Poucas unidades de conservação no país enfrentam tantos problemas como a Reserva Biológica da Contagem, encravada no centro político brasileiro. Esta semana O Eco visitou o local para mostrar que preservação ainda é coisa muito complicada no país, mesmo a poucos quilômetros dos órgãos federais de meio ambiente.
Os contornos da reserva chegaram aos mapas oficiais no apagar das luzes de 2002, sob circunstâncias curiosas que envolveram até um certo “ex-coronel” baiano indignado com o colega de “cafungadas” de seu falecido filho. Seus 3.500 hectares se contorcem entre a planície e a Chapada da Contagem para driblar aglomerados humanos que cresceram sem ordenamento oficial e antes que sua importância ecológica e histórica fosse reconhecida.
A vila Basevi começou a receber moradores há quatro décadas, atraídos por antigas cascalheiras que abasteceram a construção de Brasília. Hoje tem escolas, duas fábricas de asfalto, mais de 4 mil pessoas sem tratamento de esgoto e uma das maiores taxas de natalidade do Distrito Federal. Cercado de muros, o bairro Grande Colorado se desenvolveu com mais força a partir dos anos 1990 e reúne casas de classe mais elevada, incluindo deputados e procuradores. A reserva também é vizinha dos bairros Lago Oeste e Sobradinho, abriga esqueletos de um clube de lazer e de um frigorífico, três estradas (mapa acima) e quatro chácaras irregulares. Uma delas é usada por um servidor da área ambiental federal.
Conforme relata a chefe da área protegida, Isabela Deiss, e com o que a reportagem de O Eco viu em campo, a reserva sofre com despejo de esgotos e captações de água clandestinas, presença eventual de gado, tráfego em alta velocidade associado ao atropelamento e perturbação de animais, despejo de lixo, invasões para pesca, churrasco, caça e lazer, queimadas e poluição sonora provocada por transeuntes e moradores irregulares. Pura dor de cabeça.
“Jogam lixo, trafegam em alta velocidade, entram para fazer trilhas, lavar motos e escondem latas de óleo e xampu pela reserva. Esta semana, atropelaram um tatu. Sobre o gado, não basta autuar, é preciso retirá-lo, mas não há apoio das prefeituras regionais”, reclama Deiss, que há poucos dias paralisou o asfaltamento da péssima via de ligação da DF-001 à vila Basevi, pelo interior da área protegida. A obra não tinha licença ambiental e adentrava a reserva com desmatamento e aterros.
Conforme Dorival Brandão, da Associação Comunitária dos Moradores da Vila Basevi (ACMVB), o impasse sobre o asfaltamento só prejudica o meio ambiente e a população. “Sem melhorias, todo ano precisam recuperar a estrada, com terraplanagem e despejo de cascalho. Todo esse material acaba dentro da reserva com as chuvas”, disse.
Conforme o Instituto Chico Mendes, a solução do problema depende de acertos com o governo distrital e passa pela construção de uma “estrada parque”, equipada com ciclovia, bloquetes substituindo o asfalto e outros equipamentos. Erguer um muro no entorno da vila também é uma possibilidade aventada pelo órgão ambiental.
Portas fechadas
Conforme a legislação federal, reservas biológicas só abrem as portas a pesquisadores e para atividades de educação ambiental. A visitação pública é proibida, o que também lhe tolhe recursos. Mas os motivos para tamanho isolamento não são poucos.
“Entrar numa reserva biológica pode trazer impactos como compactação de solo, levar espécies exóticas na carona de roupas ou veículos, afugentar animais, prejudicar espécies mais sensíveis à poluição ou ruído e elevar o risco de incêndios. São todos problemas sérios para uma área que protege a biodiversidade do Cerrado e a água da população. Além disso, ela é a única passagem conservada de animais do Parque Nacional de Brasília para a Bacia do Rio Maranhão, abrigando matas de encosta do Distrito Federal”, explica a chefe da área protegida.
Antes de se tornar reserva, a Contagem era uma “área de proteção de manancial”. Ainda hoje suas águas cristalinas são bombeadas, recebem um tratamento simples e chegam aos lares, indústrias e outras atividades nos bairros que a cercam e parte da Asa Norte de Brasília. A empresa pública de abastecimento não contribui com dinheiro para a manutenção da área, por falhas na legislação federal.
