Reportagens

Protegendo as muitas faces dos manguezais brasileiros

Os manguezais são ecossistemas diversos não apenas quando encarados por uma óptica ecológica. A partir do microcosmo de projetos de conservação de manguezais em São Sebastião (SP), pode-se vislumbrar parte desta imensidão

Bruno Moraes ·
8 de fevereiro de 2022 · 3 anos atrás

“Estuário. Parte terminal de rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em suas margens se encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou subtropicais inundadas pelos movimentos das marés. Pela troca de matéria orgânica entre a água doce e a água salgada, os mangues estão entre os ecossistemas mais produtivos do mundo”.

Caso você não conheça ou se lembre do texto de onde eu peguei emprestada a citação acima, pode assumir que se trata de alguma obra acadêmica. Palavras de um livro didático ou de um artigo científico talvez. Não seria um mau chute.

Também não seria um chute bem-sucedido.

O parágrafo da nossa pequena charada foi escrito pelo compositor, poeta e também jornalista Fred Rodrigues Montenegro, e encabeça um manifesto artístico de nome “Caranguejos com Cérebro”, publicado em 1992 no Jornal do Commercio, sediado na cidade de Recife. Montenegro, muito mais conhecido pelo nome artístico Fred Zero Quatro, compôs o manifesto como um press-release, junto a outros músicos que compunham a cena do movimento “manguebeat”, como o DJ Renato L. e o icônico Chico Science.

Ao escolher abrir o primeiro documento do manguebeat com uma seção cheia de definições científicas sobre as características e potencialidades do manguezal, Zero Quatro utilizou a figura de biodiversidade e resiliência como uma metáfora para a própria cultura e modo de vida de Recife, que precisavam de “um choque rápido” para não morrer. Ao mesmo tempo, espelhou a metáfora e foi do âmbito da cultura de volta para a questão da biodiversidade: o manifesto equivale a vida e a alma da cidade de Recife à manutenção de seus rios e estuários, com atenção para a destruição e poluição extensivas das áreas de manguezal.

A história das origens do manguebeat, que completa 30 anos neste 2022, é um microcosmo a partir do qual se pode pensar a conservação de manguezais ao longo da costa brasileira. A história desta reportagem também é focada no encontro entre as esferas da cultura e da biodiversidade. E em pessoas que criam movimentos em prol da defesa de ambas.

A mulher que apresentou o manguezal à ciência

 “Se você olhar para o manguezal hoje, verá que ele é o mesmo que em 325 A.C., quando Alexandre, o Grande, e o escriba da sua frota relataram suas características lá no Oceano Índico, na desembocadura do Rio Indo… A cara do manguezal, o jeitão é o mesmo, quer ele esteja no Amapá, em Santa Catarina, nos Emirados Árabes ou no Japão”.

Através de uma videoconferência, converso com a Dra. Yara Schaeffer Novelli – professora aposentada do Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo (IO/USP) e autoridade nos estudos brasileiros sobre manguezais. Calmamente, ela continua a me explicar parte do que os manguezais ao redor do mundo têm e o que não têm em comum.

“O que variam são alguns fatores: as espécies vegetais, a amplitude da maré, o número de horas do dia, o quanto chove. Isso vai variando… Pode mudar um pouco de acordo com a pluviosidade ao longo do ano, ou o substrato. Porém, o manguezal ecossistema é o mesmo na sua índole. Ele é de índole boa, de índole maternal, eu diria”.

A Dra. Yara Novelli não se tornou uma das maiores estudiosas deste ecossistema de boa índole à toa. Carioca de nascimento, mas já enraizada em São Paulo desde os primeiros anos de pós-graduação, ela conta que foi uma conferência internacional em 1976 que levou sua atenção às particularidades dos manguezais. À época, ela já havia atuado como Oceanógrafa no IO/USP e passado à carreira de Docente. O Congresso de Oceanografia Biológica em questão ocorreu em El Salvador, pouco tempo após a conclusão de seu doutorado.

Novelli conta que lhe chamou atenção a ênfase que os pesquisadores internacionais davam à questão da perda de área e biodiversidade dos manguezais, em especial de países da América Latina e Caribe. Nestes países, a prática de instalação de piscinas de carcinicultura para criação comercial de camarões ameaçava a integridade e os processos ecológicos de manguezais ao longo da costa.

“Essas áreas de manguezal, reconhecidas como de múltiplos usos e dando sustento a muitas famílias, eram também a base das cadeias alimentares do sistema costeiro marinho, e estavam perdendo espaço”, conta a oceanógrafa, que comenta também o ângulo sociocultural da tragédia: “As pessoas estavam sendo proibidas e impedidas de atingir os locais onde pescavam e praticavam suas atividades tradicionais, além de proporcionarem seu subsídio alimentar. E isso me assustou, inclusive porque eu saía de uma pós-graduação em Oceanografia Biológica e havia feito meu mestrado e meu doutorado estudando a dinâmica populacional de bivalves marinhos. E, de repente, eu me via de frente com os manguezais sendo ameaçados! Eu disse ‘Caramba! No meu Brasil eu sei que tem manguezal. Mas nunca ouvi falar dessa importância toda!’”.

O regresso ao Brasil foi feito em meio a dúvidas sobre como estavam os manguezais no país, e sobre quanto desta importância ecológica e social existia – e quanto dela ainda estava conservada – nos litorais brasileiros. Fazendo buscas em bibliotecas, atrás de artigos científicos produzidos sobre áreas de manguezal brasileiras, Yara percebeu que nem a oceanografia biológica e nem a botânica terrestre tinham investigado a fundo a questão dos manguezais.

