Esta semana, Marina Schweizer e Lucas Leuzinger, proprietários da fazenda Barranco Alto, localizada no Pantanal do Rio Negro, no MS, nos prepararam um texto sobre o projeto que estão atualmente desenvolvendo na fazenda e no seu entorno, com o objetivo de investigar a situação da onça-pintada em relação à pecuária, naquela região do Pantanal. Marina, agrônoma, é filha do Dr. Jorge Schweizer, médico suíço-brasileiro, que foi quem intercedeu junto à família Klabin, proprietária da antiga Miranda Estância, para que o Dr. Schaller e eu pudéssemos retomar o estudo das onças, em 1980, depois do final abrupto do projeto em Acurizal, conforme contado anteriormente aqui. Além de nos ajudar diretamente no projeto, em diversas ocasiões, o Jorge comprou, à época, uma pequena fazenda na região do Rio Negro, para preservar um dos últimos grupos conhecidos de ariranhas no Pantanal, que se encontravam à beira da extinção. Graças em grande parte ao trabalho incansável dele, e do livro “Ariranhas do Pantanal”, que ele escreveu, a espécie conseguiu se recuperar e é outra história de sucesso. Hoje em dia, a Marina e o Lucas continuam o trabalho da família na região, dando um exemplo do que é possível fazer para unir alternativas econômicas com conservação dessas espécies tão importantes da rica fauna do Pantanal.
Abaixo, segue o texto de Marina Schweizer e Lucas Leuzinger.
Projeto Onças do Rio Negro – “A União Faz A Força”
A região em que vivemos é conhecida pela paisagem formada por baías (lagos de água doce) e salinas (lagos de água salobra) infindáveis, distribuídas de forma que, quando vistas do alto, lembram o desenho de manchas mais ou menos arredondadas, tal qual a pelagem de uma onça-pintada. É nessa área, conhecida como Pantanal do rio Negro e Nhecolândia que acontece o “Projeto Onças do Rio Negro”.
A principal fonte de renda nesta parte do Pantanal é a pecuária de cria e a chegada do homem Pantaneiro em nossa região data de mais de 200 anos atrás. Com o pasto natural que se forma nas beiras de baías e salinas, assim como em áreas mais abertas, a região é bastante satisfatória para a atividade pecuária. Ao mesmo tempo, a diversidade de ecossistemas (cerradão, cerrado ralo, mata ciliar, baías, salinas e outros) leva também a uma maior diversidade de animais. Na Fazenda Barranco Alto registramos espécies raras como o cachorro vinagre e o tatu canastra, assim como outras espécies de mamíferos mais comuns do Pantanal. Este fato demonstra que, apesar da atividade pecuária representar um impacto relativo, a região continua bastante preservada, com uma convivência saudável do homem com a natureza.
Ao longo de mais de uma década também temos registrado na fazenda a existência do maior felino das Américas: a onça-pintada. Quase todos os encontros acontecem em passeios com turistas que visitam a pousada que operamos na fazenda. Observamos que existem “picos” de avistamentos, ou seja, anos em que vemos onças-pintadas com frequência maior e outros anos praticamente sem observações.
Algumas histórias incríveis deixaram lembranças marcadas para sempre, como a travessia do rio Negro de um imenso macharrão de onça-pintada que ia decidido a brigar com outro animal que esturrava próximo ao local. Enquanto procurávamos apaziguar uma discussão de um casal de turistas em outra canoa, aquele que provavelmente era o macho dominante do território saiu silenciosamente de dentro da mata, andando sobre a praia em passos firmes. O sol da manhã que havia nascido poucos minutos antes brilhava sobre a pelagem impecável do animal, demonstrando sua saúde plena. Nesse momento quase milagroso a força exalada pelo felino foi tamanha que tudo ficou em silêncio. Até os ânimos exaltados se acalmaram! Decidido a qualquer coisa, o macharrão pintado cruzou o rio passando a poucos metros de nossas canoas, sem demonstrar qualquer tipo de curiosidade ou interesse. Já nós, que tentávamos com todas nossas forças remar contra a correnteza para não atropelar o animal, procurávamos tirar uma foto e reconhecer a onça com seus traços típicos de pelagem. Para não dizer que ela ignorou nossa presença, o grande felino saiu da água lentamente, subiu com um salto ágil (um “pulo de gato”) a margem do rio que nesse ponto media cerca de 120 cm e, do alto do barranco, parou para nos olhar por alguns segundos antes de seguir no cumprimento de sua missão mata adentro.
Convívio
“A nossa principal pergunta era se existia caça predatória às onças, por parte dos fazendeiros, como retaliação por predação do gado, e com que frequência isso poderia estar acontecendo.”
