Por que, onde fracassam as unidades de conservação públicas, as privadas são bem-sucedidas? Por que as unidades de conservação privadas, inclusive as que têm proprietários modestos, conseguem se sustentar com recursos próprios? Por que elas têm muitos visitantes quando a maioria das públicas está permanentemente fechada a todo uso público? Por que as unidades de conservação privadas são benquistas pela população local enquanto as públicas apenas saem de um conflito para cair em outro?
Como bem se sabe, são muito raros os exemplos de unidades de conservação dos países em vias de desenvolvimento, em especial da América Latina, que cumprem bem seus objetivos, sejam estes o principal, ou seja, conservar amostras viáveis da natureza, ou os secundários, dentre eles educação, recreação e pesquisa. Mesmo sendo um objetivo secundário, a recreação assume quase sempre um papel especial, pois é ela que atrai a maior parte dos visitantes que, a partir desta atividade, passam a se educar na natureza e dela desfrutar. A visitação de unidades de conservação é, de outra parte, o motor da economia regional, pois seu conjunto é o que se conhece como turismo e ecoturismo. A maior parte das unidades de conservação geridas pelo governo federal ou pelos estaduais permanece década após década fechada ao uso público, ou seja, sem cumprir uma de suas funções importantes e, o que é muito pior, pondo em risco seu objetivo principal de conservar amostras dos ecossistemas e da biodiversidade nelas contida.
Neste caso se mencionarão três exemplos de reservas particulares de patrimônio natural (RPPNs) do Brasil que não só protegem muito bem a natureza mas que também são demonstradamente ótimos negócios para seus proprietários e para as localidades onde estão. São: a diminuta Vagafogo (apenas 17 hectares, em Pirenópolis, Goiás), Salto Morato (2.340 hectares, em Guaraqueçaba, Paraná) e a relativamente grande SESC Pantanal (106.000 hectares, em Barão de Melgaço, Mato Grosso).
Amazônia no Cerrado
A RPPN Vagafogo foi estabelecida em 1990, sendo a primeira no país. A propriedade onde se inserta possui menos de 40 hectares, sendo a porção reservada uma mata ciliar muito bem conservada que, sob muitos parâmetros, é uma magnífica amostra dos restos da floresta amazônica no Cerrado. Investimentos modestos, realizados ao longo do tempo, permitiram visitação quase desde seu início. Estes consistiram numa trilha bem desenhada ainda que simples e, logo, com apoio da organização não-governamental Funatura, a construção de um pequeno centro de visitantes financiada com recursos do exterior. Na atualidade, a trilha está muito aprimorada, tendo sido seus locais mais instáveis cobertos com passarelas de madeira para evitar erosão do solo e danos à vegetação.
É verdade que o centro de visitantes e a passarela, assim como o apoio técnico, foram produto de doações, mas o valor destas foi discreto. Portanto, o desenvolvimento atual dessa RPPN é, essencialmente, fruto do trabalho, do engenho e da perseverança de seus proprietários. Vagafogo recebe atualmente mais de 13.000 visitantes por ano, que não só pagam R$ 10 por pessoa, mas ainda podem desfrutar de um copioso brunch e comprar toda classe de produtos produzidos pelos proprietários na porção da fazenda que não é preservada. Recentemente os proprietários incrementaram o ingresso mediante a instalação de uma facilidade para praticar arborismo. Não se dispõe de uma avaliação das finanças totais da RPPN, embora não seja difícil estimar o seu ingresso bruto em mais de R$ 250.000 por ano, o que é muito significativo para um negócio familiar baseado numa propriedade tão pequena, localizada em terras de baixa fertilidade.
É assim que a diminuta Vagafogo, onde nunca entrou fogo, protege intangivelmente os 95% de seus 17 hectares de mata, oferece emprego direto a mais de seis pessoas incluídos os membros da família, atrai um número considerável de visitantes do Brasil e muitos do exterior a cada ano, que se alojam em hotéis e se alimentam em restaurantes da cidade próxima, contribui a educar milhares de estudantes, providencia espaço para pesquisas de longo prazo de universitários do Brasil e do exterior e, ademais, é um modelo regional de manejo eficiente e de processamento de produtos previamente desprezados como o barú e toda classe de frutas que a família transforma em geléias, doces e outras guloseimas.