Junto a colegas, como a bióloga da Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (FEEMA) Norma Crud Maciel, Yara foi compilando os esparsos trabalhos sobre o manguezal que conseguiam encontrar: uma tese aqui, um relatório ali… mas sempre em volume muito distante do necessário para desvendar a rica biodiversidade e os complexos processos ecológicos e socioambientais de um ecossistema que, no Brasil, ocorre em litorais do Amapá a Santa Catarina associado aos nossos dois biomas florestais, Amazônia e Mata Atlântica. A Dra. Novelli conta que, estarrecida, perguntou a si mesma: “no meu ciclo de vida, o que me restar de anos para a frente, o que eu posso fazer para conhecer essa grande extensão?”.

Foi necessário montar grupos de estudo, fundar uma disciplina de pós-graduação, além de estabelecer metodologias de trabalho e espalhá-las entre pessoas igualmente interessadas na conservação de manguezais ao longo do Brasil. E que investiram décadas de trabalho.

Somaram-se a isso minicursos, palestras e material escrito, e aos poucos Novelli foi colaborando com a construção de uma rede brasileira de entusiastas e especialistas em manguezais. “Desse jeito, fomos conseguindo fazer o tema ficar conhecido e reconhecido como de importância: conhecer os manguezais brasileiros! Porque, nos livros-textos de escola, nos livros didáticos… Nem um parágrafo havia sobre manguezal. Tinha Mata Atlântica, tinha Floresta Amazônica, tinha Pantanal, Matas de Araucária, Caatinga, Cerrado… E Manguezal? Não tinha. E até hoje é meio difícil de encontrar nos livros-texto”, conta ela.

A Dra. Yara conta que pensava: “Se eu conseguir que, de Norte a Sul, eu possa comunicar um padrão de metodologia que seja utilizado pelos pesquisadores ao longo da costa brasileira, eu estou feliz!”.

Décadas depois, é visível que a pesquisadora alcançou esta felicidade.

O sedimento do manguezal, composto de areia que, encharcada pela água salobra, forma uma lama rica em matéria orgânica. Além de sequestrar carbono da atmosfera, esta lama também cria um ambiente fértil para o desenvolvimento dos pequenos propágulos de mangue (na imagem, com as folhas verde-claro). Foto: Guilherme Rodrigues

As muitas faces do ecossistema manguezal

Para além de sua função mais conhecida, que é a de servir como berçário para aproximadamente 70-80% das espécies de peixes com valor comercial, o manguezal também está implicado em uma série de processos importantes que podem se estender por escalas que vão do âmbito local ao planetário. É o caso do estoque e sequestro de carbono da atmosfera, que faz com que cada hectare de manguezal seja até quatro vezes mais eficiente em mitigar os efeitos da emissão de gases de efeito estufa do que uma área de floresta tropical. Da mesma forma, a destruição de áreas de manguezal – seja para criação de camarões, para extração de madeira ou para expansão imobiliária – pode liberar o carbono sequestrado no solo lamoso e causar impactos inimagináveis. Estima-se que, entre 2000 e 2015, 122 toneladas de carbono foram liberadas na atmosfera devido à perda de áreas de manguezal ao redor do planeta.

Segundo Yara Schaeffer Novelli, o manguezal é um ecossistema para o qual você não traça um limite. É um ecossistema aberto. “Onde ele começa e onde ele termina, ninguém sabe. Nem ele mesmo sabe, porque ele importa e exporta muito material”, conta a professora. “Ele importa nutrientes e exporta matéria orgânica. A exportação dos manguezais pode ser tanto em matéria orgânica particulada, dissolvida… Como pode ser em termos de ter promovido a alimentação e o abrigo para várias espécies”, complementa.

As aves que se alimentam no manguezal levam consigo matéria e energia que foram geradas ou acumuladas no ecossistema. O mesmo vale para peixes, crustáceos, caramujos, répteis e anfíbios. Levando em conta que o sedimento dos manguezais recebe matéria orgânica tanto das marés quanto dos rios, pode-se entender que esta falta de limites definidos também vale para a importação de matéria orgânica.

Arte: Julia Lima

Pode-se também entender a influência dos biomas e ecossistemas terrestres – por onde passam estes rios – nas características e na própria manutenção dos manguezais. O que acontece, por exemplo, em uma área de Mata Atlântica ou de Floresta Amazônica, irá influenciar a composição de espécies e mesmo a saúde de uma zona de restinga e dos manguezais que ocorrem no litoral. Levando em conta que a Mata Atlântica é o bioma brasileiro que mais perdeu área desde a colonização européia, torna-se difícil mensurar o quanto os manguezais que vemos hoje associados a este tipo de floresta diferem daquilo que já foram.

Outro importante serviço que os manguezais prestam – se adotarmos um ponto de vista puramente utilitário para os benefícios à espécie humana – é o fato de atuarem como barreiras para tempestades ou para efeitos destrutivos da subida das marés, protegendo milhares de vidas estabelecidas em cidades litorâneas quando seguram, por exemplo, o impacto destrutivo de ondas gigantes.

Como diz a professora Yara, quando empreendimentos ameaçam a integridade destas áreas de manguezal, em geral a tragédia ambiental é acompanhada por tragédias sociais de igual magnitude. Não apenas por substituírem uma área de onde comunidades inteiras de famílias de pescadores, marisqueiros e catadores de caranguejo tiram seus modos de vida por condomínios, shopping centers ou fazendas de camarão – que levarão à concentração de renda na mão de um número consideravelmente menor de pessoas.

