Quando as chamas consumiram boa parte do acervo do Museu Nacional, em 2018, no Rio de Janeiro, perdeu-se um patrimônio incalculável. Entre os itens consumidos pelo fogo estavam dois pequenos ossos de dinossauro: uma maxila, com três dentes implantados, e um dentário. Perdeu-se o fóssil, mas se não perdeu o conhecimento. O registro do material, que estava sendo analisado e estudado na época por uma equipe de paleontólogos, foi o suficiente para trazer uma nova peça ao quebra-cabeça pré-histórico e descrever a primeira espécie de dromeossaurídeo do Brasil, a Ypupiara lopai.
Os dromeossaurídeos pertencem ao grupo de dinossauros carnívoros dos quais fazem parte os “raptores”, como foram popularizados, dentre os quais está o hollywoodiano Velociraptor. Esse grupo de dinossauros ocorria em diferentes regiões do planeta e na América do Sul está sob o guarda-chuva da subfamília Unenlagiinae, que conta com apenas sete espécies. O Ypupiara lopai é a única espécie brasileira do grupo.
A descrição do novo dinossauro foi publicada no periódico Papers in Paleontology, no início de agosto, mas a descoberta do Ypupiara começou, na verdade, entre as décadas de 40 e 60, quando o paleontólogo Llewellyn Ivor Price – brasileiro de família americana – e seu coletor, Alberto Lopa – homenageado no batismo da espécie –, escavaram o fóssil na região do Triângulo Mineiro, próximo ao município de Peirópolis. Diante do conhecimento disponível à época, os ossos permaneceram um mistério para Price, que os catalogou apenas como “vertebrado indeterminado”. E assim permaneceu, sem identidade, por mais de 50 anos, escondido numa gaveta no Museu de Ciência da Terra, no Rio de Janeiro.
“Em 2017, eu e meus colegas estávamos visitando os materiais do museu e soubemos que havia um material não diagnosticado e identificado, e assim nós fomos apresentado ao material que viria a ser o Ypupiara lopai”, lembra o paleontólogo Arthur Brum, um dos autores do artigo, assinado junto com outros cinco pesquisadores. “Começamos a investigar um pouco mais sobre esse vertebrado indeterminado, fomos afunilando pelas características do fóssil e chegamos na conclusão de que se tratava de um dinossauro, um dromeossaurídeo, que são os raptores, e de uma subfamília, um grupo específico chamado de Unenlagiinae, que são os dromeossaurídeos da América do Sul. E não tínhamos, até o último momento, certeza de que se tratava de uma espécie nova para a ciência. Foi só depois de comparar muito com outros espécimes que a gente percebeu que as características daquele espécime eram únicas quando combinadas”, explica o paleontólogo do Departamento de Geologia e Paleontologia do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Palco da pesquisa dos paleontólogos, os cientistas levaram um duro golpe quando o Museu Nacional foi consumido por um incêndio, em setembro de 2018, e transformou o único registro fóssil da espécie de dromeossaurídeo em cinzas. “Foi bem complicado para nós. Fizemos várias reuniões para discutir se deveríamos continuar com a publicação ou não, uma vez que o material estava perdido. Porque eram informações importantes, embora não houvesse mais o holótipo, que é esse exemplar original, o fóssil em questão”, conta Arthur. De acordo com ele, os pesquisadores se debruçaram então sobre o Código Internacional de Nomenclatura Zoológica para entender melhor a situação.
“O Código permitia isso [nomear uma espécie nova], uma vez que o material estivesse depositado antes em um museu, o que era o caso, e todo o fóssil tivesse sido documentado. E nós tínhamos fotos em alta resolução, medições e descrições antes da perda do material e que foram registradas em depositário público, então essa base de dados está disponível para quem quiser acessar o material. Então preenchia os requisitos para que fosse possível nomear uma espécie nova”, contextualiza o paleontólogo da UFRJ.
