Janeiro já se foi e fevereiro chega ao fim com os moradores da cidade de São Paulo, região metropolitana e cidades do interior a olhar o céu e a rezar por chuva. Não só ali, mas em outras cidades do Brasil, o calor faz sentir na pele e na camisa molhada, a falta que fazem árvores frondosas e suas sombras. Com o verão mais quente e seco das últimas décadas, a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), a mais rica e desenvolvida do Brasil, enfrenta um sério risco de racionamento no abastecimento de água tratada. Caso ele se confirme, a medida afetará cerca de 10 milhões de pessoas (45% da Região Metropolitana), cujo abastecimento provem do Sistema Cantareira. Adicione a essa conta outros 5 milhões de habitantes do interior paulista, que também dependem dessa “caixa de água”, como é o caso de Campinas, para a conta fechar em 15 milhões de afetados.
Sem desrespeitar os registros climáticos históricos e atuais e suas inevitáveis consequências, enfrentamos um evento anômalo. Ao invés de olharmos para o céu em busca de nuvens, devemos olhar para baixo para enxergarmos outras razões para a escassez de água.
A água que chega a esses milhões de habitantes vem da cabeceira da bacia PCJ (rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí), que compõem os reservatórios do Sistema Cantareira, localizados na região bragantina de São Paulo e sul de Minas Gerais. O que acontece diariamente é uma grande transposição de água, a maior sendo direcionada para a Região Metropolitana de São Paulo. Rios, córregos e nascentes formam a bacia que alimenta reservatórios e, logo, todo o sistema.
Maus tratos
Um diagnóstico com imagens de satélite de alta resolução realizado pelo IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas mostrou que, embora haja boa cobertura de Mata Atlântica na bacia de drenagem do Sistema Cantareira (aproximadamente 40%), há um déficit nas Áreas de Preservação Permanente (APPs). Mais conhecidas como matas ciliares, as APPs têm o papel, entre outras funções, de proteger as cabeceiras de rios e nascentes, contribuindo para a manutenção da qualidade e da quantidade de água. O estudo, realizado em 8 municípios – Mairiporã, Nazaré Paulista, Piracaia, Joanópolis, Vargem (SP), e Extrema, e Camanducaia (MG) – descobriu que 53% dessas APPs estão cobertas com floresta, mas os 47% restantes são pastos para pecuária ou plantações de eucalipto, que ocupam 12% da bacia, e sua produção continua em franca expansão, devido à elevada demanda de carvão e lenha das grandes cidades.
A produção pecuária na região têm origens que remetem à colonização, há mais de 300 anos. Já a silvicultura para lenha e carvão teve início com a construção dos reservatórios do Sistema Cantareira, que, ao alagar as áreas planas e férteis próximas às cidades e onde, tradicionalmente, se plantava gêneros alimentícios como milho, arroz e feijão, fez a população se deslocar para as encostas e buscar uma cultura apropriada a essas áreas, como é o caso do eucalipto. Ambos os sistemas produtivos praticados na região carecem de práticas conservacionistas de solo e assistência técnica rural na escala de paisagem, visto que, quase metade da região de abastecimento desse sistema apresenta uso do solo e manejo da produção inadequados; inovações em ciência e tecnologia não vêm sendo implementadas com frequência.
A ausência de cobertura florestal nas APPs permite uma maior degradação ambiental, e consequências nefastas aos recursos hídricos. O relevo da região é ondulado a acidentado, o que favorece processos erosivos e sedimentação nos corpos hídricos, provocando assoreamento. As áreas florestais que abrangem represas que abastecem o Sistema Cantareira são fundamentais para a recarga hídrica do sistema, pois conferem uma infiltração mais lenta e limpa da água da chuva no solo.
Há também uma falta de ações coerentes com a proteção de um manancial dessa importância. As estradas rurais, por exemplo, são mal projetadas e com manutenção deficitária. A quantidade de barcos a motor navegando nos reservatórios tem aumentado, e as atividades turísticas surgem de forma desorganizada. Consequências incluem especulação imobiliária, parcelamento e impermeabilização do solo por construções inadequadas, resíduos de combustíveis e óleos lubrificantes das embarcações, presença de pousadas e marinas.
Esse cenário, somado ao desrespeito à legislação ambiental e à sedimentação provocada pelo uso inadequado do solo estão “sufocando” nascentes e corpos d’água que desaguam nos reservatórios. Portanto, estamos cuidando mal das áreas situadas na bacia de drenagem do Sistema Cantareira.
Desperdício
Além disso, se espiarmos “dentro do cano” perceberemos como o clima não é o único culpado. Estimativas indicam que 25% da água destinada a São Paulo se perde em tubulações antigas e em ramais clandestinos. Dessa forma, se não temos cuidado com a caixa d’água que nos abastece e ainda desperdiçamos boa parte da água após ser armazenada e tratada, não podemos responsabilizar apenas São Pedro.
O Cantareira pode ser eficiente, como ocorre com sistemas semelhantes de outros países, que utilizaram conhecimento técnico e envolvimento da sociedade. A viabilidade do Sistema Cantareira depende das chuvas e de nós, cidadãos. Ao poder púbico cabe maior fiscalização e aplicação da legislação ambiental vigente. Também é necessário maiores investimentos em assistência técnica rural e eficiência no sistema de distribuição de água. Há urgência da sociedade melhorar atitudes com relação à economia de água no cotidiano, a partir de uma verdadeira consciência ambiental.
Muitas organizações da sociedade civil têm contribuído para a conservação ambiental, mas muito precisa ainda ser feito. Cabe à academia a geração de pesquisas e informações que auxiliem nas questões ligadas à proteção da água e das florestas que as protegem. Cabe a nós, eleitores, escolhermos representantes preocupados com políticas públicas inovadoras e ferramentas arrojadas de conservação ambiental. Nossa água depende desses fatores.
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