As tragédias sociais também não se dão apenas pelos efeitos do impacto ecológico na vida das comunidades locais. Somado a isso, existe um aspecto cultural que também se perde junto com os manguezais. Seja com a substituição do modo de vida de povos tradicionais como caiçaras e ribeirinhos, seja com a impossibilidade de vivências religiosas, como a relação que o ecossistema tem com a orixá Nanã, existem sobreposições centenárias entre os manguezais e a cultura humana.

Arte: Julia Lima

Nas dimensões humanas e na biodiversidade, as perdas que decorrem da destruição de áreas de manguezal são insubstituíveis. “Uma coisa que eu só fui vendo com o tempo é essa importância social do manguezal”, conta a professora Yara. “Porque no começo era tão difícil conhecer e fazer o levantamento dos trabalhos que não havia espaço para olhar para a importância social. Foi à medida que os conhecimentos do ecossistema em si foram abrindo os olhares que a gente conseguiu ver quem participava, quem estava associado a esse ambiente. Porque para complementar essa linguagem, essa visão e essa narrativa acadêmica sobre o manguezal, eu preciso acoplar a narrativa do pescador, do catador de caranguejo, da marisqueira”, explica a oceanógrafa.

A Dra. Yara incorpora em sua pesquisa estes outros ângulos como peças-chave para a conservação do ecossistema já há algumas décadas. “Porque eles têm o outro lado da leitura do mesmo manguezal que eu estou falando. Eu diria que são ‘as muitas faces do ecossistema manguezal’. Eu estou cunhando isso agora, e cabe bem na linguagem de comunicação. Porque eu vejo isso: são múltiplas as faces do mesmo ecossistema”.

Estudar questões de conservação incorporando as “muitas faces” de um ecossistema, espécie ou conflito específico é uma forma de se conduzir pesquisas científicas que têm ganhado popularidade nas últimas décadas na área da ecologia e da ciência conservacionista. Seja na utilização de três eixos – ecológico, social e econômico – para avaliar questões de conservação, seja na incorporação de saberes populares e tradicionais, ou na ciência cidadã (que envolve a construção do conhecimento com participação ativa de não-especialistas), estes ramos da ciência biológica têm se aberto, nas últimas três décadas, a abarcar outras formas de complexidade em seus objetos de estudo.

Quando a Dra. Yara Novelli e colegas começaram a trilhar por este caminho, porém, a receptividade a esta ideia ainda não era tão grande.

“A medida em que nós íamos evoluindo à etapa de não só medir a árvore, fazer a análise do grão de areia ou ver quantas folhas tem uma árvore e quais as medidas delas… e fomos acrescentando o componente humano, social, cultural, você sabe o que eu ouvi na Academia? Que meus artigos não passavam de material de divulgação complementar. E eu fui cortada de Pesquisadora 1A do CNPq por conta disso. Eu saio com honra! Na hora eu pedi minha aposentadoria, pois eu já tinha tempo de serviço”.

Desde então, a cientista tem se dedicado ao ensino, bem como à participação ativa nas atividades do Instituto Bioma Brasil, do qual é cofundadora. Também tem atuado ativamente em discussões e processos sobre política ambiental, e já foi até mesmo perita em ações civis públicas por dano ecológico.

Degradação e resgate no Litoral Norte

É uma terça-feira à noite, e ventos de uma frente fria causam instabilidade nas redes elétricas e no sinal de internet em alguns pontos do município de São Sebastião, litoral norte do estado. Neste cenário, desafiando problemas de conexão e links de videoconferência com prazo curto para expirar, converso pela primeira vez com a equipe do Projeto Manguezal, desenvolvido como parte das ações do Instituto Terra & Mar, ONG voltada à educação ambiental, à conscientização e à proteção da natureza da região.

Criado por moradores da região que já estavam pessoal ou profissionalmente envolvidos com a conservação costeira, o Instituto Terra & Mar reúne profissionais da oceanografia, da biologia, engenharia ambiental, professores e professoras do ensino público e educadores ambientais. Pelo histórico da região, e pela relação diferenciada que este povo cultiva com a natureza, em especial com o manejo de recursos hídricos e pescados, parte dos membros e parceiros do ITM é composta de caiçaras das mais variadas profissões.

A geógrafa e professora Márcia Gomes, membro-fundadora do Instituto Terra & Mar. Foto: Guilherme Rodrigues

“Estar aqui hoje, como ser humano, é realmente manter o foco no que a gente acredita, né?”, resume Márcia Gomes, geógrafa, professora do Ensino Fundamental e educadora ambiental que atualmente coordena o ITM. “A gente acredita no ser humano, acredita na resiliência? É por acreditar na resiliência das pessoas que eu estou nesse projeto aqui, com essa galera boa!”, acrescenta.

Na conferência também se encontram dois biólogos, um pedagogo, uma engenheira ambiental e uma técnica em meio ambiente. Todos trabalham voluntariamente, e com grande proximidade afetiva com o principal foco do Projeto Manguezal: uma área remanescente de bosque de mangue conhecida como Manguezal da Enseada / Canto do Mar.

