Todo montanhista brasileiro é minimamente familiar ao nome do Parque Nacional da Serra dos Órgãos (RJ) e já fez ou figura na sua lista de desejos a travessia Petrópolis x Teresópolis. Eu não sou exceção à regra. Ansiava pelo dia em que iria atravessar a Serra cujo contorno eu romanticamente namorava à distância como moradora da cidade do Rio de Janeiro. O parque está a menos de 100 km das terras cariocas e, em dias de boa visibilidade, o famoso Dedo de Deus pode ser facilmente reconhecido no horizonte.
Nos dias 3 e 4 de fevereiro, entretanto, a boa visibilidade não estava na previsão do tempo, pelo contrário. Ainda assim, foi a data escolhida para realização da 10ª travessia comemorativa do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). E no primeiro sábado de fevereiro (03), em pleno verão, com risco de tempestades no horizonte, lá estávamos nós, dando início a nossa expedição.
Aproximadamente 20 pessoas participaram da caminhada. No grupo estava o gestor e o coordenador de uso público do parque, Leandro Goulart e Leonardo Gomes, respectivamente, e o chefe da Coordenação Geral de Uso Público e Negócios do ICMBio, Pedro da Cunha e Menezes e a chefe da Divisão de Fomento a Parcerias do ICMBio, Carla Guaitanele. Além de trilhar, o grupo também deu início à pintura das pegadas de sinalização do Caminhos da Serra do Mar, uma trilha de longo percurso cujos 51 km cruzam o parque nacional e incluem a travessia Petrô-Terê, como chamam os íntimos, no roteiro.
As botas pretas e amarelas representam o padrão do Sistema Brasileiro de Trilhas de Longo Curso, mas trazem na sola um símbolo local, a silhueta emblemática e inconfundível do Dedo de Deus. “A ideia é que cada lugar terá sua identidade própria, mas dentro do mesmo padrão de sinalização, nas cores preto e amarelo, para unificar o sistema e facilitar a orientação dos usuários”, explica Pedro Menezes.
A travessia começou na portaria do parque em Petrópolis, o início tradicional do percurso, e segue em direção à Teresópolis. Esta escolha de sentido privilegia a rota com maior impacto cênico, como me garante um condutor de turismo que integrava o grupo. A caminhada normalmente é dividida em três dias, com pernoite nos dois abrigos de montanha do parque, no Açu e no Sino, mas nós nos desafiamos a fazê-la na duração de um final de semana. A dificuldade não está na quilometragem de 28 km no total, mas no fato de estarmos na crista da serra e essa distância ser traduzida em muita – muita mesmo! – subida e descida.
O trekking já começa a 1.029 metros de altitude, apenas um aperitivo para a cota altimétrica de 2.000 que está por vir, ou melhor, por subir. O trecho inicial é concomitante a trilhas que levam a outros atrativos do parque, como a cachoeira do Véu da Noiva. O cenário verde e a densa copa das árvores demarcam a área de Mata Atlântica, que se estende até onde pode morro acima, enquanto é substituída gradualmente pela vegetação arbustiva característica dos campos de altitude.
Ainda na floresta, um jacuaçu (Penelope obscura) cruza nosso caminho. Apenas uma espécie entre as 462 da rica avifauna registrada no Parque Nacional da Serra dos Órgãos. A biodiversidade é um reflexo da grande diversidade de habitat proporcionada pela variação no clima, no solo, e nas formações geológicas e vegetacionais. Entre as espécies ameaçadas que habitam o parque, está o maior primata das Américas, o muriqui (Brachyteles arachnoides).
A subida que nos levará aos céus da Serra dos Órgãos começa de forma gradual e aos poucos se torna um cansativo zigue-zague montanha acima. Enquanto tentava rechaçar o inevitável pensamento de que iria subir eternamente, fui surpreendida por um coro de saudades (Lipaugus ater), aves cujo nome é atribuído ao seu canto melancólico. Fáceis de ouvir, porém não de ver, fomos premiados não apenas com o soneto, mas também com o avistamento de três delas, com seus corpos negros caprichosamente adornados com uma rajada amarela nas asas. Uma beleza que não combinava com a tristeza da sua cantoria.
Sem pagar o couvert artístico, continuamos a nossa subida em direção à Pedra do Queijo. O nome faz referência ao formato estranhamente redondo que difere de tudo ao redor. Mas eu confesso que, de frente para o visual do Vale do Bonfim, não liguei para rocha e tratei-a apenas como um assento privilegiado para contemplar a paisagem.
