Quase todo mundo deve ser familiar com o sabiá-laranjeira (Turdus rufiventris). A ave-símbolo do Brasil (escolha rechaçada pela maioria dos ornitólogos) é um habitante comum de praças, parques e jardins de boa parte do Brasil.
Ali ele pode ser visto revirando folhas e detritos vegetais (onde estes existem) em busca de minhocas, insetos e outros animalejos que são parte de sua dieta. Um comportamento que posso assistir nas praças da região central da cidade de São Paulo, onde vivo.
O exército de criaturas escavadoras que, nos diferentes ecossistemas brasileiros, inclui minhocas, paquinhas, formigas, cupins, lagartos, cobras-cegas, ratos, tatus e uma infinidade de outras criaturas não é somente uma fonte de alimento para outros animais: ele é responsável por alguns dos serviços ecossistêmicos mais importantes e menos reconhecidos.
O mais evidente é o aumento da permeabilidade do solo, o que faz com que as águas das chuvas infiltrem e recarreguem lençóis freáticos e aquíferos ao invés de apenas escorrerem pela superfície e serem perdidas pela evaporação. O que, em geral, está associado a alagamentos.
Estes animais ajudam a água a ir onde ela é solução, e não problema.
Charles Darwin foi um autor prolífico que escreveu livros sobre atóis de coral e a polinização das orquídeas. Além, é claro, da evolução por seleção natural e sexual (todos disponíveis aqui). O último de seus 25 livros, publicado em 1881, foi A Formação de Terra Vegetal Através da Ação Das Minhocas (The formation of vegetable mould, through the action of worms).
Neste, o grande homem descreve e demonstra como os humildes vermes anelídeos são uma força geológica e geoquímica poderosa na formação de solos e, usando linguagem contemporânea, no sequestro de matéria orgânica e carbono.
Este é o outro serviço ecossistêmico, não reconhecido e muito menos pago, prestado pelos poderosos bichos do solo. Se você é professor pode gostar de tentar esta atividade, inspirada naquele livro, com seus alunos. Em tempos de mudanças climáticas e perda da qualidade dos solos agrícolas seria bom relembrar descobertas feitas 134 anos atrás. E abrir o foco para valorizar outras criaturas escavadoras que são vilipendiadas.
Por exemplo, pesquisa bem recente mostra que cupins, ao construírem suas galerias e cupinzeiros, criam refúgios que permitem que plantas (e animais) resistam melhor às secas, efetivamente construindo barreiras contra a expansão de desertos sobre ambientes frágeis.
Estes serviços gratuitos são destruídos quando estes animais são eliminados. Em terras agrícolas o uso de maquinário e pesticidas causa o biocídio da fauna subterrânea e resulta na compactação do solo.
Aqui nas praças do Centro de São Paulo quem faz isso são os garis, arquitetos de “áreas verdes” com solo duro, nu e estéril como um tijolo. E onde sabiás passam fome.
Estes heróis da limpeza urbana tentam manter habitável uma cidade onde a maior parte da população não percebeu que seus ancestrais desceram das árvores faz alguns milhões de anos e ainda se comportam como macacos-prego durante o almoço. Meus concidadãos jogam nas ruas e calçadas milhares de toneladas diárias de lixo que, em países menos primitivos, as pessoas colocam em lixeiras.
Isso resulta em gastos milionários com a limpeza urbana que poderiam ser bem melhor empregados.
Infelizmente, quando se trata de praças e parques, falta orientação aos garis. O procedimento ordenado a eles é que passem horas raspando o solo com rastelos ou coisa similar removendo as folhas que caem, colocadas em sacos plásticos e despachadas como lixo.
O resultado, como em terras agrícolas maltratadas, é a compactação do solo e a quase extinção da fauna que ali habitaria.
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Como plantador pirata de árvores nas praças de região, me espanta como mesmo depois de dias seguidos de tempestades que fizeram carros boiar, o solo de praças como o Largo do Paissandú (ilustrado nas fotos) continua seco a apenas dois palmos de profundidade.
A ausência completa de minhocas explica a razão. O resultado é que a água das chuvas e tempestades deixa de ir para onde deveria e corre na superfície, carregando a camada superficial do solo. A isso se chama erosão laminar.
Como a água e a terra que ela carrega devem ir para algum lugar, e a gravidade é quem manda, tanto a água como a terra que poderiam estar nas praças e jardins acabam parando nos bueiros. Que entopem e causam alagamentos.