Originalmente parte de uma área contínua e extensa de manguezal que conectava os municípios de Caraguatatuba e São Sebastião, a hoje pequena área remanescente no Canto do Mar representa um dos capítulos que restaram da história ecológica da região. A mesma onda de migrantes que trouxe Márcia Gomes do Paraná até a região, trouxe também uma mudança cultural local, pela chegada de pessoas que não tinham relação íntima com a pesca, com os mangues, com a cultura caiçara. E entre aterramentos, construções para expansão urbana e empreendimentos imobiliários, o manguezal foi progressivamente reduzido junto às populações de peixes comerciais.

“Hoje continua sendo bonito, mas aí precisa ter um olhar muito voltado a essa questão da conservação, e conhecer as áreas onde a gente adentra”, conta Jacqueline Vieira, bióloga e uma das principais idealizadoras das ações do Projeto Manguezal. Jacqueline, ou simplesmente  “Jacque”, teve nos artigos e na trajetória da professora Yara Novelli uma grande inspiração pessoal e profissional. Inspiração que a levou a desenvolver ainda mais este olhar sensível para o valor intrínseco de áreas naturais. Jacque também veio de fora para São Sebastião, mas mora próxima ao manguezal da Enseada / Canto do Mar há anos o bastante para ter testemunhado parte da redução de área.

Na década de 1990, parte do manguezal remanescente foi aterrado para construção de um condomínio imobiliário, que desde então passou por ampliações que avançaram ainda mais sobre o ecossistema. Histórias como estas abundam não apenas na Enseada ou em São Sebastião, mas no litoral brasileiro como um todo. Talvez a mais famosa causa de degradação dos manguezais seja a crescente expansão da criação de camarões para fins comerciais em seus apicuns, em estados como o Rio Grande do Norte e o Ceará. Mas tanto nestes quanto em outros estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Santa Catarina as principais ameaças ao manguezal são relacionadas ao crescimento urbano desordenado, como a redução das áreas (aterramento), a poluição e alterações de vazão e características da água de bacias hidrográficas.

O que são os Apicuns?

Também chamados de zona de transição entre o manguezal e a terra firme, os apicuns têm sido apontados por pesquisadores como uma fisionomia particular do ecossistema manguezal, assim como as feições lavado, manguezal arbóreo e ecótono arbustivo. Um Boletim Técnico Científico do CEPENE/ICMBio inclusive evidenciou a importância da manutenção de apicuns para a conservação do caranguejo-uçá.

O Atlas dos Manguezais do Brasil, produzido pelo ICMBio e elaborado por grandes nomes do estudo dos manguezais, como Cláudia Câmara do Vale, Clemente Coelho Júnior e a própria Yara Schaeffer Novelli entre mais de 20 autores que colaboraram com conteúdo, destaca: “Apesar de sua importância, os manguezais no Brasil são vulneráveis a uma série de ameaças, tais como a perda e a fragmentação da cobertura vegetal, a deterioração da qualidade dos habitats aquáticos, devido sobretudo à ocupação, à poluição e às mudanças na hidrodinâmica, o que tem promovido a diminuição na oferta de recursos dos quais muitas comunidades tradicionais e setores dependem diretamente para sobreviver. Destaca-se a pesca artesanal, o extrativismo, a coleta de mariscos e o turismo”.

O Brasil tem, segundo levantamentos do projeto MapBiomas, algo em torno de 981 mil hectares de manguezal – o que equivale a aproximadamente 7% do total mundial de 13 milhões e 800 mil hectares. A cobertura atual corresponde a uma fração bastante reduzida do total de manguezais que já existiram em terras brasileiras. Apenas no Século XX, segundo o Atlas dos Manguezais, estima-se que esta área tenha sido reduzida em 25%. O documento avisa ainda que “[a] situação é particularmente séria nas regiões Nordeste e Sudeste do Brasil, que apresentam um grande nível de fragmentação e onde estimativas recentes sugerem que cerca de 40% do que foi um dia uma extensão contínua de manguezais, foi suprimido”.

Junto a outros projetos e instituições – muitos dos quais contam com o trabalho voluntário, pela dificuldade em captar recursos para esta finalidade – o Projeto Manguezal da Enseada / Canto do Mar tenta refrear esta supressão. Além das ações de educação ambiental junto às escolas o Projeto Manguezal promove ações diretas de recolhimento de lixo, pesquisas e levantamentos de biodiversidade, e tem expandido sua atuação em discussões sobre política ambiental.

Recentemente, membros do projeto uniram suas expertises técnicas para elaborar um Diagnóstico Socioambiental do remanescente de manguezal da Enseada / Canto do Mar, protocolado junto à Prefeitura para embasar o pedido de que a área privada seja transformada em uma Unidade de Conservação.

A leitura do diagnóstico revela que mesmo uma área pequena de manguezal de 5,7 hectares pode se manter saudável, como revelam as análises da salinidade e composição do solo. O Manguezal da Enseada serve ainda de morada para uma diversidade considerável de formas de vida vegetal e animal, com 8 espécies de plantas, a ocorrência de peixes marinhos como o parati (Mugil curema), anfíbios endêmicos da Mata Atlântica como a perereca-araponga (Boanas albomarginatus) e um total de 82 espécies de aves registradas por observação. Estas aves visitantes, que chegam ao manguezal e se alimentam principalmente da vida aquática, incluem espécies migratórias que param por ali em suas rotas entre a Patagônia e a América do Norte.