Os céus foram benevolentes o suficiente a ponto de exibir frestas de um céu azul a esta altura, o que contraria todas as previsões para esta época do ano, quando há uma alta incidência de chuvas. Na direção das montanhas que estávamos prestes a subir, entretanto, as nuvens se exibiam perigosamente cinzentas, um possível anúncio de que a chuva era uma questão de tempo.
Curiosamente, esse trecho de subida ganhou um nome “Isabeloca”. A origem da alcunha é misteriosa e incerta, mas reza a lenda que a Princesa Isabel gostava de colher e observar flores ali. O sufixo “oca” significa casa e o nome representaria “casa de Isabel”. Se é verdade ou não ninguém sabe, mas para corroborar a história o trecho de fato era como um jardim de flores. Eis uma das vantagens de trilhar na época de chuvas, quando o florescer está em sua máxima exuberância. Amarelas, lilases, vermelhas, uma primavera fora de época no topo da montanha, com espécies como a bela orquídea pingo de ouro (Oncidium varicosum) e canela de velho (Miconia albicans), muito usada para chás e remédios naturais. Observar cada uma das flores que se exibiam coloridamente se tornou também uma desculpa para fazer inúmeras paradas ao longo da penosa subida.
Quando os últimos metros da íngreme subida real enfim terminaram, chegamos ao Chapadão, na crista da montanha. A partir daqui a trilha segue pela cumeeira, marcada pelas rochas e pela vegetação rarefeita dos campos de altitude. A neblina ajuda a construir o cenário típico das alturas. Andamos por entre as nuvens e o vento faz com que a paisagem esteja ora exposta ora encoberta pelo tapete branco do céu. Nos raros momentos em que se revela, a visão panorâmica das montanhas que se prolongam em direção ao litoral é formidável e faz por merecer o nome Serra do Mar.
Depois de 11 km de caminhada, chegamos aos Castelos de Açu, a aproximadamente 2.150 metros de altitude, onde fica o Abrigo Açu, nosso local de pernoite. A estadia precisa ser reservada com antecedência e há limite de 30 pessoas por noite, distribuídas em beliches ou em sacos de dormir em um quarto coletivo. Também há uma área de acampamento, a alguns metros do abrigo, que conta com um banheiro seco.
As mordomias do abrigo, entretanto, incluem uma cozinha e um banheiro com – rufem os tambores – água quente! A mordomia inusitada para montanha é alimentada por um botijão de gás, assim como o fogão. A missão de trazê-lo até aqui cabe ao abrigueiro, o funcionário responsável por cuidar do abrigo. Se a trilha parece difícil nos trechos de subida, imagina fazê-la com um botijão de 21 quilos nas costas? Com esse pensamento, nem ousei burlar o limite de 5 minutos do banho quente, estipulado exatamente para dosar o consumo do precioso gás. Para ser bem sincera, estar no alto da montanha com o clima frio e cinzento, e ter o privilégio da água quente no meu corpo foi um dos momento em que senti maior apreço à civilização. O valor de 15 reais cobrado pelo banho quente foi irrisório comparado ao meu deleite.
Um dos destaques para quem faz a travessia é assistir o pôr-do-sol do alto da montanha. Infelizmente, esse é outro espetáculo que precisarei retornar para assistir, uma vez que o tempo fechado persistiu e rapidamente se converteu em uma intermitente chuva. Tudo que eu pude ver foram umas nuvens ligeiramente rosadas e alaranjadas.
O dia seguinte começou com a mesma sina nublada de caminhar nas alturas sem ver praticamente nada. Saímos do abrigo antes das 9h, e a neblina estava tão densa que era difícil ver o que estava 10 metros adiante, muito menos ver um dos famosos cartões-postais do parque: os Portais de Hércules.
Os portais são um bate-volta dentro do caminho principal da travessia, a cerca de 1 km do abrigo, e um desvio justificado pela fama de ser o mirante mais belo da Serra dos Órgãos. Outro motivo para eu refazer esse trekking em tempos mais ensolarados. A lista dos atrativos que se esconderam por detrás das nuvens é longa, mas tive sorte de vislumbrar ao menos a peculiar Pedra do Garrafão. Além disso, a própria trilha apresentava seus atrativos, ou melhor, seus desafios.
O primeiro que encaramos foi o Vale da Morte, ou para ser menos fúnebre, Vale do Eco, onde é preciso descer uma íngreme parede rochosa com o apoio de uma corda – e uma cargueira nas costas. A descida é conhecida como “mergulho” pelos montanhistas por razões autoexplicativas e rendeu uma boa dose de adrenalina. O caminho até a Pedra do Sino é um sobe e desce que alterna entre as cristas rochosas e os vales verdes de floresta atlântica.