A Reserva Biológica tem apenas três servidores, lotados longe dali, no parque nacional. Ela não tem sede, postos de vigilância ou fiscais. Os brigadistas que combatem incêndios usam uma casa cedida pelo governo do Distrito Federal. Ano passado, foram 19 incêndios. Este ano, já passam de duas dezenas.
Demanda verde
Explore a região da Reserva Biológica da Contagem
Visualizar Reserva Biológica da Contagem em um mapa maior
Segundo Isabela Deiss, de alguns pontos dos bairros vizinhos partem trilhas ilegais para os interiores da Contagem, principalmente de Sobradinho e vila Basevi (explore mapa acima). A área protegida foi instituída justamente para conter o crescimento urbano e preservar riquezas do Cerrado, mas os motivos que levaram a sua criação agora provocam degradação. Os núcleos habitacionais cresceram sem manter áreas verdes, fazendo das águas e sombras da reserva biológica um grande atrativo para os fins de semana e dias calorentos.
“Os habitantes da vila Basevi entendem o papel da reserva biológica, mas é muito difícil explicar a proibição do acesso às cachoeiras e outros atrativos para uma comunidade sem opções de lazer e sem transporte regular para buscar outras regiões”, avalia Brandão, da ACMVB.
Presidente da União dos Condomínios Horizontais e Associações de Moradores no Distrito Federal, Júnia Bittencourt reconhece o mesmo problema. “A criação da reserva privou as ocupações vizinhas de opções de lazer, até porque elas cresceram sem manter parques e praças. Agora, quem gosta de campo, de água, de cascata, não tem para onde ir. Por isso alguns entram na reserva, que tem muito disso, fazendo uso inadequado da área”, disse. “A parte baixa e mais degradada da reserva poderia ser transformada em um parque, permitindo o acesso da população, o que ajudaria a preservar a reserva. Manter esse pedaço intocado é difícil”, disse.
Dos 3.500 hectares da reserva biológica da Contagem, 54% são terras da União, ainda não totalmente regularizados. Os 46% restantes se dividem em terras particulares e porções em litígio judicial.
Importância histórica
Historiador Wilson Vieira Júnior comenta a importância da Reserva Biológica da Contagem. Imagens: Aldem Bourscheit. |
Não bastasse seu valor ecológico e para abastecimento público, a Reserva Biológica da Contagem abriga sítios arqueológicos e históricos que revelam traços da antiga ocupação humana do Cerrado e das atividades da Coroa Portuguesa na região.
Em três locais, pesquisadores localizaram artefatos em pedra datando de oito mil anos. Em outro ponto, o historiador Wilson Vieira Júnior (confira o vídeo acima) localizou traços da movimentação mercantil que cruzava a reserva pela Estrada Real da Bahia entre os séculos 18 e 19. O nome Contagem, segundo ele, se deve a antigos postos fiscais portugueses que ali existiam, onde se “contavam” escravos e mercadorias. O primeiro relato de passagem pela região é de um antigo tropeiro, no ano de 1734.
Passados quase três séculos, preservar uma reserva tão singular é um desafio inadiável.
Atalhos:
União dos Condomínios Horizontais e Associações de Moradores no Distrito Federal
Associação Comunitária Moradores Vila Basevi
Saiba mais:
Dor de cabeça na Contagem
Sítios históricos e arqueológicos em reserva
Pula cerca
Leia também
Desmatamento na Amazônia sobe 41% em novembro, mostra Imazon
Este é o sexto mês consecutivo de alta na destruição do bioma, segundo SAD/Imazon. Degradação florestal tem alta de 84% em relação a novembro de 2023 →
A um mês da posse de Trump, EUA lançam sua meta de corte de emissões
Proposta de Biden é reduzir entre 61% e 66% das emissões até 2035. Governadores dos principais estados dos EUA falam que meta será “estrela guia” →
Restauração muda paisagem em Guaraqueçaba, no litoral do Paraná
Iniciado há 24 anos, plantio de 300 hectares de Mata Atlântica pela SPVS uniu ciência e alta tecnologia, em um casamento que deu certo →