Joelson Carvalho Silva, pescador da comunidade de Caju-Una, em Soure (PA), tem sentido, nos últimos anos, o clima esquentar e a quantidade de peixes nas águas da Baía do Marajó diminuir. “Está mais seco e a gente sente um calor muito forte. Acho que a quentura é que tem afastado os peixes”, disse.
Ao sul de Caju-Una, na Vila do Pesqueiro, as mudanças na dinâmica do clima já são vivenciadas com mais violência e clareza. A partir do início dos 2000, a alteração na intensidade das marés aumentou consideravelmente a erosão costeira, fazendo com que 15 famílias tivessem que deixar suas casas, antes instaladas perto do mangue, mas destruídas pela força das águas.
“Eles tiveram que sair daquele local e foi muito triste, porque não se adaptaram ao outro local, mesmo sendo dentro da própria comunidade. As águas grandes tiraram eles de lá. Hoje o clima está muito tenso dentro da nossa comunidade e de 2003 pra cá foi acontecendo a erosão muito forte, o clima muito forte, que ajudou a destruir a natureza e o nosso território”, diz Patrícia Faria Ribeiro, marisqueira e líder comunitária na comunidade.

Além da força das marés altas e do aumento da erosão, os moradores da Vila do Pesqueiro também têm sentido outras consequências da mudança no clima. “A gente sentiu o impacto no marisco, que ficou muito pouco, e o pescado, que ficou raro”, acrescenta Patrícia, em consonância com a percepção do pescador Joelson Silva.
A comunidade de Caju-Una e a Vila do Pesqueiro estão localizadas na cidade de Soure, um dos municípios que fazem parte de Marajó, o maior arquipélago fluviomarinho do mundo, localizado no encontro do Rio Amazonas e afluentes com o Oceano Atlântico.

São mais de três mil ilhas e ilhotas, com uma biodiversidade que inclui florestas, mangues, campos alagados e uma rica fauna, que trazem sustento aos moradores tradicionais, dependentes da pesca e extração de marisco e caranguejo. Ecossistema complexo que, nos últimos anos, tem se transformado com o clima em crise.
Indicadores das mudanças climáticas
Apesar de viverem em comunidades diferentes, Joelson e Patricia vivenciam realidades muito parecidas. A começar pelo fato de que tiram seu sustento dentro da Reserva Extrativista Marinha de Soure, criada em 2001 para atender às demandas das comunidades locais.
A Resexmar de Soure é a primeira unidade de conservação brasileira a integrar a Lista Verde da União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN), ao fim de 2024, em reconhecimento à sua gestão eficaz, justa e inclusiva dos ecossistemas vitais de manguezal e dos meios de vida sustentáveis das comunidades locais.
É nesta reserva extrativista que está sendo desenvolvido o programa Tech4Nature, uma parceria entre a Lista Verde da IUCN e a iniciativa Tech4All, da empresa chinesa de telefonia Huawei, para promover a conservação da natureza por meio da inovação digital e colaboração intersetorial.
Lista Verde
A Lista Verde da IUCN é uma campanha global para a conservação bem-sucedida da natureza. Ao contrário da lista de avaliação do status de conservação de espécies – a Lista Vermelha – a Lista Verde é focada nas iniciativas exitosas em áreas protegidas ao redor do mundo, que tenham conseguido comprovar o atingimento de critérios como governança justa, planejamento robusto, manejo efetivo e resultados comprovados de conservação.
A Resexmar de Soure é a primeira do Brasil a entrar para a Lista Verde da IUCN. Segundo Lisangela Pinheiro Cassiano, chefe da unidade, além de a iniciativa promover melhores práticas de gestão, integrar a lista amplia o acesso a financiamentos e faz o Brasil se alinhar cada vez mais às metas internacionais de biodiversidade.
“A visibilidade que a Lista Verde nos deu, por ser a primeira unidade a conquistar esse título, nos possibilitou ter mais pessoal, por exemplo, ter mais analistas, e isso é uma grande novidade”, diz Lisangela.
Atualmente, cerca de 600 áreas protegidas em todo mundo fazem parte da Lista Verde da IUCN. No Brasil, a Resexmar de Soure ainda é a única.
O programa tem o objetivo de monitorar a evolução e as mudanças que estão ocorrendo nos manguezais da unidade de conservação, em diferentes aspectos.
Entre os dados coletados estão aqueles sobre o crescimento do tronco das árvores do mangue – como evoluem em função da quantidade de água disponível em determinada temporada –, quantidade e tamanho dos caranguejos coletados e distribuição entre machos e fêmeas. A espécie estudada é o caranguejo-uçá (Ucides cardatus), abundante na região.


