Indo de carro de São Paulo para Curitiba para participar do Congresso Brasileiro de Unidades de Conservação, fui tomado pelo pensamento de como a beleza natural é uma coisa subjetiva.
À medida que a BR-116 sobe pelo Vale da Ribeira para a Serra do Mar e além do planalto do Paraná, as paisagens são de tirar o fôlego. Os verdes morros decorados ocasionalmente com palmeiras subindo por picos que se escondem em nuvens, casas com paredes encardidas e telhas vermelhas, algum gado pastando em meio à garoa – é um cenário rural idílico, com aquele toque exótico que excita o olhar de um europeu.
Por que esse europeu (um britânico tão longe de casa não pode se dar ao luxo de levar em conta o filete de água que o separa do continente) observa o cenário com tanta emoção?
Na triste condição de saber um pouco sobre a história recente da Mata Atlântica, não consigo olhar para essas montanhas sem imaginá-las cobertas pela natureza abundante que fazia parte da paisagem até alguns anos atrás. Ainda mais porque vários trechos da estrada são acompanhados por boas extensões dessa mata densa.
A viagem carrega, portanto, uma espécie de culpa misturada com tristeza. Culpa por ter que admitir que a paisagem degradada é pitoresca e por ter que reconhecer que a tristeza que tempera o meu prazer em observar esses campos contém mais do que um toque de hipocrisia.
Uma viagem pelo interior da Escócia apresentaria praticamente a mesma composição de campos e florestas, apesar de que a maioria das árvores não seria nativa, em plantações de pinheiros que nem de longe poderiam ser confundidas com uma vegetação “primária”. Mesmo assim, nunca tive problema nenhum em apreciar a beleza das paisagens da Escócia.
A principal diferença, claro, entre os morros da Grã-Bretanha e as montanhas do litoral do Brasil é que, enquanto ainda existem partes da Mata Atlântica intocadas pelo homem, o meio ambiente britânico foi transformado durante dois milênios — ou mais — de forma que o que vemos como “natural” é na verdade uma paisagem criada. A Inglaterra pré-romana, em que esquilos podiam cruzar o país sem tocar o chão, é um sonho distante, irrelevante diante das previsões assustadoras sobre o futuro do interior do país.
Então, quando observo com desaprovação os morros carecas que acompanham a BR-116, eu tenho a consciência de estar expondo aquela arrogância imperialista, típica dos países do hemisfério norte, que diz para as nações do sul: podemos ter desperdiçado nosso meio ambiente para alcançar os bens industriais, mas agora o mundo sabe as conseqüências e vocês têm que preservar suas reservas naturais. Faça o que eu digo, não faça o que eu faço.
Mas quatro dias no Congresso em Curitiba me convenceram de que o Brasil não precisa de discursos importados com tom didático sobre a urgência de conservar o que sobrou da riqueza natural do país. No bem bolado Centro de Convenção da Embratel, no shopping Estação, havia um exército de jovens brasileiros comprometidos em confrontar o passado e o presente numa batalha pragmática pela sobrevivência da herança natural do Brasil.
Não que eu tivesse qualquer ilusão de que eles eram um exemplo representativo da sociedade brasileira. Como as palestras constantemente enfatizavam, a luta para criar unidades de conservação tem que superar atitudes culturais enraizadas pela história do país, que durante muito tempo tratou as áreas selvagens como uma fronteira esperando para ser ocupada e transformada em algo mais lucrativo.
Em nenhum outro momento isso foi mostrado de forma mais eloqüente do que nos comentários do historiador José Augusto Pádua sobre um anúncio de televisão em que um fazendeiro mostra orgulhosamente ao seu filho as plantações de soja que ele vai herdar. E vangloria-se ao dizer que há vinte anos, quando chegou ali, não havia nada — querendo dizer que ali existia “apenas” cerrado, a pouco carismática mas biologicamente rica savana brasileira.
Certamente essa atitude não é única do povo brasileiro. Seria ela tão diferente do espírito pioneiro dos colonizadores do oeste americano, determinados a domar as pradarias e desertos (e remover à força os indígenas nativos)? Não por acaso, palestrantes americanos como o campeão dos parques nacionais Alfred Runte tiveram o cuidado de lembrar à audiência que seus próprios compatriotas tinham destruído grande parte de seus ecossistemas, enquanto o Brasil pelo menos ainda tem a oportunidade de salvar as significativas áreas selvagens que permanece intactas no país.
Também na Europa, cinqüenta anos do sistema de Política Agrícola Comum (Common Agricultural Policy) tiveram um impacto devastador sobre a biodiversidade ao encorajar fazendeiros a remover remanescentes de natureza para maximizar a produção de alimentos. Felizmente esse quadro está sendo invertido com subsídios para manejos favoráveis ao meio ambiente, mas estamos longe de poder dar qualquer lição de moral.
O que me impressionou no Congresso de Curitiba foi ver esse movimento “verde” concentrando-se em rigorosos argumentos científicos, sociais e econômicos para expor suas ações, em vez dos habituais protestos e slogans que costumam acompanhar os ambientalistas em outros lugares. Eram pessoas de todas as partes do Brasil que botam a mão na massa, fazem trabalho de campo para melhorar as coisas em vez de ficarem apenas gritando palavras de ordem.
Mesmo sem a carga dramática de uma plataforma de petróleo invadida pelo Greenpeace, estudos meticulosos podem ser uma arma poderosa. Um bom exemplo é a rigorosa demolição feita por Carlos Young do mito de que desmatamento gera empregos. Seu estudo sobre mais de 600 municípios na região da Mata Atlântica revelou que acontece exatamente o oposto: as áreas onde a natureza está mais devastada lideram o ranking de desemprego.
Recentemente, testemunhei um exemplo extremo da tese de Young, ao visitar Alagoas, onde 500 anos de cultivo de cana-de-açúcar e criação de gado deixaram apenas ilhas minúsculas de floresta e produziram uma das piores pobrezas do país.
Em alguns momentos as palestras se tornavam profundamente deprimentes e assustadoras. Assistindo a José Maria Cardoso Silva, da Conservação Internacional, passar uma seqüência de mapas mostrando a devastação do interior da Mata Atlântica e do Cerrado nos últimos anos, foi tentador pensar na indiferença de Nero ao ver Roma queimar. Encontrei várias pessoas no Congresso que tinham exatamente essa sensação em relação ao atual governo brasileiro.
Na estrada BR-116, voltando para São Paulo, observei os morros desnudos com a mesma tristeza, mas um pouco menos culpado. A batalha pelo futuro do meio ambiente no Brasil está sendo travada dentro do país – e se alguém vai conter essa exploração aparentemente desenfreada das áreas naturais é a geração de estudantes e profissionais comprometidos que se reuniram semana passada em Curitiba.
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