A engenheira ambiental Bruna Gandufe comenta o processo, que aconteceu de forma gradual, à medida que o projeto aprendia mais sobre a área. “Em conjunto com uma advogada que está ajudando a gente, pedimos na prefeitura um protocolo para criação de uma Unidade de Conservação de Uso Sustentável. Que será a APA Canto do Mar. E todos nós do grupo nos reunimos e pensamos qual estudo técnico cada um de nós poderia disponibilizar? Nós que elaboramos. Fomos lá, na raça, sentamos, estudamos, fomos ao campo, sei lá… milhões de vezes. (risos) Cada vez que a gente ia, a gente descobria coisas novas. Esse é um lugar que a gente precisa… na verdade, já estamos mostrando para o mundo!”.

O grupo criou também uma petição online para pressionar pela criação da Unidade de Conservação.

Visão aérea do Manguezal da APA Baleia-Sahy. Banhado por água cristalina e salobra que, dia após dia, encharca a areia lodosa, criando as condições climáticas e a paisagem sonora de uma área conservada de manguezal. Foto: Guilherme Rodrigues

Propágulos, Prédios e Portos

Durante nossa entrevista, a professora Yara tocou algumas vezes no ponto de que os manguezais têm uma resiliência que se expressa não apenas no fato de que eles lidam razoavelmente bem com alterações no entorno. A resiliência deste ecossistema pode se ver também no fato de que, se deixados em paz, alguns manguezais são capazes de recuperar áreas perdidas sem a necessidade de grandes esforços ativos por parte de pessoas interessadas em sua conservação. As árvores das espécies conhecidas popularmente como mangue-branco, mangue-preto e mangue-vermelho lançam seus propágulos e muitas vezes a própria movimentação das águas garante que estes se espalhem e ganhem outras áreas.

Isto é também uma boa metáfora para o próprio trabalho da pesquisadora e colaboradores, que deixou propágulos em todas as regiões do Brasil que detêm manguezais. Foi este o cenário que encontrei quando, semanas após a entrevista virtual com a equipe do ITM, desci de Campinas até São Sebastião, acompanhado de Guilherme Rodrigues, amigo da pós-graduação em jornalismo de ciência e o fotógrafo que captou as imagens e vídeos que compõem esta reportagem. Costurando a Serra do Mar, conversávamos sobre uma série de assuntos que ziguezageavam como a estrada. No centro das preocupações, a dificuldade em conciliar o crescimento urbano com a conservação de ecossistemas e de modos de vida.


O propágulo se desprende da árvore e é carregado para longe pela maré, por caranguejos, ou pela ação de pessoas trabalhando ativamente em prol da conservação dos manguezais

O propágulo se “finca” no substrato de areia lodosa banhada por água salobra

Ao encontrar condições favoráveis, o propágulo dá origem a uma nova árvore de mangue

Numa escala temporal e espacial mais ampla, a produção de propágulos por múltiplas árvores-mãe pode levar à recuperação ou mesmo a expansão natural de uma área de manguezal.

De fato, a despeito do trabalho de conscientização e proteção que a equipe do Projeto Manguezal conduz junto a mais de duas gerações de pessoas que moram próximas à área, a quantidade de lixo no entorno do Manguezal da Enseada / Canto do Mar rendeu imagens impactantes e tristes. E  no caminho entre a rodovia e a praia, que os moradores chamam “carinhosamente” de Rua do Urubu, caranguejos chama-maré e restos de plástico e metal se enterram em areia lodosa banhada por esgoto, o que não deixou uma boa primeira impressão. 

Já na área de manguezal — o primeiro que eu, ouvinte fiel de Chico Science e Nação Zumbi, Mundo Livre S/A e outros nomes do manguebeat desde a adolescência, adentrei na vida — o cenário era um tanto mais convidativo. Um misto de árvores de Mata Atlântica com aquelas mais características dos manguezais, como o mangue-vermelho, mangue-preto e o hibisco-do-mangue eram visitados por uma sorte de insetos e pequenas aves. Mas nada comparado à diversidade de aves de grande porte empoleiradas em mangues dispostos à volta da lagoa. Em meio às conversas com membros de pelo menos três projetos distintos, o ornitólogo vinculado ao ITM Patrick Pina se atenta para um canto específico. Embora rodeados de um sem-número de garças e biguás que observavam a lagoa, o canto em questão era de um passarinho, a choca-barrada. Segundo Patrick, que participou ativamente dos levantamentos de avifauna no Manguezal da Enseada, essa era a segunda vez que a espécie era observada naquela área.

Ainda no primeiro dia, após nos despedirmos da maioria dos membros do Projeto Manguezal e do carismático Fábio Fula, dos Psicoletores — projeto voltado à coleta de volumes espantosos de lixo para gerar impacto na cultura de pouca atenção ao destino dos descartes — seguimos para o município vizinho de Caraguatatuba. Seguíamos junto à nossa “embaixadora” de campo, Jacque Vieira, e ao artista e ativista pela conservação da natureza e dos modos de vida caiçaras, Pedro Caetano. Nosso destino: conhecer o rio Juqueriquerê, um dos principais corpos de água doce da região a desaguar no oceano e permitir a existência de manguezais remanescentes naquela porção da costa. E seus personagens, claro.