“Com esses resultados, é possível tomar decisões, aplicar períodos de defeso para evitar a extração ou orientar que o caranguejo seja coletado em outras épocas ou de outras formas, além de responder aos impactos que as mudanças no ciclo da água causam sobre o mangue”, explica Gabriel Quijandría, Diretor Regional para a América do Sul da IUCN.
No total, nove parcelas de monitoramento de manguezal e caranguejo estão instaladas em três áreas da Resexmar. Mas a atividade, integrada ao Programa Nacional de Monitoramento da Biodiversidade, do ICMBio, não é a única.
Dados como temperatura do ar, umidade, pressão, vento, precipitação, temperatura da água e nível da maré passaram a ser coletados por ser um sensor climático de baixo custo, desenvolvido pelo Laboratório de Pesquisa em Monitoramento Ambiental Marinho da Universidade Federal do Pará (LAPMAR/UFPA).

“No geral, o sistema é de 5 a 25 vezes mais barato que soluções comerciais equivalentes. Ele foi intencionalmente projetado para ser replicável, modular e de fácil manutenção pela comunidade, permitindo sua expansão por reservas extrativistas e outras regiões costeiras”, explica Renan Peixoto Rosário, pesquisador da UFPA responsável pela tecnologia.
Além disso, foram realizadas oficinas de capacitação com comunidades extrativistas e instituições locais e mais de mil entrevistas foram feitas com pescadores locais, por meio do monitoramento participativo do caranguejo.
A implementação local do Programa Tech4Nature conta com a parceria do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), do Laboratório de Pesquisa em Monitoramento Ambiental Marinho da Universidade Federal do Pará (LAPMAR/UFPA) e da Associação dos Usuários da Reserva Extrativista Marinha de Soure (Assuremas).
De olho no futuro
O Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) e a Comissão Nacional de Biodiversidade (CONABIO) lançaram, no dia 8 de dezembro, a Estratégia e Plano de Ação Nacionais para a Biodiversidade (Epanb) 2025-2030. O documento é o roteiro para a implementação, no Brasil, das metas do Marco Global da Biodiversidade de Kunming-Montreal, que visa deter e reverter a perda de biodiversidade e natureza em nível mundial.
O projeto de monitoramento dos indicadores climáticos e de biodiversidade em Soure tem cerca de um ano e meio. Segundo Gabriel Quijandría, ainda é cedo para definir tendências. O primeiro passo, no entanto, foi dado, e os resultados podem contribuir diretamente para a estratégia brasileira lançada no início de dezembro.
“Já existe uma série de dados – ainda não suficientemente ampla para garantir total segurança sobre as tendências –, mas que oferece indícios sobre o que está acontecendo, sobre como as mudanças climáticas estão afetando, de alguma forma, os ecossistemas, os serviços ecossistêmicos e as espécies nessas áreas”, explica Quijandria.
O próximo passo do monitoramento nos manguezais, diz o diretor da IUCN, é a realização de estudos-piloto com uso de Inteligência Artificial para monitoramento do ecossistema.


Além do ganho local, os pesquisadores e organizações envolvidas esperam que o projeto desenvolvido na Resexmar de Soure possa ser replicado, com adaptações locais, para outras unidades de conservação da Amazônia.
“O design do sensor [climático], por exemplo, o torna altamente replicável no Brasil e em outros países, permitindo que comunidades participem do monitoramento ambiental e fortaleçam sua resiliência climática”, diz Renan Peixoto Rosário, pesquisador da UFPA.
À medida que o mundo vê crescer, de forma sem precedentes, a perda de biodiversidade, oportunidades de harmonizar inovação com conservação se tornam cruciais para o enfrentamento da crise. Em Soure, o futuro já começou.
*A repórter Cristiane Prizibisczki viajou ao Marajó à convite da IUCN Brasil.
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