Reportagens

Mais um ano no escuro: Brasil segue sem saber o que pesca

Deficiência de dados, de normas e de gestão caracterizam o setor pesqueiro no Brasil, alerta segunda edição da Auditoria da Pesca realizada pela ONG Oceana

Duda Menegassi ·
29 de março de 2022 · 2 anos atrás

Um ano depois da primeira análise realizada pela ONG Oceana sobre a pesca no Brasil, o cenário mudou pouco. O país segue no escuro sobre a situação de mais de 90% das espécies exploradas. Os dados levantados pela Auditoria da Pesca 2021 alertam que dos 117 estoques pesqueiros que são alvo da pesca comercial, apenas 8 possuem situação conhecida. Dentre as poucas espécies sobre as quais há informação, metade já está com a população abaixo do nível seguro do ponto de vista biológico e duas delas estão sendo exploradas em níveis acima da capacidade de reposição natural. A falta de informação sobre as outras 109 espécies marinhas exploradas comercialmente torna impossível traçar um panorama geral sobre a sobrepesca no Brasil. Isto pode levar espécies ao colapso sem que nem ao menos haja conhecimento do risco que sofrem.

“Mesmo considerando que cada espécie no Brasil possui um único estoque, o que deve ser visto como uma simplificação, chama atenção a ausência de avaliações quantitativas acerca de seu status”, alerta o relatório elaborado pela Oceana. 

De acordo com o levantamento, as espécies para as quais há maior informação acerca de seu status populacional são os atuns e afins (que representam cinco das oito espécies que possuem informações), que dispõem de avaliações regulares conduzidas pela Comissão Internacional para a Conservação dos Atuns do Atlântico (ICCAT, na sigla em inglês).

As seguintes espécies de atuns e afins possuem avaliações atualizadas: bonito listrado (Katsuwonus pelamis), albacora-bandolim (Thunnus obesus), albacora-laje (Thunnus albacares), albacora-branca (Thunnus alalunga) e espadarte (Xiphias gladius).

“Para os recursos pesqueiros sob jurisdição exclusiva do governo brasileiro, o cenário segue sendo de absoluta falta de informações sobre a situação dos estoques pesqueiros, com apenas três espécies – lagosta-vermelha (Panulirus argus), tainha (Mugil liza) e corvina (Micropogomias furnieri) –, possuindo avaliações de estoque atualizadas”, alerta o relatório. A corvina foi a única espécie nova a entrar na lista, em relação à auditoria de 2020, com uma avaliação publicada em 2021.

Dentre as oito, quatro delas – tainha, albacora-bandolim, corvina e espadarte – foram avaliadas como sobrepescados, ou seja, apresentaram biomassa em patamar inferior à biomassa que produz o máximo rendimento sustentável. As quatro espécies já haviam sido identificadas como sobrepescadas desde o relatório anterior. No caso da corvina e da tainha, o quadro é mais grave. As duas espécies apresentaram níveis de mortalidade por pesca acima da capacidade de reposição natural da biomassa extraída. 

Sobre as outras 109 espécies, que incluem alguns dos principais recursos pesqueiros nacionais, como a sardinha-verdadeira, cavalinha, linguados, bagres, badejos e camarões, não existem avaliações. O que reflete “a inércia gerada pela estagnação na produção de conhecimento aplicado à gestão pesqueira ao longo das últimas duas décadas”, aponta o relatório.

Santos, São Paulo. Foto? Miguel Schincariol/AFP.

“Os resultados apresentados neste indicador devem ser observados com cautela, uma vez que, para a vasta maioria dos estoques (93%), não foi sequer possível determinar, com base nas informações disponíveis, se estes se encontram ou não sobrepescados. Desta maneira, a conclusão mais robusta que se pode tirar é a de que não existe um panorama real da situação da biomassa dos estoques pesqueiros brasileiros. A fragilidade das regras de ordenamento aqui adotadas – a maior parte delas baseadas em defesos, limitação do tamanho da frota e tamanhos mínimos de captura – mostra que é bem provável que tenhamos um quadro de sobrepesca para a maior parte dos estoques que não possuem status definido”, ressalta trecho da Auditoria 2021.

Para conter a sobrepesca, uma das soluções possíveis é estabelecer limites de captura, o que permite que a população se recupere e mantém a atividade de forma sustentável. No entanto, a medida não é adotada para quase nenhuma das espécies marinhas exploradas (4%) no Brasil. E a tainha é a única espécie, dentre as 117, que conta com a restrição de captura definida pelo próprio governo brasileiro, a partir de dados científicos. As demais espécies que possuem limites de captura, têm esses mecanismos estabelecidos por organizações internacionais.

Outro gargalo de governança é a ausência de Planos de Gestão. Apenas 9% dos estoques pesqueiros contam com o instrumento. Essa falta de planejamento para 91% das espécies exploradas impede que haja uma estratégia efetiva e de longo prazo para o setor pesqueiro no Brasil, alerta o relatório da Oceana.

Em outro aspecto do levantamento, foram avaliadas as pescarias: práticas de pesca comercial em vigor, levando em conta o método de pesca, espécies-alvo e áreas de operação. Foram avaliadas 48 pescarias, num universo de 21.051 embarcações.