O pescador, artesão e ativista caiçara Pedro Paes, fundador da ACAJU. Foto: Guilherme Rodrigues

Assim como Pedro Caetano — que também nos cedeu de graça uma série de pérolas sobre como a conservação dos rios, das matas e dos manguezais têm absolutamente tudo a ver com a cultura caiçara — Pedro Paes defende um futuro que preserve ambas de pé. Ele é um dos criadores da Acaju, Associação Caiçara Juqueriquerê e já vive há décadas pescando naquelas águas, plantando uma árvore de mangue em homenagem a cada neto nascido e brigando contra práticas que ameaçam a integridade do rio e das espécies que nele vivem. Estas vivências lhe conferem um ponto de vista privilegiado para entender como o fluxo do tempo pode influir no fluxo do rio, trazendo novas pessoas, novas práticas, novas ameaças e aliados.

Hoje em dia, Pedro Paes ganhou uma festa caiçara anual em sua homenagem, onde as cantigas e comidas tradicionais se mantêm vivas no festejo — infelizmente interrompido desde 2020 por conta da pandemia de COVID-19.

Assim como o rio Juqueriquerê, seguimos em vazão constante em direção à praia para nossa próxima visita. De volta a São Sebastião, na Praia do Deodato, não conseguimos sequer esperar por cinco minutos pela chegada da nossa próxima entrevistada. Conversaríamos melhor na Baía do Araçá, a mais ou menos oito minutos de caminhada entre rochedos e areia clara da Praia do Deodato, mas Maria Cecília Nobre Borges, também caiçara, professora de ioga e uma das coordenadoras do Movimento Apaixonados pelo Mangue, insistiu em nos encontrar por ali.

“É aqui que começa tudo, e a história desse litoral é a minha história também”, diz, enquanto nos aponta o Porto de São Sebastião e explica parte da trajetória recente de defesa da conservação das praias frente a empreendimentos gigantescos. Cissa, como é conhecida, chegou a acompanhar a professora Yara quando se discutia um projeto de ampliação do Porto que envolveria impactos certeiros à Baía do Araçá, para onde nos deslocávamos, sempre com a atenção dividida entre as histórias compartilhadas e a necessidade urgente de não tropeçar nos rochedos.

Cissa  acredita ser possível que São Sebastião e o litoral norte como um todo protejam sua biodiversidade a partir de atividades econômicas que não se baseiem apenas nas transações do porto e na extração de petróleo bruto. Ela destaca que a indústria turística da cidade já é bastante forte e estabelecida, e bastava que uma óptica de ecoturismo fosse estabelecida e bem divulgada para atrair inclusive visitantes internacionais para a observação das espécies nativas de manguezais preservados — garantindo, assim, que eles tenham um grande valor econômico por estarem preservados.

No Araçá, próxima às casas de moradores e a saídas de esgoto que escorrem pela areia, uma pequena área de manguezal ostentava pequenos caranguejos-uçás azulados e mangues-vermelhos bastante imponentes — como se compensassem o baixo número com o vistoso porte. Foi este manguezal que a Dra. Novelli — junto a uma grande equipe de pesquisadores — avaliou para poder argumentar com base em dados e afirmar que a substituição daquele pequeno agrupamento de mangue por uma expansão do Porto envolveria a perda de processos ecológicos importantes. Um pouco mais adiante, algumas poucas árvores de mangue cresciam vistosas no meio da praia, alheias ao pequeno manguezal que havíamos deixado para trás.

Afinal, propágulos de mangue — assim como os propágulos da vontade de conservá-los — às vezes são levados para longe.


A área que resta do Manguezal da Enseada / Canto do Mar não apenas fica entre o oceano e a terra-firme: além da autoestrada ao fundo, o manguezal divide o espaço com um condomínio (à esquerda). À direita na foto, o caminho de areia conhecido popularmente como “Rua do Urubu”, por onde passamos para chegar a uma das clareiras do manguezal.
Foto: Guilherme Rodrigues


Vista da “Rua do Urubu”. O despejo de lixo na cercania desta área é bastante pronunciado.
Foto: Guilherme Rodrigues


Assim como o despejo de esgoto não-tratado. Por “sorte”, o esgoto chega apenas a um dos lados do manguezal, e a lagoa visível na primeira fotografia desta sequência não parece receber influência dos poluentes.
Foto: Guilherme Rodrigues


Para chegar ao manguezal, primeiro passamos pela restinga da praia, onde a vegetação e as aves características convivem com uma areia muito mais limpa.
Foto: Guilherme Rodrigues


Ainda assim, e apesar do esforço de coleta de lixo por uma série de projetos voluntários, o plástico dá as caras.
Foto: Guilherme Rodrigues


Já no bosque de mangue, é possível ver de perto a lagoa, em torno da qual um sem-número de aves pescadoras se empoleiram para passar a tarde e avistar presas.
Foto: Guilherme Rodrigues


O ornitólogo Patrick Pina, voluntário do Instituto Terra & Mar, observa as aves com o auxílio de seu binóculo. Nesta área, ainda que pequena, podem ser avistadas aves migratórias que cruzam a impressionante distância entre a Patagônia e a América do Norte.
Foto: Guilherme Rodrigues


Na Enseada, também conversamos com a Márcia Gomes, uma das criadoras e coordenadoras do ITM.
Foto: Guilherme Rodrigues


Também conversamos com a bióloga do projeto, Jacque Vieira e o ativista e poeta caiçara Pedro Caetano.
Foto: Guilherme Rodrigues


E com o técnico da SABESP e membro dos Psicoletores (um dos projetos de coleta de lixo citados acima) Fábio Fula, que nos contou histórias sobre estes litorais. Neste dia, dois dos educadores ambientais com quem conversei por videoconferência (o pedagogo Melk Souza e a técnica em meio ambiente Thaís Lourenço) não puderam estar presentes.