Na sequência, há o “elevador” e, obviamente, o nome é uma piada porque a última coisa que você pode esperar encontrar é uma ajuda tecnológica para subir a montanha. O elevador é na verdade uma sequência de grampos de ferro que escalam o paredão rochoso vertical. A subida em si não é difícil, mas pode ser vertiginosa e intimidadora para quem não é fã de alturas.
Por fim, o obstáculo final: o cavalinho. Desde o início do segundo dia de caminhada, os montanhistas não paravam de mencioná-lo como o local em que os visitantes têm mais dificuldade. Para os que não conhecem, vou tentar ilustrar com palavras da melhor forma possível o que é o cavalinho: um grande bloco de pedra no meio da subida. Para transpô-lo é necessário um misto de flexibilidade e força que resulta em posições minimamente estranhas, entre elas a derradeira “montada” na pedra, com uma perna pendurada para cada lado a mais de 2 mil metros de altura, no melhor estilo caubói das montanhas.
O último obstáculo físico estava vencido, mas a barreira de nuvens continuou insuperável. Foi um pouco frustrante estar a alguns metros do visual estonteante da Pedra do Sino ‒ que tantas vezes babei vendo em fotos ‒ e não ver nada. Uma parede branca impenetrável me roubava do momento “uau” que ansiei desde que soube que iria fazer a travessia. “Ir no Sino agora é a mesma coisa que não ir, porque o visual não está lá”, consolou-me um dos servidores do parque, “você vai ter que voltar em um dia de céu azul”. Com certeza, mais um motivo para lista.
A época ideal para realizar a travessia é entre maio e setembro, durante a temporada de montanhismo, quando o clima é mais seco e o sol não é tão forte. Porque se por um lado foi ruim o tempo não estar aberto, por outro lado as mesmas nuvens que ocultaram a paisagem ocultaram o sol impiedoso do verão, cujo poder nossa pele sentiria ainda mais por estarmos a cerca de 2 mil metros de altitude ‒ bem mais próximos do astro rei do que os banhistas na praia.
Tradicionalmente, o pernoite do segundo dia de travessia é feito no Abrigo 4, próximo à Pedra do Sino, ponto mais alto da Serra dos Órgãos, a 2.263 metros de altitude, e o local favorito dos montanhistas para assistir ao pôr-do-sol ‒ quando o céu permite. Independente da boa vontade celestial, nos permitimos apenas uma rápida e quente copo de café, e seguimos nossa caminhada rumo aos 8 km finais.
A partir do abrigo, a travessia vira uma trilha fácil, uma longa e gradual descida em ziguezague. Apesar do solo acidentado dificultar a caminhada em alguns trechos, assim como a chuva ‒ que a esta altura tinha aparecido na forma de uma garoa fina sob nossas cabeças ‒ que adicionava pedras escorregadias e terra lamacenta ao roteiro e nos acompanhou até o final do dia. A mesma chuva alimentava as volumosas cachoeiras ao longo do caminho.
A névoa que nos bloqueou a paisagem nas alturas, na floresta se transformou em um elemento místico que deu à mata um ar encantado. Normalmente reservada ao terceiro dia de travessia, completamos a descida até a portaria do parque em Teresópolis apenas no início da noite, pouco antes das 20h, quando a escuridão já tomava conta da floresta e nos obrigava a sacar as lanternas. Literalmente no apagar das luzes, concluímos a 10ª travessia do cronograma especial de aniversário do ICMBio. A oportunidade de caminhar por entre as frondosas árvores da Mata Atlântica, as gigantes da Floresta Amazônica, na imensidão do Cerrado, nas dunas dos Lençóis, à beira do Oceano Atlântico e nas alturas das montanhas foi um privilégio. Foram 365 km no total e cada passo reforçou em mim a grandiosidade do nosso patrimônio natural. Somos, afinal, o país mais biodiverso do mundo. E quanto melhor conhecermos nossas áreas protegidas, melhor poderemos defendê-las. Porque o clichê é verdadeiro, é preciso conhecer para conservar.
Travessia Petrópolis x Teresópolis
Onde: Parque Nacional da Serra dos Órgãos (RJ) Distância: 28 quilômetros Pernoite? Sim. O pernoite é feito em abrigos e é necessário agendá-los previamente. *A contratação de um guia não é obrigatória, porém altamente recomendada, principalmente se for a primeira vez que o caminhante realiza o percurso. |
*Duda Menegassi é jornalista de ((o))eco e à convite do ICMBio acompanhou as dez travessias em unidades de conservação realizadas em comemoração aos dez anos do órgão ambiental.
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Fiquei com vontade de fazer essa travessia. Parabéns!
Excelente matéria Duda. parabéns!
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