O assassinato da líder quilombola e coordenadora nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ), Bernadete Pacífico, na noite de quinta-feira (17), é mais uma das muitas injustiças sofridas pelos povos de regiões remanescentes de quilombos do Brasil, disse hoje o movimento.
Apesar da representatividade no país e da condição de alvo em recorrentes conflitos por terra, os quilombolas ainda são apagados das decisões políticas sobre suas vidas e seus territórios, decisões estas que poderiam evitar casos como o ocorrido na noite de ontem.
Bernadete Pacífico era líder do Quilombo Pitanga dos Palmares, um território de 854 hectares onde vivem cerca de 290 famílias. Inserido em uma Área de Proteção Ambiental (APA), onde a extração de madeira é proibida, o quilombo vive da produção de farinha, frutas e verduras.
Segundo investigações preliminares, Pacífico vinha sofrendo constantes ameaças de madeireiros ilegais. Ela estava sob proteção da Polícia Militar, por meio da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos da Bahia, havia dois anos. Mas a proteção fornecida era “simbólica”, segundo advogado da família. Foi assassinada com mais de 10 tiros no rosto.
“Este acontecimento trágico evidencia a crueldade das barreiras que se colocam no caminho de quem luta”, disse a CONAQ, em nota sobre o falecimento da líder.
O assassinato da líder, no entanto, se soma a uma outra chaga que desde a última semana o movimento tenta curar: a falta de menção na Declaração de Belém.
Escudos de proteção
O Brasil possui 1,32 milhão de quilombolas, residentes em 1.696 municípios, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o primeiro a contar o número de descendentes de escravizados no país. Cerca de 400 mil deles vivem na Amazônia. Em termos comparativos, o país possui 1,7 milhão de indígenas.
A área que os quilombolas ocupam ainda é incerta, já que a maioria dos quilombos ainda não foi devidamente titulado. Mas sabe-se que eles são responsáveis por grandes porções de vegetação nativa.
Somente os quilombos de Cachoeira Porteira, no Pará, possuem cerca de 235 mil hectares, uma área equivalente a duas vezes a cidade do Rio de Janeiro. Este quilombo, assim como outros cerca de 400 inseridos em território paraense, ainda não foram titulados.
“Somos 600 comunidades [no estado] e não chegamos a ter 200 comunidades tituladas. Para ter a dimensão dessa área, precisamos ter um georreferenciamento muito bem feito, muito bem preparado. Só Cachoeira Porteira tem 235 mil hectares. Agora imagina esse estado inteiro, com 600 comunidades quilombolas, passa de 1 milhão de hectares só no Pará”, diz Hilário Moraes, coordenador-executivo de Articulação da Mulungu, a associação de comunidades quilombolas paraenses.
Segundo informações obtidas via Lei de Acesso à Informação pelo InfoAmazônia, a Amazônia Legal tem 148 quilombos titulados e outros 583 em processo de titulação. Ainda que cercados por manchas de desmatamento, 99% dos territórios analisados na investigação mantiveram os registros de supressão de floresta praticamente inalterados nos últimos 13 anos.
“A presença de quilombolas na Amazônia forma verdadeiros escudos de proteção, conservando a floresta, impedindo o avanço do desmatamento e a entrada de invasores”, diz o InfoAmazônia.
Apagamento de direitos
Os direitos às comunidades quilombolas estão previstos em diferentes normas do Direito brasileiro, incluindo a Constituição Federal, em seu artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias, que diz ser dever do Estado reconhecer a propriedade definitiva de comunidades de quilombos que estejam devidamente ocupadas.
O Decreto nº 6.040, que Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, cita explicitamente as comunidades, assim como o Estatuto da Igualdade Racial.
Ainda assim, tais comunidades ainda são esquecidas em importantes documentos com normas que impactam diretamente suas vidas e uso de seus territórios.
Este é o caso da Declaração de Belém, documento assinado na última semana por líderes de oito países inseridos no bioma amazônico, com o entendimento comum das nações para o futuro da floresta e de seus habitantes.
A declaração menciona 128 vezes os “povos indígenas” e 19 vezes as “comunidades locais e tradicionais”. Não há nenhuma menção aos quilombolas.
“Somos um dos segmentos dos povos e comunidades tradicionais, mas as comunidades quilombolas têm marcos legais que os povos e comunidades tradicionais não tem. […] Nós sempre defendemos que qualquer documento, ao ser construído, tem que se referendar a povos indígenas, comunidades quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais, porque, senão, você limita direitos”, explicou a ((o))eco, ao final da Cúpula, o coordenador da CONAQ, Denildo Rodrigues.
Segundo ele, assuntos prementes para as comunidades de remanescentes de quilombos, como a defesa de territórios e mudanças climáticas, precisam necessariamente passar por aqueles que preservam tal biodiversidade.
“Nós somos contra qualquer documento que não leve em consideração toda essa riqueza étnica, essa biodiversidade que tem no país”, disse o coordenador.
Para Hilário Moraes, da Mulungu-PA, a ausência de menção foi como “um chicote nas costas”. “Estamos muito tristes, muito feridos por dentro, porque o próprio governo brasileiro, em uma carta tão linda, não menciona nosso povo, o povo quilombola. Para nós foi realmente como se fosse mais um chicote ardendo em nossas costas”.
Segundo Moraes,o movimento trabalha junto a parceiros na busca de alternativas que solucionem o apagamento dos quilombolas na Declaração de Belém.
“Estamos estudando o mecanismo para fazermos uma intervenção o quanto antes”, diz.
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