Reportagens

Senador quer afagar eleitores cortando parque no Rio Grande do Sul

Projeto de lei sugerido pelo próprio ICMBio pode reduzir a proteção de campos de altitude, araucárias e fauna silvestre

Aldem Bourscheit ·
10 de maio de 2023 · 2 anos atrás

Projeto de lei de senador ruralista quer encolher um parque nacional no Rio Grande do Sul. O texto usa análises de órgão ambiental federal demandadas pelo próprio parlamentar. A reserva protege animais e vegetação ameaçados no país, como onça-parda, campos de altitude e matas com araucárias.

O Parque Nacional dos Aparados da Serra pode perder 1.300 ha ou 13% de seus 10,2 mil ha. O recorte atinge a região do Morro Agudo, ao norte da reserva (mapas abaixo). Isso pode ocorrer se o Congresso aprovar o Projeto de Lei 698/2023, assinado em fevereiro por Luis Carlos Heinze (PP/RS). 

Ele alega que a região “não faz parte dos planos da área a ser protegida” há décadas e que sua redução “corrige erros na descrição de limites do parque que causam insegurança jurídica para o correto entendimento das delimitações daquela unidade de conservação”.

O projeto se apoia numa nota técnica de agosto passado do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), responsável pelas reservas ecológicas federais. O texto indica supostos erros no traçado e sugere um projeto de lei para reduzir o parque, como fez o senador.

Na serra gaúcha está grande parte da base de votantes de Heinze. O ex-deputado federal, engenheiro agrônomo e produtor rural foi eleito senador em 2018, com apoio declarado ao então candidato à eleição presidencial Jair Bolsonaro (PL). 

O parecer do ICMBio decorre de uma análise do órgão sobre os limites da área protegida demandada pelo próprio senador, Prefeitura de Cambará do Sul (RS), município que divide o parque com Praia Grande (SC), associações de moradores, de produtores e de turismo.

“Os campos de altitude são visados para geração de energia eólica, plantio de pinus e eucaliptos, turismo intensivo e outras atividades econômicas que podem conflitar com o parque nacional”, lembra a bióloga Lisiane Becker, da ong Instituto Mira-Serra. 

A nota e a análise correram quando o ICMBio foi presidido por coronéis da Polícia Militar do Estado de São Paulo, todos nomeados pelo então ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, hoje deputado federal pelo PL de São Paulo.

Caminho das pedras

Aparados da Serra foi criado em 1959 com 13 mil ha, reduzidos aos atuais 10,2 mil ha em 1972. Seu plano de manejo de 1984 descreve que o Morro Agudo “não apresenta maior interesse para o Parque” porque teria, em grande parte, “campos e fazendas com benfeitorias de alto custo”.

Em seu projeto, Heinze alterou o trecho para “não apresenta interesse para o Parque”, removendo a expressão “maior”. A realidade parece distinta. O plano de manejo de Aparados desde 2004 não descarta o Morro Agudo e ações da autarquia valorizam sua manutenção no parque nacional.

Informações colhidas por ((o))eco apontam que naquela área há 11 imóveis rurais com pequena agricultura e criação de gado, porcos e javalis. Três deles já foram incorporados ao parque com desapropriações executadas pelo ICMBio desde 2014, nas quais foi investido cerca de R$ 1,2 milhão. 

Há processos para agregar os demais imóveis, com recursos sobretudo da compensação ambiental de obras licenciadas. Todavia, tudo foi atrasado pela mobilização capitaneada por Heinze, conta um servidor federal que pediu para não ser identificado.

“O movimento para recortar o parque ganhou força quando os imóveis passaram a ser notificados para sua regularização. Isso aqueceu o comércio de terras valorizadas, complicando a consolidação fundiária da área protegida”, diz.

Por email, a Assessoria de Imprensa do ICMBio afirmou que a nota técnica “formalizada pela gestão anterior e que deu sustentação ao PLS 698/2023 não foi completamente discutida por todos os processos interessados do Instituto” e “não incluiu manifestação do Parque Nacional de Aparados da Serra”. 

“É necessário reavaliar as questões apresentadas, a fim de propor novas diretrizes alinhadas à atual gestão. No que tange à consolidação territorial, os Parques Nacionais Aparados da Serra e Serra Geral são prioridades da gestão e estão em estágio avançado regularização”, completa a autarquia.

Aparados tem oito de cada dez hectares já regularizados. Além do Morro Agudo, outra parcela é disputada judicialmente com moradores na área do Cânion do Itaimbezinho. Dos 17,3 mil ha do vizinho Parque Nacional da Serra Geral, 11,4 mil ha (66%) estão regularizados, também levantou ((o))eco.

A consolidação dos limites e das zonas de amortecimento de parques nacionais e de outros tipos de unidades de conservação é indispensável para proteger ambientes naturais e espécies raras ou ameaçadas de extinção, nos estados ou no país.

Dentre os traçados amarelo e vermelho, a área que pode ser cortada do Parque Nacional dos Aparados da Serra. Fonte: Divulgação/O Eco

Campos em alta

Aparados da Serra é uma reserva de Mata Atlântica que abriga espécies como papagaio-de-peito-roxo, guaxinim, veste-amarela e onça-parda, além de mosaicos com campos de altitude e florestas. Há 260 hectares de matas com araucárias estão na área que pode ser recortada do parque nacional.

