A febre amarela atinge primatas, tanto humanos quanto macacos. Se para hominídeos há mais de 80 anos já existe uma vacina eficiente, para bugios e micos os surtos da doença ainda são potencialmente fatais. O último deles, em 2017, reduziu em 32% a população já ameaçada de mico-leão-dourado, espécie que só ocorre no estado do Rio de Janeiro. Desde então, pesquisadores concentraram seus esforços para desenvolver uma vacina que pudesse proteger os pequenos primatas de novas epidemias de febre amarela e iniciaram, em setembro deste ano, a iniciativa pioneira de imunização dos micos.
Apesar de extinta do seu ciclo urbano, o ciclo silvestre da febre amarela nunca deixou de existir e o grande surto da doença, em 2017, acendeu o alerta dos pesquisadores envolvidos na conservação do mico-leão-dourado (Leontopithecus rosalia), espécie ameaçada de extinção restrita a uma pequena porção de Mata Atlântica do estado fluminense. A doença foi responsável por uma redução de 32,4% na população dos micos, atualmente estimada em cerca de 2.600 indivíduos. A situação foi ainda mais crítica em um dos principais refúgios do mico-leão, a Reserva Biológica de Poço das Antas, onde a população foi reduzida de 380 para apenas 33 micos. Localizada entre Casimiro de Abreu e Silva Jardim, a reserva está inserida em uma das regiões que mais sofreu com o último surto de febre amarela.
O repovoamento da Reserva Biológica é um dos objetivos do projeto de vacinação, capitaneado pela Associação Mico Leão Dourado (AMLD). A iniciativa tem uma duração prevista de 3 anos e a expectativa de vacinar pelo menos 500 micos-leões-dourados. O coordenador do projeto, Carlos Ruiz, explica que o número foi pensado para garantir uma população mínima viável que possa se recuperar e recolonizar a área, caso haja uma nova epidemia. “Mas queremos fazer mais, talvez chegar a mil animais vacinados”, acrescenta o pesquisador da AMDL.
“O projeto de vacinação tem duas partes. Primeiro nós vamos capturar e vacinar mais ou menos 150 animais. Entre um e dois meses depois, nós vamos capturá-los de novo para verificar a resposta à vacina, se eles estão imunizados. Depois disso, vamos partir para uma imunização da população, onde simplesmente é feita a captura e vacinação, sem necessidade da verificação posterior”, explica Ruiz.
O pesquisador conta que as vacinações, que começaram em setembro, ocorreram todas no município de Silva Jardim, em fragmentos de matas localizados em fazendas particulares, onde estão grupos de micos-leões que já são normalmente monitorados pela Associação. Até o momento 67 micos foram vacinados.
“A gente monitora uns 15-16 grupos sociais e cada grupo tem entre 6 e 8 micos, em média. Esses são os animais do início, vamos começar por esses. E cinco grupos vão ser levados até Poço das Antas, para repovoar a reserva, que ficou quase zerada depois da epidemia”, conta o coordenador da vacinação.
Para chegar aos 500 ou 1000 animais vacinados, Ruiz explica que as possibilidades estão em aberto, e o plano é ir sistematicamente nas regiões fazendo a captura e vacinação. Mas parte da estratégia já desenhada está em usar os micos que serão introduzidos na Reserva Biológica para garantir que os que sobreviveram por lá estão imunizados. “Esses 33 que estão em Poço das Antas, o ideal seria capturar e vacinar. Só que tem uma dificuldade enorme porque não estão em grupos consolidados e é difícil de achá-los. O que pensamos é, vamos soltar esses cinco grupos lá e aí, naturalmente, mico acha mico, e aí eles vão começar a interagir e vamos conseguir identificar onde estão esses micos para saber onde colocar nossas plataformas de captura. Eu suponho, e é uma hipótese razoável, que esses que sobreviveram em Poço das Antas foram imunizados naturalmente”
Outro desafio que a equipe está tentando resolver é a necessidade de sedar o mico para vaciná-lo. Apesar da vacina ser subcutânea, a sedação ainda é necessária para garantir que o mico fique tranquilo enquanto é vacinado. “Afinal são animais selvagens, tentam fugir”, conta Ruiz. Uma das alternativas é investir numa base móvel de vacinação, para conseguir fazer o procedimento no campo.
A elaboração da vacina
Responsável pela elaboração da vacina, o pesquisador da Fiocruz, Marcos Freire, explica que no começo da pesquisa foram consideradas três abordagens para o desenvolvimento da vacina: com o vírus inativado; com a proteína viral purificada; e com a própria vacina humana, que é feita com o vírus vivo atenuado.
Os testes iniciais foram feitos com um “primo” do mico-leão-dourado, o mico-leão-da-cara-dourada (Leontopithecus chrysomelas), espécie que ocorre no sul da Bahia. Em parceria com o Centro de Primatologia do Rio de Janeiro, os pesquisadores se debruçaram sobre os animais mantidos em cativeiro no instituto e com baixas condições de reintrodução na natureza.
“Nós decidimos que eram animais com valor genético baixo, valor ecológico, em termos de reintrodução, também baixo, portanto teria um menor risco. E tinha um grande número, quase uma centena de animais. Usamos o cara-dourada, que também é um Leontopithecus, como modelo para estudar, para não colocar em risco animais mais ameaçados, como o mico-leão-da-cara-preta, o mico-leão-preto ou o próprio mico-leão-dourado, que são animais muito mais ameaçados que o cara-dourada”, conta o pesquisador.
