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Sem ciência não há enfrentamento dos desafios crescentes da mudança do clima, diz cientista do IPCC

Thelma Krug, membro do corpo de cientistas da ONU para mudanças climáticas, diz que situação no RS é oportunidade para repensar planos de adaptação

Cristiane Prizibisczki ·
13 de maio de 2024

Enquanto o Rio Grande do Sul ainda contabiliza suas perdas – humanas e materiais –, cientistas alertam para a necessidade de rever os planos de enfrentamento e adaptação às mudanças climáticas.

Estudo publicado na última sexta-feira pelo ClimaMeter, iniciativa que provê análises rápidas sobre eventos climáticos, indicou que as chuvas no sul do Brasil foram exacerbadas tanto pela mudança no clima provocada pelo homem quanto por variabilidades climáticas. 

A mensagem, no entanto, não é nova. Há décadas o corpo científico da ONU para as Mudanças Climáticas, o IPCC, vem alertando para a exacerbação da gravidade dos eventos climáticos.

((o))eco conversou com Thelma Krug, cientista do IPCC que ocupou a vice-presidência do grupo entre 2015 e 2023, sobre os recentes acontecimentos climáticos no sul do país e sobre a necessidade – e capacidade – brasileira para a adaptação. 

Confira:

((o))eco – O IPCC, em seus relatórios, previu que fenômenos meteorológicos extremos se tornariam recorrentes por volta de 2030 ou 2040. Temos visto, no entanto, que o 1,5ºC já foi alcançado em algumas ocasiões, trazendo consigo consequências como esta que o RS está vivendo. Isso significa que é tarde para uma adaptação?

A matemática Thelma Krug, ex-vice-presidente do IPCC. Foto: Inpe

Thelma Krug – No relatório do Grupo de Trabalho I (Base Física da Mudança do Clima – 2019), o IPCC indica que a estimativa de se exceder 1.5ºC de aquecimento global (para um período de observação de 20 anos) ocorre no início dos anos 2030, assumindo que não haja erupção vulcânica (que resfria a temperatura). Neste relatório, a melhor estimativa para o aumento da temperatura global de superfície causado pelo ser humano é de 1.07oC. Esse valor já deve ter sido alcançado, mas somente será atualizado pelo IPCC quando da publicação do relatório especial sobre Cidade e Mudança do Clima, em aproximadamente 2 anos e meio. O que pode ocorrer é que, como o aquecimento não se distribui uniformemente no planeta, algumas áreas (como a parte mais ao norte do hemisfério norte) já podem estar experimentando um aumento da temperatura média maior que 1.1oC.

Independente do aumento, ainda há várias medidas de adaptação que podem ser implementadas para reduzir os riscos futuros da mudança do clima. Há, sim, situações onde há limites para adaptação, mas isso não implica que não haja potenciais opções para diferentes situações.

A situação no RS foi causada por uma série de fatores, incluindo fatores meteorológicos (frente fria, massa de ar). O quanto as mudanças climáticas contribuíram para o cenário atual? Dá pra estimar a porcentagem de responsabilidade de eventos naturais, como o El Niño, e a das mudanças climáticas?

Não é possível fazer esse tipo de atribuição. Há evidência de que o aquecimento antrópico global causou um aumento na frequência, intensidade e/ou quantidade de eventos de forte precipitação em escala global, mas há menos evidências para associações regionais. Em escalas regionais, a evidência da influência humana em precipitação extrema é limitada, apesar de ter-se encontrado que a influência humana foi uma causa significativa de eventos individuais de forte precipitação. Desde o penúltimo relatório do IPCC (AR5), a atribuição de eventos meteorológicos extremos emergiu como um campo crescente de pesquisa climática, com crescente literatura, mas ainda é em geral difícil separar as causas antrópicas da variabilidade natural em eventos meteorológicos extremos individuais.

O Brasil tem enfrentando vários eventos extremos, como a seca na Amazônia e as enchentes no sul do país. Esses eventos estão interconectados de alguma forma? Quais os paralelos que a ciência pode traçar?

