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Quinze anos depois, programas REDD+ sofrem esvaziamento e buscam recomeço

Projeto pioneiro e premiado de venda de carbono com valorização de floresta em pé, em terra indígena de Rondônia, está parado há 2 anos

Emanuel Alencar ·
15 de novembro de 2020 · 3 anos atrás
Indígena do povo Paiter Suruí, em Rondônia: depois de venda de carbono para a Natura e a Fifa, grande conflito minou o projeto de REDD+, parado desde 2018. Crédito: Divulgação/Associação Kanindé.

“Amamos a floresta e a floresta nos ama”. O aforismo dos indígenas Paiter Suruí, do estado de Rondônia, soou durante 15 anos como um exemplo internacional de aliança da crença à prática cotidiana. O projeto pioneiro do instrumento conhecido como REDD+ (sigla para Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal) no Brasil, entretanto, está parado há dois anos e sem perspectivas de avanços. O conceito associa compensação financeira correspondente às emissões evitadas, ou seja, tem como base o benefício por manutenção da floresta em pé. Quinze anos após o mecanismo ter sido apresentado na Conferência das Partes (COP) 11 de Montreal, no Canadá, muitos projetos não saíram do papel diante de impasses, da falta de interesse político e da desarmonia das comunidades. Atualmente, há dez programas REDD+ voluntários em vigor no Brasil, quase todos na Amazônia, certificados pelo “Verified Carbon Standart (VCS) Program”, da empresa Verra.

O naufrágio do aclamado Projeto Carbono Suruí evidenciou as dificuldades da governança das ferramentas de valorização dos estoques florestais. Os cerca de 1.500 Paiter Suruí, que vivem em 248 mil hectares da Terra Indígena Sete de Setembro, em Rondônia, inovaram a se mobilizarem há 20 anos em prol da defesa do território, historicamente solapado pelo avanço da mineração de ouro, diamante, e pela extração de madeira. Chegaram a vender créditos de carbono para a Natura e para a Fifa, promoveram ações de reflorestamento e monitoramento. Mas o programa foi descontinuado em 2018.

Ivaneide Bandeira Cardoso, a Neidinha, da Associação Não-Governamental Kanindé, responsável pelo plano de gestão da comunidade indígena, avalia que a movimentação de setores que defendem o desenvolvimento predatório da Amazônia foi decisiva para a descontinuidade do programa.

“O Carbono Suruí foi o primeiro do país e quarto no mundo a aplicar o REDD+. Funcionou super bem até o momento em que começou a incomodar setores da sociedade. Houve um movimento para desacreditar o entendimento de que valia a pena ganhar dinheiro com o mecanismo em detrimento do fortalecimento do grupo da ilegalidade, da exploração predatória dos recursos”, afirma. “Houve enorme conflitos entre os indígenas, e dois grupos, um que defendia o REDD e o outro, a mineração e a extração de madeireira, entraram em choque. O embate chegou a provocar o desmatamento de 10 mil hectares de floresta nativa, um episódio muito triste”.

O Ministério Público de Rondônia, conta Neidinha, chegou a fazer uma devassa nas contas do programa, mas a idoneidade do REDD+ dos Paiter Suruí foi comprovada. Os efeitos da cisão, entretanto, foram definitivos e o programa nunca mais voltou. ((o))eco entrou em contato com o líder indígena Almir Suruí, mas ele não se pronunciou sobre o assunto.

A 350 quilômetros de Porto Velho, o município de Machadinho d’Oeste, em Rondônia, experimenta desde outubro de 2012 um programa de REDD+ que beneficia comunidades tradicionais da Reserva Extrativista (Resex) Rio Preto-Jacundá. Alexis Bastos, do Centro de Estudos Rioterra, coordenador de projetos que assessora, afirma que alguns atributos (comunidade pequena e socialização dos recursos) têm sido importantes para garantir a longevidade do projeto. A Organização das Nações Unidas (ONU) não regula este tipo de mercado, voluntário, cuja certificação fica a cargo da empresa Verra.

Vista aérea do Rio Solimões, na Amazônia: estado está revendo o marco legal do mecanismo que garante remuneração por carbono que deixa de ser emitido. Divulgação/Carlos Durigan – WCS Brasil.