Restam apenas 3% da cobertura original do chamado pinheiro-brasileiro no país. A árvore ameaçada de extinção é protegida por uma resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), de 2001, e pela Lei da Mata Atlântica, de 2006. 

A região de majestosos cânions entre os Aparados e a Serra Geral foi reconhecida ano passado pelas Nações Unidas como um geoparque, onde belezas geológicas e cênicas devem ser alvo de um desenvolvimento econômico sustentável do ponto de vista social e ambiental.

Os riscos de eliminação e a ecologia dos campos de altitude eram desprezados quando o parque nacional foi criado, em 1959. Ao longo das décadas,  a ciência vem jogando luz na rica biodiversidade dessas formações, cuja área encolheu 37% desde 1985, de 951 mil ha para 602 mil ha.

Cobertura de campos nativos no Rio Grande do Sul entre 1985 e 2021. Fonte: Eduardo Vélez / MapBiomas

Em 2008, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) destacou a “incontestável relevância biológica” e um grande acúmulo “de carbono atmosférico em solos” dessas formações campestres, ajudando a combater a crise global do clima. 

Dois anos depois, o livro Biodiversidade dos Campos de Cima da Serra reforçou que a região de “extrema importância biológica” abriga mil espécies de vegetais e de animais. Estudos apontam que 25% das plantas existem lá.

Essas pastagens naturais abrigam muitas espécies de aves, mais de 7% das espécies de anfíbios do país, além de variados tipos de peixes e de crustáceos. Mesmo assim, apenas 2,7% dos campos de altitude gaúchos estão em unidades de conservação. 

Pesquisador do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Gerhard Overbeck alerta que a baixa proteção arrisca a perpetuação desses ambientes, cuja distribuição e biodiversidade se acomodaram ao longo dos séculos por variações do clima.

“Os campos naturais têm baixa resiliência [capacidade de recuperação quando impactados], mas recebem bem menos atenção do que florestas para conservação”, constata Overbeck, líder do Grupo de Pesquisa CNPq Biodiversidade e conservação dos ecossistemas campestres no sul do Brasil.

As ameaças são engrossadas com outros projetos legislativos tramitando no Congresso. Propostas da senadora Ana Amélia Lemos (PP/RS) e do deputado federal Alceu Moreira (MDB/RS) retiram campos de altitude da Lei da Mata Atlântica e os liberam para economias como abertura de lavouras e pecuária.

O senador Carlos Heinze não atendeu nossos pedidos de entrevista até o fechamento da reportagem. Sua Assessoria de Imprensa informou por email que o parlamentar “fez o projeto com fundamento na nota técnica do ICMBio”. 

O Cânion do Itaimbezinho, no Parque Nacional dos Aparados da Serra. Foto: Angelineef / Creative Commons
  • Aldem Bourscheit

    Jornalista cobrindo há mais de duas décadas temas como Conservação da Natureza, Crimes contra a Vida Selvagem, Ciência, Agron...

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Comentários 3

  1. Paulo diz:

    Bom dia
    Porque, sr. Gaspar, não diminuem..
    Porque a educação ambiental não esta funcionando, está falhando.
    Porque os juizes aplicam penas muito brandas para os crimes.
    Porque, muitas vezes o MPF, não é incisivo nos argumentos.
    Porque os processos dos delegados deixam muitas falhas, nas investigações.
    Porque a Advogacia da União, em muitas e muitas vezes não exige, o que consta nas leis.
    E por aí vai..

    Abraços

    Inté


    1. GASPAR ALENCAR diz:

      Paulo se me permite podemos acrescentar o custo de produção o aumento da produtividade, o crescimento ilimitado, o consumo desenfreado e o desperdício. A ilusão de que os preços irão baixar! Vejamos se ainda temos X% de florestas nativas pq não acrescentaremos no PIB. Quem tem mais recebe mais e a receita vai para onde mais é necessário. E ai iremos criar os Sentinelas Comunitários, As Brigadas Municipais, o Monitoramento sistemático etc, etc, e inverter a lógica do comercio: Cooperação mutua, parcerias, serviço voluntario e monitoramento .


  2. GASPAR ALENCAR diz:

    Sou fiscal ambiental, pesquisador, educador e estou gestor. Trabalhamos com desmatamento, agrotóxicos e educação rural antes de ingressar no serviço publico. Lá pela década de noventa eu pensava que sobrariam as UC, mas pelo andar da carruagem e se a sociedade não tomar pé da situação até as Áreas Protegidas, já sofrem estas ameaças de forma rotineira. Como é sabido não existe mágica e não existe soluções fáceis para problemas complexos. Nossa equipe se apropriando de uma metodologia do monitoramento sistemático trabalhando diuturnamente conseguimos zerar as ações antorpicas de caça e diminuir no entorno de uma UC. O desmatamento não diminui, os incêndios não diminuem, a caça e o trafico de animais silvestres não diminuem. A pergunta que não quer calar e porque?