Reportagens

Quilombolas pedem consulta prévia e paralisação de obra da Suzano dentro de território tradicional

Apesar dos desmatamentos, Inema alega dispensa de licenciamento. Fórum de entidades exige agilidade dos governos federal e estadual na titulação de povos tradicionais da Bahia

Fernanda Couzemenco ·
24 de março de 2023 · 1 anos atrás

A titulação dos territórios das comunidades e povos tradicionais é uma medida fundamental para garantir sua sobrevivência e, consequentemente, dos ecossistemas naturais com os quais eles convivem e protegem há gerações. 

No estado da Bahia, o atraso na implementação dessa política tem provocado danos sociais e ambientais ainda não mensurados, incluindo agressões e mortes de pessoas e aniquilação de milhares de hectares de vegetação primária ou em estágio avançado de recuperação nos biomas Mata Atlântica, Cerrado e Caatinga, intensificando a insegurança hídrica de comunidades e cidades e a vulnerabilidade local e global frente à crise climática. 

Alguns desses casos, no Cerrado do extremo-oeste do estado, já noticiados em ((o))eco. Na Mata Atlântica, no extremo sul do estado, o alvo são quilombolas dos municípios de Caravelas e Nova Viçosa, que sofrem com desmandos da Suzano Papel e Celulose em seu território – já certificado pela Fundação Palmares, mas ainda não titulado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Os monocultivos de eucalipto avançam sobre as áreas das comunidades tradicionais, provocando seguidos danos ambientais, sociais e culturais. 

Atacar tragédias como essas pela raiz é o objetivo de uma carta endereçada a autoridades federais e estaduais, cobrando agilidade na regularização dos territórios de comunidades indígenas, quilombolas, ciganas, povos de terreiro, pescadores artesanais e marisqueiras, comunidades de fundo e fecho de pasto, geraizeiros e extrativistas. 

A carta foi enviada na última semana pelo Fórum em Defesa das Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais na Bahia e é assinada por 125 entidades. Criado em agosto, o Fórum é formado por um conjunto de lideranças das próprias comunidades e povos, além de membros do Ministério Público Federal (MPF), defensores públicos, pesquisadores e entidades parceiras, como o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP) e a Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR).

Os destinatários incluem o presidente Lula (PT), ministérios e autarquias afins, lideranças do Legislativo e Judiciário federais, e, em âmbito estadual, o governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues (PT) e as secretarias de Desenvolvimento Rural (SDR), Igualdade Racial (Sepromi), Justiça e Direitos Humanos (SJDHDS), Meio Ambiente (Sema), Segurança Pública (SSP) e Assistência Social (Seades). 

O documento traça ações a serem implementadas pelos governos federal e estadual. No caso dos quilombolas, o Fórum evidencia dados da Fundação Cultural Palmares (FCP) que mostram a vulnerabilidade fundiária dos territórios por conta da demora na finalização dos processos de titulação, paralisados há uma década no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). 

Das 674 comunidades já certificadas pela Fundação Palmares, por exemplo, quase 94% não têm sequer o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) no Incra. Considerando que 407 comunidades quilombolas (quase dois terços) estão certificadas há mais de 10 anos, o documento alerta: “mais de 100 anos serão necessários para finalizar a regularização dos territórios quilombolas na Bahia se o Incra continuar no ritmo atual”.

Os signatários pedem, para os governos Lula e Jerônimo, a elaboração de planos de atuação, com cronograma definindo prazos e metas para os próximos quatro anos e com detalhamento de ações a cada bimestre. À gestão estadual é solicitado um mapeamento de todo o território baiano, “identificando e arrecadando todas as terras públicas” e que seja feita, “com urgência, a retirada de cercas, barramentos, tapumes e similares que, ao longo de territórios tradicionais, têm fechado caminhos centenários de servidão e cercado manguezais, praias, rios, áreas tradicionais de extrativismo etc”. 

Também é pedido, para todos os povos e comunidades tradicionais, o monitoramento das regiões de conflito por uma força de segurança especializada a ser criada para este fim. A Convenção 169 da OIT é outro ponto em destaque, sendo pedida “garantia real e efetiva do direito à consulta prévia, livre e informada (…) em relação a projetos, obras, atividades e empreendimentos que impactem ou tenham potencial para impactar territórios tradicionais”. A consulta, assinalam, “deve ocorrer independentemente da fase do processo de certificação ou titulação do território”.

Os apontamos se assemelham aos que foram feitos em junho passado pelos procuradores Marília Siqueira da Costa e Ramiro Rockenbach da Silva Matos Teixeira de Almeida, na Recomendação Conjunta 2/2022, confeccionada no calor da audiência pública realizada dias antes em Salvador. Na ocasião, as comunidades quilombolas relataram que “projetos, obras, atividades e empreendimentos que impactam ou têm potencial para impactar territórios quilombolas vêm sendo objeto de licenciamento ambiental pelo Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) sem a devida e necessária consulta prévia, livre e informada aos povos e comunidades tradicionais respectivos”, assinalam os procuradores.