“Temos avanços, mas podemos avançar muito mais com o mecanismo. Principalmente em países com a cobertura vegetal significativa, seria importante a criação de mecanismos mais flexíveis. São projetos complicados, caros, os mercados exigem muitas garantias”, pondera Alexis. “Uma das coisas que deram muito certo na Resex é que só existe investimento coletivo. Não há repartição de dinheiro entre as pessoas. São eleitas prioridades, e vamos aplicando de acordo com o fluxo de caixa. Está sendo um sucesso: esgotamos todos as 1 milhão e 200 mil toneladas de carbono, comercializadas com empresas como Renner e Ipiranga”.

Diretor da WCS-Brasil (Associação para Conservação da Vida Silvestre), o geógrafo Carlos Durigan avalia que a falta de vontade política foi o principal componente para que muitas iniciativas REDD+ tenham ficado pelo meio do caminho:

“Nunca fui um grande entusiasta das políticas de REDD, justamente por sempre ter tido dúvidas sobre a aplicabilidade dessas práticas nos territórios. Quando o mecanismo surgiu havia enorme expectativa, mas o fato é que faltou vontade política para que avanços mais significativos fossem conquistados”.

Mercado voluntário, a aposta do governo

O atual governo de Bolsonaro, que comprou briga com o Fundo Amazônia no ano passado, defende o fomento de projetos privados no mercado voluntário. A orientação geral não é criar regras, mas apostar no “deixar acontecer”, com base em marcos metodológicos disponíveis e os marcos legais estaduais. O único grande projeto brasileiro em vigor com financiamento de banco internacional é o Programa REM (REDD Early Movers), ou “REDD+ para pioneiros”, em português, bancado pelos governos de Alemanha e pelo Reino Unido por meio do KfW (Banco de Desenvolvimento da Alemanha), no Acre e no Mato Grosso.

Em sua primeira fase, o REM do Acre firmou 147 convênios que beneficiaram diretamente 21.940 famílias com atividades voltadas para o manejo sustentável de florestas e aumento de estoques de carbono florestal. Os projetos possibilitaram a capacitação, aquisição e manutenção de equipamento para sistemas agroflorestais e de escoamento, assistência técnica, insumos, regularização fundiária, apoio logístico e fomento à produção.

Floresta amazônica: governo Bolsonaro, que comprou briga com fundos internacionais, aposta nos projetos voluntários de REDD+

Membro da Comissão Nacional para REDD+ (CONAREDD+) e coordenadora de Florestas Plantadas de Rondônia, Julie Messias enxerga a regulamentação das leis estaduais como um desfio a ser superado.

“O Acre foi o pioneiro, quando aprovou a lei que cria o Sistema de Incentivo aos Serviços Ambientais, em 2011. Mato Grosso, Rondônia e Pará possuem leis específicas. Amazônia e Tocantins estão em processo de atualização de suas legislações. A regulamentação dessas leis em conformidade com as resoluções da CONAREDD+, principalmente a que trata dos critérios de elegibilidade ao pagamento por serviços ambientais, é o que tem sido o grande desfio”, afirma.

Julie afirma que a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Ambiental (Sedam) vem avançando nos estudos e formalização de procedimentos para possibilitar que mais unidades sejam contempladas por projetos de REDD+. Estudo recente elaborado pelo Idesam Conservação e Desenvolvimento Sustentável e pelo Instituto BVRio aponta ser de US$ 50 milhões (R$ 274,24 milhões) por ano o potencial dos créditos de carbono em Rondônia. O mais novo programa, ainda não certificado, beneficiará 90 famílias em sete comunidades na Reserva do Rio Cautário, quase na divisa com a Bolívia. Durante 30 anos o fundo de investimento inglês Permian Global vai pagar R$ 1 mil a cada família que seguir ações de conservação dos recursos naturais.

 

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  • Emanuel Alencar

    Jornalista e mestre em Engenharia Ambiental. É autor do livro “Baía de Guanabara – Descaso e Resistência” (Mórula Editorial) e assessor de Comunicação na Prefeitura do Rio

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