Muito perto de Pirenópolis existe, desde 1998, o Parque Estadual da Serra dos Pireneus, com 2.833 hectares. Este Parque tem recebido, através de uma compensação ambiental, recursos consideráveis para compra de terras, preparação de plano de manejo e infra-estrutura adicional à que já tem (várias sedes de fazendas, uma delas até com piscina, dois edifícios especialmente construídos para o Parque, estradas internas, etc.) e possui funcionários, inclusive profissionais, e veículos da Agência Ambiental de Goiás. Não obstante, até o dia de hoje, o Parque Estadual é queimado total ou parcialmente a cada ano, caçadores e coletores de plantas raras atuam livremente; o gado continua invadindo-o e, claro, a visitação é terminantemente proibida, exceto para quem entra sem pedir permissão.
Dito em outras palavras, o custoso Parque, que deveria preservar uma magnífica amostra da natureza regional, não preserva absolutamente nada e não cumpre nenhuma função de educação ambiental, recreação, proteção ou pesquisa, para as quais foi estabelecido. Isso, apesar de ter recebido ingentes somas de dinheiro para sua implantação e de certamente dispor de algum orçamento anual. Não cabe perguntar por que o povo de Pirenópolis não gosta do Parque Estadual que não contribui para o desenvolvimento regional. Claro que o problema não é o Parque, certamente muito necessário e com enorme potencial, mas seus “administradores” que sempre alegam não ter dinheiro suficiente e tampouco recursos humanos. O exemplo dos proprietários de Vagafogo, pegando os mesmos a enxada para fazer as trilhas e sujando as mãos de tinta para fazer a sinalização, não merece nenhuma consideração por parte dos nobres e pulcros funcionários do Parque.
Mata Atlântica no Paraná
Lá em Guaraqueçaba, na sua porção onde ainda existe mata atlântica, a Fundação O Boticário de Proteção à Natureza comprou, em 1994, uma propriedade em grande parte bem preservada devido a sua topografia muito acidentada. Onde não existia nada, a Fundação construiu um centro de visitantes e uma sede que contém, entre outras facilidades, alojamento para visitantes, estudiosos e pesquisadores. Foram habilitadas trilhas que levam os visitantes aos pontos mais interessantes e belos e nelas existe uma sinalização cuidadosa que permite que o visitante saiba tudo o que precisa para compreender o que vê, satisfazendo sua curiosidade. A porção da propriedade que tinha sido degradada pela pecuária extensiva está sendo recuperada e agora volta a abrigar algumas das espécies de plantas e animais que teve originalmente.
Na atualidade, a Reserva do Salto Morato recebe a cada ano mais de 7.000 visitantes e já atendeu 1.600 técnicos com mais de 60 cursos especializados nas suas instalações, e aprendendo no terreno. Muito do labor do Salto Morato é de tipo social e por isso é subvencionado pela Fundação, mas os visitantes que são pagantes colaboram com somas que se utilizam no manejo da área.
Para apoiar o desenvolvimento local, a Fundação não só emprega um número importante de pessoas da localidade, mas, também, atende parte de suas necessidades com material produzido na região e desenvolve um bem-sucedido programa de treinamento para aprimorar a produção do artesanato tradicional e a promoção da sua venda. Salto Morato é uma referência internacional e uma percentagem crescente dos visitantes da região, que inclusive pernoitam nela, teve essa visita como objetivo primeiro da sua viagem de Curitiba ou de outras cidades do Brasil. Por tudo isso, Salto Morato é um orgulho para os habitantes da região onde ninguém considera que essa é uma área abandonada e improdutiva, como acontece com tantos parques e reservas públicos em todo o Brasil, inclusive no Estado do Paraná, ainda que seu governo trate suas unidades de conservação bem melhor que outros.
Exemplo pantaneiro
A Confederação Nacional do Comércio, através de seu Serviço Social do Comércio (SESC), realiza há décadas uma importante e bem conhecida atividade de turismo social. Suas lideranças consideraram, em 1995, que o dia tinha chegado para entrar seriamente no turismo ecológico e, assim, compraram progressivamente 106.644 hectares do Pantanal. Hoje, este empreendimento é, no seu conjunto hoteleiro e de reserva natural, provavelmente a unidade de conservação melhor manejada do Brasil e um sucesso econômico e social sem precedentes.
A área foi encontrada em situação deplorável. As fazendas adquiridas estavam decadentes, na verdade estavam praticamente abandonadas. O SESC começou por reabilitar as sedes das fazendas e as transformou em postos de controle e bases de pesquisa, eliminou as cercas internas onde ainda existiam, estabeleceu um sofisticado esquema de alerta e combate de incêndios, adquiriu o equipamento e ferramentas necessárias para o manejo e contratou o pessoal profissional, técnico e operário requerido. Feito isso, iniciou a segunda etapa, já baseada na primeira versão do plano de manejo. Assim, passou a desenvolver um programa de pesquisa aplicada ao manejo, por exemplo, para conhecer as espécies de flora e fauna, sua biologia, em especial das espécies mais raras como a arara azul; opções de ecoturismo com visualização de espécies como a onça, situação dos estoques naturais de peixes, técnicas de combate aos incêndios florestais, informação meteorológica, etc.