Em um raro registro do jornalista anotando informações de um dos entrevistados, seguimos atrás da comitiva que partia da Enseada para continuar as visitas a outros manguezais de São Sebastião.
Foto: Guilherme Rodrigues


Deixando para trás as belezas da praia, dos morros e do manguezal, mescladas com as alterações humanas na paisagem.
Foto: Guilherme Rodrigues

Tecer redes

Os manguezais do estado de São Paulo correspondem a 1,59% do total remanescente do ecossistema ao longo da costa brasileira. Antes da industrialização e da expansão urbana do Século XX, que nos custaram ¼ dos manguezais nacionais, é provável que a porcentagem dos manguezais paulistas fosse ainda maior. Especialmente tendo em vista o impacto de ter dois grandes portos como são os de Santos e São Sebastião, assim como as extensas alterações na vazão e pureza das águas fluviais do estado como um todo.

Neste outro estado de São Paulo, perdido no passado, manguezais como o que visitamos a seguir eram muito mais comuns.

O caminho até a Área de Proteção Ambiental (APA) Baleia-Sahy, a partir do centro de São Sebastião onde estávamos hospedados, é longo o bastante e no pouco mais de uma hora de trajeto, aproveitamos para conhecer melhor o trabalho de Angélica Maria Pino Bustamante, que nos acompanhava na viagem. Angélica é gestora ambiental e atualmente trabalha no Instituto de Conservação Costeira, outra associação da sociedade civil sem fins lucrativos que atua em São Sebastião. 

Angélica nos conta que o Instituto de Conservação Costeira foi uma peça fundamental para a criação da APA Baleia-Sahy, localizada na costa sul do município. Nesta APA, às margens do Rio Sahy e na vizinhança de uma vila de pescadores majoritariamente caiçaras, um manguezal de proporções exuberantes prospera, com caranguejos em tanta abundância que era impossível não observar suas danças e movimentos icônicos. Enquanto Angélica nos conta sobre a atuação e estrutura do ICC e sobre a importância da proteção de zonas costeiras através dos dispositivos legais como a criação de unidades de conservação, nossos pés se encharcavam pela subida constante e implacável da maré. Como alguém que cresceu ouvindo canções inspiradas pelo mangue, observei encantado que a água salobra tão característica dos manguezais adentrava os pequenos buracos escavados pelas raízes e pelos crustáceos e borbulhavam como pequenos instrumentos percussivos.


Na Baía do Araçá, próxima às casas, mesmo em uma área de intenso tráfego de pessoas e despejo de efluentes domésticos, uma área de manguezal se mantém pequena e saudável, alheia ao porto que dela se avista.
Foto: Guilherme Rodrigues


O número de propágulos na proximidade destas árvores de mangue, bem como o de caranguejos — vivos e algumas carcaças — sugerem à vista o que a Dra. Yara Novelli constatou pela coleta de dados: o manguezal do Araçá resiste vivo.
Foto: Guilherme Rodrigues


E propaga-se ao longo da praia. Provavelmente levadas pela maré, estas árvores — que já foram pequenos propágulos — têm o potencial para que o manguezal cresça em área.
Foto: Guilherme Rodrigues


Um fator importante para a manutenção e possível expansão de áreas como estas é o engajamento e a conscientização da população à volta, para que despejos de lixo não sejam uma realidade cotidiana.
Foto: Guilherme Rodrigues


A conservação desta área de manguezal permite, por exemplo, a atividade de pescadores e marisqueiros — que caminham sobre as areias próximas procurando moluscos como os berbigões.
Foto: Guilherme Rodrigues


Também permite um futuro para a geração mais nova de moradores da Baía do Araçá.
Foto: Guilherme Rodrigues


Há muitas possibilidades fincadas na areia junto a estas raízes.
Foto: Guilherme Rodrigues

Angélica e Jacque nos contam ainda que estes vários movimentos em prol da proteção do Litoral Norte formam a Rede Litoral Norte do Estado de São Paulo, colaboram em ações coordenadas e dão suporte uns aos outros. “Eu tenho o sonho de que o Litoral Norte possa um dia ser tão bem estudado quanto o Litoral Sul de São Paulo”, conta Jacque Vieira. “Para isso, estamos tentando estabelecer uma Rede de Estudos de Manguezal do Estado de São Paulo, que possa unir projetos e iniciativas que envolvam o estudo e a defesa dos manguezais ao longo do nosso litoral paulista”. A ideia de levar a experiência de projetos como o desenvolvido pela UNESP de Registro pelo grupo de pesquisa coordenado pela Professora Marília Cunha Lignon às áreas do Litoral Norte pode ser um caminho para o fortalecimento da proteção dos manguezais de São Sebastião, Caraguatatuba e Ubatuba. Especialmente, pode ajudar a monitorar se atividades das mais diversas – do extrativismo ao turismo ecológico – estão alterando parâmetros de saúde dos manguezais de forma preocupante.

“O nosso país foi abençoado ao receber um tipo de costa, uma fisiografia de costa dentro de uma amplitude intertropical que vai desde o extremo dos trópicos que é o equador até a faixa temperada. Então nós temos toda essa linha de costa passível de ser ocupada, colonizada por manguezais. A área que temos de manguezal é belíssima. Basta conservar o que nós temos. Basta seguir as regras do que é sustentável, do uso racional dessas áreas. Respeitar o que essas áreas têm a nos oferecer gratuitamente”, resume de forma icônica a professora Yara.