O Brasil tem uma extensão continental e foi dividido no último relatório do IPCC em cinco sub-regiões climáticas. Cada uma dessas sub-regiões é mais vulnerável a certos eventos meteorológicos e climáticos. Por exemplo, a floresta amazônica foi altamente impactada por secas sem precedentes e altas temperaturas em 1998, 2005, 2010, e 2015/2016, que são parcialmente atribuídas à mudança do clima. O efeito combinado da mudança do uso da terra promovida pelo ser humano e a mudança do clima aumenta a vulnerabilidade dos ecossistemas terrestres a eventos climáticos extremos e incêndios. A região sub-climática que compreende o Rio Grande do Sul é a única onde foi observado um aumento na tendência de precipitação extrema e uma atribuição, embora com baixa confiança, da influência humana neste aumento.

Esta sub-região tem uma alta frequência de ocorrência de eventos convectivos intensos e severos e, por conta disso, fortes ventos afetam o sul do Brasil. A costa do rio da Prata é sujeita a inundações quando há fortes ventos vindos do Sudeste e vimos esses ventos fortes também ocorrendo nesta semana tão dramática, contribuindo ainda mais para retardar a volta à “normalidade”.

O RS foi avisado há cerca de 10 anos das possibilidades de eventos como esse acontecerem. O que o estado deveria ter feito, concretamente, para se preparar?

Um evento extremo da natureza da que ocorreu no Rio Grande do Sul seria difícil de se antecipar. Para um evento de forte precipitação, considerado como o maior já vivenciado pelo Estado, até mesmo as possíveis ações de adaptação implementadas poderiam não ser efetivas para evitar os impactos da enorme catástrofe que assolou municípios inteiros. Creio que será uma oportunidade importante para se repensar a reconstrução com base em possíveis cenários de riscos meteorológicos e climáticos futuros.

O IPCC indica que uma adaptação efetiva pode ser obtida ao enfrentar-se os déficits de desenvolvimento pré-existentes, particularmente as necessidades e prioridades de assentamentos e economias informais. Há urgência em assegurar-se que os sistemas sociais estejam melhor preparados para responder aos riscos relacionados ao clima e aumentar sua capacidade adaptativa (como indicado na página 1748, capitulo 12 do relatório WG II).

Também de acordo com o IPCC, a adaptação e mitigação efetivas dependem de políticas e medidas em múltiplas escalas, particularmente quando se trata do envolvimento das pessoas mais expostas e vulneráveis… A participação de especialistas, comunidades e cidadãos demonstrou ser efetiva. Mas o importante é não perder de vista que a educação, conscientização e preparação de todos é hiper importante – alertas precoces exigirão que todos sigam e ajam de acordo com as instruções. Nem sempre isso ocorre… e ter também a preocupação de como agir com os animais domésticos também…

É possível afirmar que a situação no RS, ou a que a Amazônia viveu no final de 2023, com a seca extrema, vai se repetir num futuro próximo?

À medida que o aquecimento for aumentando, pode-se esperar cada vez mais riscos associados a eventos meteorológicos e climáticos extremos. Eventos raros, como os que acontecem a cada 50 ou 100 anos, passarão a ser mais frequentes, e as regiões tropicais são projetadas a ser mais afetadas por alguns desses eventos.

Segundo o IPCC (GT II, volume 1, página 13), o aquecimento global alcançando 1.5ºC em um futuro próximo causará aumentos inevitáveis em múltiplos perigos climáticos e que apresentam múltiplos riscos para ecossistemas e humanos (confiança muito alta). O nível do risco dependerá de tendências de curto-prazo na vulnerabilidade, exposição e desenvolvimento socioeconômico e adaptação ([o relatório em questão reafirma o ponto citado com] alta confiança). Ações de curto prazo que limitam o aquecimento global próximo a 1.5ºC reduziriam substancialmente as perdas e danos projetados relacionados à mudança do clima em sistemas humano e natural, comparado com níveis de aquecimento mais elevados, mas não podem eliminar todos eles ([IPCC reafirma com] confiança muito alta).

Existem diferenças regionais, e os riscos são maiores onde espécies e pessoas vivem próximas a seus limites termais, ao longo da costa, próximo a rios, em encostas ou com grandes vulnerabilidades. Muitos riscos são inevitáveis em curto-prazo, independentemente dos cenários de emissões, mas muitos riscos podem ser moderados com adaptação.

O Brasil tem um Plano de Adaptação à Mudança do Clima desde 2016. O quanto desse plano foi de fato tirado do papel?