Outro programa teve por objetivo criar oportunidades de desenvolvimento econômico e social para as comunidades do entorno, incluindo produção de borboletas, mudas florestais, artesanato e ainda estabeleceu mecanismos de apoio em temas de educação e saúde com a filosofia de ajudar a que a gente se ajude a si próprios. De qualquer modo, o SESC Pantanal é a maior fonte regional de empregos diretos e indiretos e de renda dos municípios onde se insere. Apenas a Reserva emprega ao redor de 30 funcionários e guardas na sua maioria nativos e contrata a cada ano dezenas de trabalhadores eventuais para o combate aos incêndios. Também contribui diretamente para a preservação e o estímulo dos costumes tradicionais, desde dança e culinária até competições anuais com o cavalo pantaneiro. O SESC Pantanal apóia programas de rádio com mensagens educativas e ambientais especialmente desenhadas para o entorno da Reserva. O programa de uso público está baseado na construção de uma série de trilhas auto-explicativas e de percursos aquáticos que brindam a oportunidade aos visitantes de conhecer desde os famosos ninhais de aves até os locais de reprodução de peixes e, em todas as partes, de avistamento das mais diversas espécies da fauna. O SESC também construiu um dos melhores centros de visitantes do país, uma obra mestre de educação ambiental, em que estão anexados um borboletário e um insetário abertos para a visitação. Obviamente o ingresso para escolares e populações locais é gratuito e inclusive facilitado com apoio logístico do SESC.
Uns 15.000 visitantes por ano chegam a visitar o SESC Pantanal e, ao mesmo tempo em que aportam recursos para seu manejo, contribuem para a conservação de uma amostra extraordinária do Pantanal e ao progresso dos municípios. Ainda que subsistam, como é lógico, alguns problemas com fazendas vizinhas que continuam usando e abusando do fogo e introduzindo gado na Reserva, as relações do SESC Pantanal com seu entorno são excelentes e ninguém discute que a criação dessa Reserva foi uma benção para a região.
A pouca distância do SESC Pantanal está localizado o Parque Nacional do Pantanal, que foi criado em 1981 abarcando a Reserva Biológica de Cará-Cará, estabelecida em 1971 e que tem 135.000 hectares. Este Parque, para o qual já foram destinados centenas de milhares de dólares através de diversos projetos internacionais e do orçamento anual do antigo IBDF e do Ibama, mesmo dispondo de infra-estrutura e de pessoal profissional e de guardas, continua como desde o primeiro dia, ou seja, sem receber nenhuma visita. Também é submetido a fogo a cada estação seca e é uma área livre para a caça e a pesca. Em síntese, como diriam os inimigos das unidades de conservação de preservação permanente, é “terra abandonada” que não cumpre nenhuma das funções para as quais foi estabelecido.
Conservação pública
Esta coluna não pretende propor que as unidades de conservação públicas passem a ser privadas. Apenas pretende demonstrar que até em países em vias de desenvolvimento, as unidades de conservação podem funcionar perfeitamente e cumprir cabalmente seus objetivos. Nos países desenvolvidos, os parques nacionais e outras unidades de conservação funcionam muito bem, tanto como as reservas particulares no Brasil. A diferença é que nos países desenvolvidos as unidades de conservação são levadas a sério e recebem, de forma contínua, os investimentos necessários para o manejo e não são, como nestas paragens, estabelecidos e esquecidos no próprio ato legal. Ou, pior ainda, quando nelas se fazem grandes investimentos e são mais uma vez esquecidas, deixando que os laboriosos cupins façam seu trabalho, destruindo as custosas, embora inúteis, infra-estruturas.
Na Costa Rica os próprios profissionais, funcionários públicos dos anos heróicos da conservação da natureza, construíam as trilhas, os sinais e as modestas sedes de seus hoje magníficos parques nacionais e jamais deixaram de manter as portas abertas aos visitantes. Eles compreenderam que o público é a razão de ser dessas áreas. Superavam, com seu esforço e seu entusiasmo, as dificuldades burocráticas que tampouco faltam em seu país. Mas, eles amavam seu trabalho. De outra parte, foi esse público satisfeito que obrigou os políticos a serem mais sérios e generosos com seus parques nacionais.
Ao final das contas, quem diz que não é possível manejar unidades de uso indireto para o bem-estar da nação e das populações locais está, simplesmente, completamente errado.
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