gestão implantadas segundo objetivos para seu uso sustentável, e carecem de uma coleção de indicadores e/ou critérios para verificar se os objetivos traçados vêm sendo alcançados”, descreve o texto elaborado pela Oceana.
Numa análise sobre 44 pescarias comerciais realizadas no Brasil, o relatório revela também que apenas metade delas possui alguma modalidade de ordenamento, como períodos de defeso, tamanhos mínimos de captura, restrições de área ou características dos petrechos de pesca. A outra metade não possui nenhum ordenamento de pesca, ou seja, na prática é como se fosse de “livre acesso”.
O diretor-geral da Oceana, o oceanógrafo Ademilson Zamboni, reforça que este é o primeiro de uma série de relatórios anuais que a organização fará a partir de metodologia baseada nas orientações da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). “O objetivo é estabelecer um referencial de informações – uma régua – para aferir a evolução, retrocessos e inflexões importantes na gestão da pesca nacional e, assim, colaborar para sua melhoria” explica Zamboni.
Pesca artesanal ainda fora do radar
Outro ponto de destaque é a invisibilidade das embarcações de pesca artesanal. O Programa Nacional de Rastreamento de Embarcações Pesqueiras por Satélite (PREPS) é obrigatório apenas para embarcações pesqueiras com comprimento igual ou superior a 15 metros. Hoje, existem apenas cerca de 30 mil embarcações cadastradas no PREPS. De acordo com o relatório, essa obrigatoriedade atinge somente 15% do universo total das embarcações de pesca brasileira. Já os Mapas de Bordo, ferramentas que também auxiliam no monitoramento, são obrigatórias para apenas 25% das pescarias.
“Mais de 80% das pescarias brasileiras são oriundas de pesca artesanal. Nós sabemos da importância social, econômica e sustentável dessas pescarias. Inclusive, com a inclusão deles, não só no monitoramento, mas no aporte de dados, e oferecendo, em contrapartida, subsídios. Como por exemplo, além do seguro defeso que já é oferecido para essa classe, também oferecer subsídios de óleo diesel. Nós estamos trabalhando nisso”, contou o Secretário da Pesca.
O estudo alerta também que 48% das pescarias brasileiras atuam em áreas onde não há estatísticas pesqueiras e que apenas 23% delas são efetivamente monitoradas.
Sobre a importância de reforçar a fiscalização, Seif foi cauteloso na sua fala. Disse que essa é uma ação que conta com a parceria do Ministério do Meio Ambiente e da Marinha do Brasil e que intenção não é “prejudicar o setor produtivo, mas impulsionar a legalização do setor (…) e até para trazer segurança jurídica pros nossos pescadores, para eles procurarem a Secretaria de Pesca, legalizarem sua embarcação, legalizarem sua pescaria, aportar dados no nosso sistema, botar o seu PREPS”.
“Sem esquecer da questão socioeconômica ambiental. Não é só que as espécies se perpetuem, mas também o pescador tem que viver. Eu entendo hoje que o pescador também é uma espécie em extinção, porque as pescarias estão se degradando, os problemas estão acontecendo, não está tendo viabilidade econômica e quando não tem viabilidade ele parte para uma pescaria ilegal, e isso aí bagunça tudo”, pontuou Jorge Seif Jr.
Caminho para soluções
O documento elaborado pela Oceana Brasil faz uma lista de recomendações que ajudariam a sanar os problemas identificados pela auditoria. A primeira delas é criar uma base sólida e moderna para a política pesqueira do Brasil. Isso inclui uma revisão da Lei nº 11.959/2009 para que ela traga definições técnicas mais precisas e deixem mais claras as diretrizes operacionais para o setor. Ainda no plano da governança, é necessário aprimorar os Planos de Gestão e os procedimentos para realizar o monitoramento da pesca.
De acordo com Zamboni, o cenário encontrado é reflexo de anos de conflitos de competência e instabilidade institucional na pasta da pesca. “Com uma Lei da Pesca vaga e carente de definições claras, de instrumentos e de responsabilidades endereçadas aos órgãos competentes, os estoques pesqueiros e a própria pesca padecem. Podemos sim encontrar soluções de curto prazo no monitoramento ou ordenamento de muitas pescarias. Mas uma mudança definitiva, que traga um sopro de modernidade a essa atividade tão importante, somente poderá ser obtida com uma revisão da Lei 11.959/2009 que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca no Brasil”, enfatiza o diretor-geral da Oceana.
Um dos maiores desafios é aumentar a disponibilidade de dados e o acesso à informação. Para sanar essas deficiências o relatório recomenda: ampliação da cobertura dos programas de monitoramento de desembarques; retomada do monitoramento a bordo das embarcações pesqueiras; ampliação do monitoramento por autodeclaração (como Mapas de Bordo) por meio de sistemas digitais, abrangendo toda a pesca embarcada; solução dos problemas existentes na normativa que regulamenta o PREPS, permitindo rastreamento de toda frota brasileira e dando visibilidade aos dados em plataforma global, como o Global Fishing Watch; criação de uma estrutura de Estado estável, responsável por centralizar e dar ampla divulgação aos dados de estatística e monitoramento da pesca; e a criação de bases de dados abertas para consulta da sociedade.
Acesse aqui na íntegra o documento Auditoria Pesca Brasil 2020
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Curioso que até uma das duas espécies citadas como bem conhecidas, a lagosta, está com o nome errado.. Panulirus argus NAO ocorre no Brasil! estudos genéticos mostraram que se trata de uma espécie diferente (78)Tourinho JL, Solé-Cava AM, Lazoski CVS. 2012. Cryptic species within the commercially most important lobster in the tropical Atlantic, the spiny lobster Panulirus argus. Marine Ecology – Progress Series 159: 1897–1906). A espécie brasileira é Panulirus meripurpuratus.
Festival de bandalheira em que todos são cúmplices. principalmente ao se varrer pra baixo do tapete o IMENSO impacto da dita pesca "artesanal", e ao se ignorar completamente a imperiosa necessidade de mais (e melhor implementadas) ÁREAS MARINHAS DE PROTEÇÃO INTEGRAL, no-take, para assegurar um mínimo de reposição dos estoques pesqueiros. Irônico que a Oceana, uma mega-ONG gringa que no resto do mundo batalha por mais áreas protegidas vigorosamente, aqui tenha virado uma espécie de apêndice desse arremedo de "gestão pesqueira", fazendo relatórios e muito lip service para os pescadores e para os maus gestores. No Brasil até ONG gringa vira carnaval.