O documento cita uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de agosto de 2021, onde o ministro Edson Fachin salienta “a necessidade de serem implementadas medidas concretas em favor das comunidades quilombolas, impondo à União, inclusive, a elaboração de método de acompanhamento das demandas apresentadas por esses coletivos. E isso, ‘independentemente da fase do processo de certificação ou titulação, visto que as comunidades não podem ser penalizadas ou privadas de direitos em razão da mora estatal na regularização fundiária de suas terras’”.

Ao Inema, recomenda que “adote todas as medidas necessárias para assegurar Consulta Prévia, Livre e Informada às comunidades quilombolas na Bahia, listadas pela Fundação Cultural Palmares, independentemente da fase do processo de certificação ou titulação, em relação a projetos, obras, atividades e empreendimentos que impactem ou tenham potencial para impactar territórios tradicionais sujeitos à atuação desse órgão ambiental estadual”.

As máquinas na pista onde estão ocorrendo as obras para abrir a estrada da Suzano. Foto: Célio Leocádio

Estrada 

A iniciativa do Fórum baiano, calcada na audiência pública e na Recomendação do MPF, foi recebida com esperança por oito comunidades quilombolas do extremo-sul da Bahia, que desde dezembro rogam pela suspensão das obras da Suzano Papel e Celulose em uma estrada que atravessa seus territórios tradicionais e pela consulta prévia imediata, nos moldes da Convenção 169 da OIT. 

No rastro da obra, flagrantes de corte raso de Mata Atlântica e muitos transtornos aos moradores, inclusive com a retirada de uma ponte que faz a ligação entre as comunidades e onde um ancião morreu ao tentar improvisar uma solução que não deixasse os moradores ilhados entre si. 

Os relatos são fartos, mas as máquinas não cessaram o trabalho em nenhum momento, tudo com a anuência do Inema. Em ofício datado de 9 de fevereiro onde responde à notificação do procurador da República José Gladston Viana Correia, do MPF de Teixeira de Freitas, a diretora-geral do Inema, Márcia Cristina Telles de Araújo Lima, considera as obras da Suzano como meros “melhoramentos de vias” e que, por isso, estão dispensadas de licenciamento ambiental. 

Com esse posicionamento, a gestora – que já foi seguidas vezes denunciada por entidades da sociedade civil como principal responsável pela intensificação dos conflitos socioambientais que envolvem comunidades e tradicionais da Bahia na última década e foi reconduzida ao cargo em fevereiro, sob novos e intensos protestos – se mostra mais uma vez alinhada ao agronegócio e de olhos e ouvidos vedados para as comunidades. Em resposta ao mesmo procurador, a Suzano repetiu o discurso. 

Assinado pelo advogado Leandro Henrique Mosello Lima, o ofício da empresa alega que a obra em curso se enquadra como uma das ações de manutenção executadas “de maneira permanente” pela empresa, “não se constituindo como uma obra de infraestrutura pontual e específica” e que, por isso, dispensa licenciamento ambiental.

Sobre as consultas às comunidades, alega que “inexiste qualquer violação ao cumprimento do requisito da consulta livre, prévia e informada (Convenção OIT 169), por não estarem presentes os requisitos cumulativos e essenciais ao seu ensejo, notadamente quanto a existência de território declarado, reconhecido e aperfeiçoado como quilombola”, mas que, ainda assim, a papeleira “promove diálogos permanentes com as comunidades autodeclaradas quilombolas, reconhecendo sua importância”. 

Afirma ainda que os reclames em tela integram “uma sucessiva tentativa de reputar à empresa responsabilidades ou nexos causais sobre questões gerais, abstratas e coletivas, tentando contorcer a realidade com sucessivas e reiteradas manifestações com fatos desprovidos de constatação técnica, científica ou minimamente correspondentes à verdade”.

A ponte usada pelos quilombolas que foi retirada durante a obra. Foto: Célio Leocádio

Desmatamento e construções

Ambas alegações destoam fortemente dos registros fotográficos e de relato feito pelo Conselho das Comunidades Remanescentes de Quilombolas do Território do Extremo Sul da Bahia em dezembro. Falando em nome das comunidades de Volta Miúda, Rio do Sul, Helvécia, Naiá, Mutum, Cândido Mariano, Vila Juazeiro e Mota, o documento registra os “riscos à saúde física, mental”, a “degradação e utilização de caminhos tradicionais das comunidades” e afirmam que entendem a obra não como de manutenção de estradas usadas não só pela Suzano, mas que ela está sendo construída com objetivo exclusivo de concluir a ligação dos eucaliptais, que também estão irregulares dentro do território quilombola, à fábrica de celulose na cidade de Mucuri, na divisa com o Espírito Santo. 