Recentemente, projetos de pesquisa voltados a entender e conservar os manguezais — assim como aqueles voltados a praticamente qualquer assunto dentro de qualquer ciência — receberam mais uma péssima notícia em termos de sua viabilidade. O anúncio do corte de 600 milhões de reais no orçamento da Ciência e Tecnologia em outubro de 2021 significa uma quase impossibilidade de financiamento público a projetos de qualquer natureza. Especialmente quando somada a cortes anteriores na própria pasta da Ciência e Tecnologia, bem como na do Meio Ambiente e da Educação, esta impossibilidade se estende ao pagamento de seus principais executores, que são estudantes de pós-graduação.

Neste cenário, somado à atual tomada de compromissos do Brasil frente às emissões de carbono pelo país, é importante que o país viabilize formas de manter de pé os manguezais e os projetos que os estudam e defendem. Com membros do governo federal relativizando o corte no investimento à ciência e chamando empresários a assumir maior protagonismo no financiamento à pesquisa, talvez seja esta uma boa oportunidade para empresas que atuem em setores econômicos de alta emissão de carbono — como montadoras de automóveis, companhias de grande porte do setor de carnes e mesmo a Petrobrás — investirem na conservação e na restauração ativa de áreas de manguezal.

A APA Guapimirim, no Rio de Janeiro, foi a primeira unidade de conservação federal criada para proteção de manguezais. Hoje é referência de gestão e envolvimento comunitário nas ações de conservação e restauração. Foto: Marcio Isensee e Sá

Levando em conta que manguezais ocorrem do Norte ao Sul do litoral brasileiro, existem relativamente poucos projetos dedicados à restauração ativa de áreas de manguezal, com plantio de árvores de mangue, reforços às populações animais e mesmo reintroduções de fauna onde forem viáveis e necessárias. Dois exemplos que merecem destaque — e também envolvem trabalhos locais e ações coletivas — vêm do estado do Rio de Janeiro. O primeiro deles é o reflorestamento de bosques de manguezal realizado pela ONG Guardiões do Mar na APA Guapimirim dentro de projetos como Uçá, Sou do Mangue e Guanabara Verde. Com coordenação do biólogo Pedro Belga e apoio da supracitada Petrobrás, a ONG também promove educação ambiental, limpeza de praias e a democratização de conhecimento científico produzido através de suas pesquisas em oito municípios do estado, e já reflorestou o equivalente a 10% da área restaurada da APA.

O outro exemplo é a revitalização da Lagoa Rodrigo de Freitas, realizada na capital do Rio sob coordenação do pesquisador Mário Moscatelli, sócio diretor da empresa de consultoria ambiental Manglares e presidente do Instituto Manguezal. Moscatelli e sua equipe trabalham há décadas em prol da conservação da Baía de Guanabara, com foco na lagoa. No princípio, a “equipe” consistia apenas no próprio biólogo, que começou a plantar árvores de mangue no entorno da lagoa.

Yara Novelli, ao citar o trabalho de Mário, lembra que a resiliência e a capacidade do manguezal de — ao ser deixado livre de perturbações — restaurar a si próprio e expandir sua área de cobertura é uma grande aliada na conservação deste ecossistema. “Deixa em paz o manguezal que ele se recupera. Você pode ajudar, dar uma mãozinha. Levar algumas plantas para fazer uma área de viveiro e, desse viveiro, você levar algumas mudas para aquelas áreas de manguezal que estão mais carentes [de espécies]”, conta Yara.

Ela relembra também que é importante nunca perder de vista, seja em ações para manter o manguezal preservado ou em projetos de restauração, a importância de se envolver a população no entorno, sejam comunidades tradicionais ou migrantes de gerações recém-migradas. Envolver as pessoas com o valor do manguezal também como forma de garantir a subsistência. Pois, como diz um dos amigos que fez nesta trajetória pela defesa dos litorais, o Professor Antônio Carlos Pavão do Espaço Ciência de Pernambuco ‘A beleza do Manguezal está no olhar de quem o vê’. “Eu o conheci em um evento em memória do nosso grande filósofo Chico Science. Foi em 1997, após a morte do Chico. Houve uma grande homenagem e a família dele estava presente”, conta Novelli. “Conheci eles ao vivo! Eu me emociono até hoje. Porque manguezal é isso também! Manguezal é Chico Science!”

Importantes palavras vindas de uma oceanógrafa. Especialmente uma cujo trabalho direta e indiretamente permitiu que o movimento construído pelos “mangueboys e manguegirls” tivesse uma proximidade tão maior com a linguagem que a ecologia usa para falar sobre os manguezais.

Os manguezais inspiram! Criamos uma seleção musical do movimento Manguebeat para sua leitura.

https://youtube.com/watch?v=videoseries%3Flist%3DPLRFn36bgLhbjKe7LTodYlWnCvTftg5P5x

O projeto Mata Atlântica: novas histórias é apoiado pelo Instituto Serrapilheira.

  • Bruno Moraes

    Bruno é microbiologista e ecólogo de formação, mas tem atuado na comunicação de ciência para não-especialistas desde 2015.

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Comentários 1

  1. Quero parabenizar ao Bruno e Guilherme pelo trabalho incrível que fizeram e que possamos ter acesso ou ver mais material do nosso trabalho nas redes sociais, nós sociedade civil precisamos muito do apoio de profissionais brilhantes como vocês do O Eco! Gratidão a tod@s!