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Dessa forma mantínhamos um registro informal dos nossos encontros com as diferentes onças-pintadas na nossa região. Mas como acadêmicos formados em agronomia e biologia, frequentemente nos questionávamos sobre o porquê delas serem avistadas “em ondas”. A nossa principal pergunta era se existia caça predatória às onças, por parte dos fazendeiros, como retaliação por predação do gado, e com que frequência isso poderia estar acontecendo.
Finalmente, em dezembro de 2008, juntamente com a equipe do Instituto Onça-Pintada, conseguimos capturar uma fêmea adulta de 83 kg e cerca de 7 anos de idade, a qual já conhecíamos de outros avistamentos e que chamávamos de “Barbie”. Foi colocado nela um colar que emitia sinais VHF e ao longo de 14 meses seguimos com grande assiduidade a rotina de Barbie e de seu filhote fêmea, que nasceu poucas semanas após a captura. Conseguimos desvendar alguns mistérios como o fato de que elas andavam e caçavam muitas vezes longe do rio, mas quase sem deixar rastros. Observamos ainda como Barbie e seu filhote de 8 meses passaram dias dentro de uma pequena invernada com 450 novilhas de 2 anos sem jamais atacarem uma cabeça de gado. Ao contrário, mostraram sua clara preferência alimentar matando 3 porcos-monteiros ao longo de uma semana.
Através dessas e outras experiências constatamos que poderia existir, na região do Rio Negro, uma situação inusitada de convivência saudável entre a população de onças-pintadas e o gado. Fomos nos empolgando com os fatos que se concretizavam até que, em fevereiro de 2010, nos deparamos com uma situação inesperada: após 8 dias com o sinal do rádio VHF indicando que ela estava “parada” em uma mata fechada decidimos conferir de perto o que poderia estar acontecendo e encontramos Barbie em avançado estado de putrefação, motivo pelo qual não pudemos descobrir a causa de sua morte. Na tentativa de solucionar o caso oferecemos uma recompensa para quem nos informasse o nome de um eventual responsável, mas infelizmente nunca conseguimos mais do que suposições.
Em 2013, amigos com os quais dividimos a paixão por este felino tornaram-se vizinhos e importantes apoiadores da questão. Amadurecemos o projeto e demos passos maiores no estudo e consequente conservação das onças do rio Negro. Com mais recursos no projeto, foram adquiridas mais armadilhas fotográficas que agora amostram uniformemente uma área total de 20 mil hectares. As câmeras estão programadas para filmar alguns segundos de qualquer animal em movimento. Com os dados registrados nos 10 primeiros meses de trabalho, já pudemos identificar oito onças-pintadas que vivem ou transitam ocasionalmente na área em estudo. Considerando qualquer possibilidade de erro na amostragem por esse sistema de levantamento, esse número pode ser ainda maior. Além disso, foram filmadas também várias espécies de presas potenciais das onças, como cutias, queixadas, catetos, tamanduás-bandeira, capivaras, porcos-monteiros, veados catingueiros e campeiros, e outros carnívoros comuns, como onças-parda, jaguatiricas e o lobo-guará, este último pouco frequente na região.
Predação
“Aqui, a predação em jacarés, item bastante comum em outras áreas do Pantanal, parece ser menor.”
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Ao longo dos anos observamos que na região do Rio Negro as onças-pintadas predam principalmente porcos-monteiros, seguidos de capivaras e queixadas. Aqui, a predação em jacarés, item bastante comum em outras áreas do Pantanal, parece ser menor.
Essa região do Pantanal se mostra muito interessante para estudo pois apresenta uma saudável população de onças-pintadas e, ao mesmo tempo, uma baixa ocorrência de predação de gado. Porque isso ocorre? A partir de qual momento a onça começa a predar gado? O que esta região poderá nos ensinar em relação à outras áreas que vivem em conflito devido à forte predação de gado? Para responder a essas perguntas pretendemos dar sequência ao projeto, capturando e equipando com colar de GPS algumas onças-pintadas. Com essa tecnologia (ver artigos anteriores publicados no blog), será possível estudar a ocupação espacial e temporal da espécie, ou seja, descobrir quando e como ela ocupa o mesmo espaço da criação extensiva de gado e a interação entre essas espécies.
Somente com provas científicas em mãos podemos garantir uma sólida base de conversa com a população local de forma a convencê-los de que a conservação da espécie é de interesse para todos.
Hoje o projeto é constituído por uma aliança de 3 fazendas (Vera Lúcia, Embiara e Barranco Alto) juntamente com o Instituto Onça Pintada. Além disso, contamos com a colaboração e o apoio de todas as fazendas num entorno que cobre uma área de mais de 100 mil hectares. Unidos esperamos fazer uma diferença na conservação deste magnífico animal que é a onça-pintada.
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