O Conselho denuncia ainda “negociações escusas e promessas de aquisição das terras afetadas, desequilibrando os conceitos filosóficos e de vida dos agricultores familiares que integram a comunidade produtiva em seu assento de direito”. 

O clamor recebeu, em janeiro, o apoio de 85 organizações baianas, brasileiras e estrangeiras, e de mais de 200 pessoas em uma carta endereçada ao MPF/BA e à Defensoria Pública da União (DPU/BA). “Pedimos para que tomem providências para paralisar imediatamente a destruição ilegal em curso da Mata Atlântica e de caminhos tradicionais destas comunidades por parte da empresa Suzano e sua obra para construir uma nova estrada, agravando a destruição e invasão dos territórios dessas comunidades”. 

Essa violência, contextualizam os signatários, “acontece logo após a Suzano receber um empréstimo de US$ 725 milhões do Banco Mundial/IFC, em dezembro de 2022, para construir uma nova fábrica de celulose no Brasil. Isso ocorreu apesar dos protestos contrários a essa decisão por parte de inúmeras organizações brasileiras e internacionais, denunciando os impactos devastadores do modelo de produção do monocultivo de eucalipto para papel e celulose, promovido pela Suzano no Brasil”. 

“Tô de joelhos dobrados todos os dias”

Presidente da Associação Quilombola de volta Miúda Caravelas (APRVM) e da Cooperativa Quilombola do Extremo Sul da Bahia (Coopqes), Célio Leocádio diz que a situação é angustiante. “Tem momento que a gente não sabe mais onde buscar recurso, fica sem saber o que de fato fazer. Eu tô de joelhos dobrados todos os dias, mas tenho fé de que em alguma coisa a gente vai vencer”. 

Ele conta que a estrada começou a entrar nas comunidades em dezembro, mas calcula que a obra toda teve início desde 2021, saindo da fábrica de Mucuri. “Como lá não tem comunidade quilombola, eles foram fazendo o que bem entendem, mas aqui a gente está lutando para defender os nossos direitos”.

Mas ele conta que não foi a estrada quem inaugurou as agressões da papeleira no território quilombola. “A situação é muito delicada. Começamos a trabalhar com a procuradoria de Teixeira de Freitas em 2017, denunciando as patifarias todas dela”, depõe. O primeiro tema que o MPF tentou mediar foi o afastamento dos eucaliptais para que as comunidades sofram menos com a presença dos monocultivos e tenham espaço para sua produção agrícola e atividades sociais. 

O rol de impactos é variado: venenos aplicados de avião que contaminam o ar, o solo e as águas, mortandade de animais domésticos e silvestres, secamento de nascentes, muito barulho e poeira provocado pela passagem das carretas que transportam as toras de eucalipto, acidentes com carretas, queda de eucaliptos com as ventanias, empilhamentos da madeira nas margens das estradas que bloqueiam o trânsito dos moradores e facilitam a ação de bandidos. 

“Temos mais de mil páginas de denúncias desde 2017 na procuradoria”, estima Célio Leocádio. A única ação vencida, no entanto, foi junto à companhia elétrica, a Coelba, que levou energia elétrica para a comunidade de Volta Miúda em 2021. “Com a Suzano a gente não consegue nada. O jurídico dela é muito forte”. 

Todas as comunidades são certificadas pela Fundação Palmares. São oito. Cinco com processo no Incra. “Estudo foi concluído antes de Bolsonaro e nós esbarramos com ele na parte da publicação do RTID. Fizemos cadastros das famílias, Incra veio fazer a conferência dos territórios. Relatórios aprovados, mas não publicados. Só uma teve relatório publicado. Itanhém, comunidade dos Motta”.

Outra ação cara para os quilombolas da região é a que foi impetrada pelo MPF em 2019, pleiteando ao Incra que finalize o RTID das comunidades certificadas. A primeira decisão foi proferida em 2022 a favor do MPF, mas o Incra recorreu. Com o novo governo federal e a carta enviada pelo Fórum de entidades ao presidente, ministros, governador e secretários, a esperança é que agora os relatórios sejam retomados e devidamente publicados. 

A consulta prévia (OIT 169), que também consta na carta do Fórum, deve receber em breve um reforço via academia. “A Uneb [Universidade do Estado da Bahia] está com projeto para trabalhar em Volta Miúda e a Pró Reitoria de Salvador pediu para estender a todas as oito comunidades. Conseguiram aprovar um convênio e vão custear os profissionais da UFBA [Universidade Federal da Bahia] para fazer os nossos protocolos de consulta”, comemora Célio.

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Comentários 1

  1. Celio diz:

    Parabéns Fernanda pela excelente matéria, e em nome de nossas comunidades quilombolas do extremo sul. Nosso muito obrigado, uma matéria como essa nos dar fortaleza para continuar as lutas. Muito obrigado mesmo att. Célio Leocádio