O resultado preliminar obtido com os cara-dourada mostrou que a vacina humana é bem tolerada pelos micos, que não apresentaram nem mesmo febre, e com a vantagem adicional de, por ser um produto já existente, possuir todo um processo de produção e controle de qualidade bem estruturado.
Com esses resultados, coube aos pesquisadores definirem a “dose ideal” para os pequenos primatas desenvolverem uma boa resposta imunológica. “O quanto de antígeno, de partícula viral viva um animal poderia receber, que seria suficiente para gerar uma proteção. Nós não desenvolvemos uma nova vacina, nós desenvolvemos um procedimento de diluição da vacina humana”, descreve Marcos.
Para comprovar a eficácia do procedimento, foi feito um segundo experimento, também com animais mantidos em cativeiro no Centro de Primatologia, mas já com três espécies de micos do gênero Leontopithecus. Além do cara-dourada, o próprio mico-leão-dourado e o mico-leão-preto (Leontopithecus chrysopygus), uma das espécies de primatas mais ameaçada do país, de ocorrência restrita ao interior do estado de São Paulo.
“Os resultados corroboraram os obtidos anteriormente com o cara-dourada. Quando apresentamos esses resultados, ainda não publicados, para o grupo da AMLD e outros, eles vislumbraram a viabilidade do projeto e começaram a correr atrás das licenças. Tivemos muita cautela em relação a ética e às autorizações dos órgãos ambientais, dos órgãos do Ministério da Saúde e da Agricultura. Todos eles se colocaram de acordo com esse processo, que é experimental com os animais de vida livre. É um estudo com um prazo determinado, número de animais determinados, não passa a ser uma rotina daqui para frente, foi aprovado como um estudo experimental”, reforça o pesquisador da Fiocruz.
A duração da “validade da vacina” não é precisa – nem mesmo entre humanos há um consenso sobre este tema –, mas Freire aposta na durabilidade da imunização nos micos, assim como existe entre as pessoas. “O estudo no Centro de Primatologia nos permitiu fazer o acompanhamento dos animais por um ano. Um ano após, nós verificamos que eles continuavam protegidos e que tinham anticorpo contra febre amarela”, conta.
Por enquanto, a vacinação está restrita e autorizada pelos órgãos competentes apenas no mico-leão-dourado, mas Freire aponta que o caminho está aberto caso haja interesse de organizações envolvidas na conservação das outras espécies de mico. “Eles teriam que discutir com os órgão ambientais, abrir um novo projeto para uso off-label dessa vacina, coisas dessa natureza. E nós estaríamos dispostos a ajudar, claro”.
“Vacinamos paralelamente três espécies de Leontopithecus e os resultados que nós obtivemos foram muito parecidos entre as espécies, mostrando a viabilidade da adoção da mesma iniciativa. Esses resultados, não publicados, mostram até o momento uma boa eficácia e segurança para as três espécies”, completa o pesquisador da Fiocruz.
A eficácia da vacinação foi comprovada também em bugios (Alouatta guariba), espécie extremamente sensível à febre amarela. Segundo o pesquisador, o estudo da vacina em bugios deve ser publicado em breve. A grande diferença dos micos para o bugio é a dificuldade da captura do macaco para fazer a imunização.
“O mico-leão-dourado é muito mais fácil de capturar. Primeiro por causa do tipo de alimentação deles, você consegue cevá-los, botar frutas e eles vêm no solo quase, é fácil pegar esses animais. Já os bugios são animais de uma dieta completamente diferente, animais que andam em copas, raramente descem, e dificilmente comem alimentos como bananas, então a captura é muito complicada. A imunização de bugios, muriquis, ela é possível, na minha opinião, porém na prática a logística para captura e aplicação da vacina é muito difícil. Porém os dados podem ser extremamente importantes para os animais mantidos em cativeiros e zoológicos”, indica Freire.
Conectividade das populações
A vacina é uma “forcinha” dada aos micos-leões-dourados para garantir sua sobrevivência diante de futuras epidemias, já que atualmente as populações do primata ainda são muito vulneráveis a doenças ou grandes desequilíbrios. A chave para garantir a resiliência da espécie, entretanto, não é a imunização e sim a conexão, e investir na conectividade da paisagem onde o primata ainda ocorre é uma das atuais prioridades da Associação Mico Leão Dourado (AMLD).
“A febre amarela é transmitida por um mosquito, então não tem como isolar a população. Então são duas opções, ou você banca a imunização natural, os animais que foram picados e sobreviveram, e aí se repovoariam com a conectividade dos habitats seria o processo de recolonização. Esse seria o cenário ideal para que as populações tenham resiliência no futuro, sem precisar de intervenção. Mas não temos essa conectividade agora, especialmente para Poço das Antas. Então vamos translocar animais e colocar em Poço das Antas, mas não vamos colocar animais não imunizados porque é como colocar micos para ficarem doentes no futuro”, explica Carlos Ruiz.
“Isso [a conectividade] está num bom caminho, até com a passagem de fauna que fizeram na BR-101 [viaduto vegetado inaugurado em agosto de 2020], os corredores florestais que estamos fazendo, as ações de reflorestamento. E a sociedade tem contribuído muito para essa consciência de preservação. Para mim as expectativas são muito boas. Estamos dando uma força aos micos agora contra uma doença que foi, inclusive, trazida ao ambiente por pessoas, e fazendo uma intervenção para dar mais chances de recuperação enquanto nós não temos o ambiente conectado que o projeto almeja para garantir a sobrevivência da espécie”, aponta o biólogo da AMLD.
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Parabéns a iniciativa. Excelente .
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