Isso poderia ser evitado se a prioridade fosse manter a cobertura do solo, e não varrições obsessivas. E se folhas & cia excedentes fossem colocadas em pilhas de compostagem, e não tratadas como lixo.
Na esperança de que a ficha caia nas mentes de quem de direito, e sem talento para desenhar como alguns recomendam, ilustro este artigo com algumas fotos.
É evidente que quando a questão é segurar o solo e absorver água os bichos que vivem no solo são só parte da história. Estou falando de serviços ecossistêmicos e nenhum ecossistema é completo sem plantas.
As folhas e detritos orgânicos produzidos por árvores, arbustos e herbáceas são a base da cadeia trófica dos habitantes do solo, assim como as raízes são parte da estrutura de seu habitat. São as plantas que servem de anteparo contra a energia das gotas de chuva e que retém o solo, impedindo a erosão. É a matéria orgânica no solo que ajuda a reter a água. Acho que não preciso me alongar muito em algo que é bem conhecido.
Infelizmente os “urbanistas” que atuam em São Paulo padecem daquele espírito niermeyeriano do amor ao concreto. Basta ver a relação área concretada (e impermeabilizada) x área verde (e permeável) em lugares como a Praça da Sé e nos recentemente remodelados Largo do Batata e Praça Roosevelt.
É de notar que o desprezo pelo verde também contamina não só quem projeta mas também quem deveria cuidar desses lugares. Isso ficou bem evidente com o plantio de árvores no Largo do Batata feito à revelia de uma Prefeitura que tem falhado miseravelmente em cumprir seu dever e persiste na trilha de transformar a cidade em um espaço com cada vez menos árvores e menos verde.
O que, todos sabem mas nada fazem, é a causa da ilha de calor que causa tempestades desastrosas na cidade ao roubar chuvas que deveriam cair nos mananciais.
No Centro de São Paulo, um grupo de arquitetos a serviço da Secretaria de Gestão Urbana e com patrocínio do banco Itaú inventou um programa chamado Centro Aberto visando “requalificar” áreas verdes na região central da cidade.
Como tantas das boas intenções que povoam o inferno, o conceito era bom, mas a implementação foi infeliz.
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Um ponto importante dos projetos criados pelos geniais arquitetos foi construir decks de madeira em pontos como o Largo São Francisco e o Largo do Paissandú que se tornariam “pontos de convivência”, etc, etc.
Estes se tornaram imortais como as “praças-deck do Haddad” e viraram até fantasiada durante a última Peruada dos estudantes de direito do Largo São Francisco.
No Largo do Paissandú alguma mente brilhante ignorou que a Organização Mundial de Saúde recomenda que cada habitante tenha 12 m2 de área verde (de verdade) mas o Centro só tem 6,2 m² (e muito é terra compactada). E resolveu colocar o tal deck em cima de um dos canteiros da praça ao invés de usar as áreas pavimentadas ao lado.
Para isso duas árvores adultas (um alfeneiro e um ipê-rosa) foram abatidas a motosserra e foram arrancados uma acerola, uma figueira-branca, dois malvaviscos e alguns metros quadrados de grama e lírios.
A praça perdeu árvores e ganhou um contêiner laranja ao lado de um deck de madeira de lei. Acho que a simetria entre substituir árvores vivas por madeira morta fala muito sobre a mente arquitetônica que por aqui domina.
Crianças tentar andar de skate e mendigos dormem no deck. Ao redor, canteiros nus e compactados enviam terra para dentro dos bueiros a cada chuva. O único ponto positivo são alguns brinquedos utilizados pelas crianças da área, mas que poderiam ter sido usados para aumentar a área verde ao invés de reduzi-la.
Parabéns aos autores da obra.
A tentação da “solução” baseada em obras que ignoram noções básicas de ecologia da paisagem, engenharia ambiental e, ironicamente, de urbanismo é uma constante que vemos não só na gestão do espaço urbano, mas também daquele onde as cidades se inserem.
É interessante ver como as soluções vendidas pelas autoridades para a crise hídrica em São Paulo mencionam muitas obras (para alegria das empreiteiras) e nada sobre a restauração daqueles serviços ecossistêmicos que fazem com que a chuva caia onde e quando deve e que a água que vem com elas seja solução, e não problema.
Fala-se muito em reservatórios, barragens e canos, e nada sobre plantar árvores, trocar cimento e asfalto por verde e de tratar esgotos. Mas isso é assunto para outro artigo.
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