Ao todo, 43 pescarias (o equivalente a 90%) possuem alguma medida de ordenamento vigente, que aborda diferentes aspectos da pescaria, como controle de esforço, limitações aos petrechos de pesca ou ao padrão operacional das embarcações, áreas de restrição de pesca e períodos críticos das espécies nos quais sua captura é proibida. Dessas, entretanto, 18 (ou 38%) são submetidas a um ordenamento apenas parcial, isto é, obedecem a medidas genéricas de controle.

“Não foram encontradas quaisquer medidas de ordenamento para outras 5 pescarias, o que significa que 10% das pescarias avaliadas neste estudo operam no regime de livre acesso”, chama atenção o relatório.

E apenas seis pescarias, dentre as 48,  apresentam obrigatoriedade de implantação de dispositivos que reduzem, em tese, a captura de todas as espécies listadas como capturas incidentais nas respectivas modalidades – quando espécies sem valor comercial acabam nas redes do setor pesqueiro e morrem em decorrência da captura. 

A auditoria destaca ainda uma concentração dos programas de estatística sobre as pescarias nas regiões Sudeste e Sul, vinculados a condicionantes de licenciamento ambiental.

Outro gargalo apontado pelo documento é que as normas de ordenamento pesqueiro são ultrapassadas e a Lei da Pesca (nº 11.959/2009) é “incapaz de promover o desenvolvimento sustentável dessa atividade, sobretudo em decorrência das fragilidades nas suas definições, da ausência de princípios importantes e pela não definição de atribuições e responsabilidades da autoridade pesqueira, gerando um quadro de instabilidade”, explica a ONG. 

“O Brasil continua atrasado tanto no desenvolvimento quanto na implementação de políticas públicas de pesca sustentável, com elevado risco de que estoques de espécies importantes não suportem a exploração nos moldes atuais”, alerta texto da Oceana.  

No relatório são avaliados 22 indicadores de desempenho, os mesmos aplicados na avaliação feita em 2020 pela ONG, quando foi publicada a primeira auditoria. “Ao publicar regularmente sua Auditoria, a Oceana busca facilitar o acompanhamento da trajetória da pesca no Brasil, identificando avanços rumo às melhores práticas de gestão ou retrocessos”, explica o diretor-geral da Oceana no Brasil, Ademilson Zamboni em trecho do relatório. 

“Quando olhamos para o quadro de insegurança alimentar no Brasil e, por outro lado, para o enorme potencial de produção dos chamados  ‘alimentos azuis’, encontramos um cenário de alto risco, resultado da precariedade do ordenamento da pesca no país, que não só deixou de evoluir nos últimos anos, mas ainda regrediu em alguns aspectos, como na transparência e no ordenamento pesqueiro”, avalia o diretor científico da Oceana Brasil, Martin Dias.  

De acordo com Martin, “sem uma modernização da política pesqueira nacional, a tendência é seguir com pequenos avanços intercalados por grandes retrocessos, perpetuando um ciclo vicioso que é prejudicial tanto sob a ótica econômico-social quanto ambiental”.

O diretor explica que a situação é ainda mais preocupante nas regiões Norte e Nordeste, que além de apresentarem maiores deficiências no ordenamento e monitoramento da pesca, são as que possuem populações costeiras com maior dependência da atividade pesqueira, seja como fonte de alimento ou como fonte de renda. 

A auditoria da Oceana destacou ainda a ausência dos fóruns de participação social de gestão pesqueira, os Comitês Permanentes de Gestão da Pesca e do Uso Sustentável dos Recursos Pesqueiros (CPGs), ainda não foram implementados.

Transparência é outro gargalo do setor, “com pouca ou quase nenhuma publicidade de dados e informações, incluindo memórias e atas de reunião dos Comitês Permanentes de Gestão, balanços da produção pesqueira nacional, bem como listas de pescadores e embarcações pesqueiras inscritas no RGP [Registro Geral da Atividade Pesqueira]” relata a auditoria.

Acesse o documento completo com a Auditoria da Pesca 2021 produzida pela Oceana.

As recomendações

No relatório, a Oceana faz também uma lista de recomendações para a gestão do setor pesqueiro. Entre elas, está a necessidade da modernização da Lei da Pesca, para incluir de forma clara e precisa a competência e a obrigatoriedade de que o órgão gestor da pesca realize avaliações de estoque periódicas e publique informações sobre a situação dos estoques. A ONG também recomenda o desenvolvimento e implementação de um programa contínuo de avaliações de estoque, com alocação de recursos para a produção de avaliações para os principais recursos pesqueiros do Brasil e a incorporação de regras que limitem as capturas de forma a respeitar a reposição natural dos estoques.

Outro destaque entre as recomendações é a instalação de fóruns de consulta e assessoramento da “Rede Pesca Brasil”; a identificação das Unidades de Gestão e a elaboração dos Planos de Gestão para pescarias e estoques pesqueiros; a retomada do Programa Nacional de Observadores de Bordo da Frota Pesqueira (Probordo); e a ampliação do monitoramento pesqueiro. 

  • Duda Menegassi

    Jornalista ambiental especializada em unidades de conservação, montanhismo e divulgação científica.

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