O Brasil está desenvolvendo o AdaptaBrasil… mas veja, a adaptação para minimizar os riscos pode ser feita sem muitos dados e modelos, mas outras requerem estudos, principalmente a identificação de áreas vulneráveis que dependem da topografia, tipo de solo, proximidade a áreas críticas, recorrência de eventos meteorológicos e climáticos extremos, estudos socioeconômicos… ou seja, é uma questão que exige estudos para que não sejam implementadas ações de adaptação que sirvam para minimizar os riscos vivenciados no presente, sem projetar adequadamente os potenciais riscos futuros. Há um conjunto de fatores que podem permitir ou limitar o planejamento e implementação de opções de adaptação e potencialmente sua efetividade. Isto inclui governança, financiamento, conhecimento, assim como diferenças culturais, sociais, políticas e econômicas que influenciam a vontade individual ou coletiva e a capacidade para agir. Conforme o IPCC (WG II, volume 3, página 2580), ‘as transições necessárias para um desenvolvimento resiliente ao clima requer ser apoiada por mudanças radicais em governança, desenvolvimento de conhecimento, aplicação de tecnologia, financiamento e normas sociais’. E a questão é que não existe uma receita que funcione para todos… mesmo um arcabouço nacional não é sempre suficiente para motivar ação contra a mudança do clima em níveis inferiores, particularmente quando o documento de orientação falha em formular claramente como deve ser usado e operacionalizado em níveis inferiores de governança.

O que o país precisa fazer para enfrentar situações como a vivida no RS?

Ciência – o apoio à geração de conhecimento é fundamental para que o país possa entender mais profundamente suas necessidades, que são regionalmente específicas. Comunicação, envolvendo todos os agentes possíveis – e para lidar com negacionistas do clima, nada como invocar o princípio da precaução, ou seja, na falta de conhecimento científico pleno, que isto não seja um impedimento para a implementação de ações para prevenir e minimizar os riscos provocados por eventos meteorológicos e climáticos. Envolvimento das comunidades no processo decisório, das populações mais vulneráveis, os tornam também importante atores na implementação de ações de adaptação e mitigação, a formação de comunidades organizadas para apoiar ações locais de prevenção, e como envolver o setor privado. Há tantos elementos de contorno que cito aqui somente alguns.

Por fim, o IPCC WG II, volume 1, (página 26) reconhece que a adaptação não previne todas as perdas e danos, mesmo com adaptação efetiva, já que esses se distribuem de forma desigual entre as regiões e setores. Com o aumento do aquecimento global, perdas e danos aumentam e tornam-se difíceis de evitar, principalmente nas populações mais pobres e vulneráveis, aumentando a desigualdade.

Como membro do IPCC, como você se sente ao ver situações como a que o RS enfrenta agora, sendo que o estado foi alertado pela ciência há décadas?

Na avaliação da extensa literatura feita pelos autores nomeados e selecionados para produzir os relatórios especiais e de avaliação do IPCC, há muita evidência e concordância sobre os impactos observados da mudança do clima e os riscos futuros projetados a partir de modelos que se tornam cada vez mais robustos. Ao longo do tempo, as evidências foram dando suporte para os resultados apresentados pelo IPCC – a cada novo ciclo, o grau de confiança vai aumentado progressivamente, e a velocidade com que o aumento global da temperatura está se manifestando nos últimos 50 anos, vem fortalecendo a necessidade de ações concretas, o que não tem sido plenamente exercitado no âmbito político. Um dos elementos que dificulta a tomada de ação em nível local/regional, a meu ver, refere-se ao fato de haver limitada informação local/regional, por conta de falta de dados ou de literatura, ou pela não concordância entre a literatura existente. Por isso, ressalto novamente a preocupação de investimentos na ciência, na pesquisa, na capacitação – só assim o país, regional e localmente se prepara para ajudar na tomada de decisão e fortalecer a governança em todos os níveis.

Entretanto, é claro que a ciência existente já é suficiente para que os governos, em nível global, avancem na implementação de medidas de mitigação muito mais ambiciosas do que as atuais, e que apoiem os países em desenvolvimento através não só de financiamento, mas também de capacitação e transferência de tecnologia, para que possam contribuir no combate ao aquecimento, mesmo entendendo que suas contribuições individuais são ínfimas frente à responsabilidade pelo aquecimento que está aí. De qualquer forma, minimamente ou não, somos todos responsáveis…

  • Cristiane Prizibisczki

    Cristiane Prizibisczki é Alumni do Wolfson College – Universidade de Cambridge (Reino Unido), onde participou do Press Fellow...

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