Até então, havia apenas registros escassos e insuficientes sobre a ocorrência dos dromeossaurídeos no Brasil, como dentes isolados e uma vértebra dorsal fragmentada. O paleontólogo explica que, na paleontologia, uma espécie nova não é determinada pela quantidade de ossos e sim pelo seu caráter único. “Se você tem características únicas que não são encontradas em nenhum outro indivíduo daquele grupo é uma espécie nova, independente do tipo de osso que for. É o caso do Ypupiara, que representa uma espécie única para unenlagíneos”.
O nome Ypupiara significa em tupi “aquele que vive nas águas”, uma referência à dieta associada à espécie, composta de peixes. “Muito provavelmente, esses animais eram forrageadores ribeirinhos, se alimentando de peixes e pequenos animais, como anfíbios e pequenos lagartos, o que condiz com o cenário do Triângulo Mineiro entre 72-66 milhões de anos atrás, perto do final do Cretáceo, que marca a extinção dos dinossauros não-avianos”, detalha Rodrigo Vargas Pêgas, da Universidade Federal do ABC, e outro autor do estudo.
A análise evolutiva e filogenética feita pelos pesquisadores sobre o Ypupiara indicou que ele é uma espécie irmã do Austroraptor cabazai, dromeossaurídeo descoberto na Argentina, e que viveu no mesmo período que o Ypupiara, o Cretáceo Superior (entre 100,5 milhões e 66 milhões de anos). Uma das hipóteses dos paleontólogos é de que o extenso deserto do Caiuá, que existia na época entre o que hoje são São Paulo e a Argentina, representava uma barreira para dispersão dos dromeossaurídeos e que, com o aumento da umidade e o surgimento dos rios na região, o fim do deserto permitiu que esses dromeossaurídeos chegassem ao Brasil.
Mesmo com apenas dois ossos disponíveis, os paleontólogos conseguiram reconstruir como seria este dromeossaurídeo de cerca de 3 metros de comprimento, da ponta do focinho até a ponta da cauda. “Nós reconstruímos com base no que encontramos no grupo. O Ypupiara, por exemplo, só tem essa parte do crânio. Comparando com outros unenlagíneos que também têm crânio, percebemos que ele é parecido com o formato alongado que a gente encontra tanto no Austroraptor cabazai quanto no Buitreraptor gonzalezorum, então muito provavelmente ele deve ter um crânio alongado também. Os dromeossaurídeos têm esse padrão corporal que não muda muito na linhagem, os braços reduzidos, o corpo com uma cobertura de penas, as patas (membros posteriores) bem alongados e a cauda mais retilínea. São padrões corporais dentro do grupo e é a partir disso que a gente faz essa referência de como seria o organismo. E a paleoarte é uma expressão de como a gente enxerga aquele organismo com todas as evidências que temos até o momento, através do qual temos um vislumbre de como seria a aparência provável dessa espécie”, explica Arthur.
“É importante destacar que só foi possível encontrar esse material porque ele estava depositado em um museu, numa instituição científica. Isso atenta a gente pro valor das coleções e a importância da manutenção desses museus. Os museus não são apenas casas de exposição, são instituições de pesquisa e importantes para uma nação. Precisamos atentar para o quanto a gente pode aprender desse “material velho” que foi coletado em determinado período, quando ainda não havia tecnologia ou conhecimento para acessá-lo, mas que futuramente pode ser decifrado”
Arthur acredita que há boas chances de outros restos fósseis do Ypupiara lopai serem encontrados por paleontólogos para ajudar a trazer mais informações sobre este dromeossaurídeo brasileiro. “O trabalho nunca para. Não apenas nós, mas outros paleontólogos estão em campo e estão sendo descobertos novos sítios paleontológicos no Brasil, há potencial para muitas descobertas ainda e acredito que o Ypupiara é o primeiro de outros dromeossaurídeos que virão por aí”, comenta.
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Parabéns pelo texto!!! Destaca-se ainda mais a importância de nossas coleções biológicas, uma vez que foi por muito tempo o local onde este material pode ser estudado e também destaca a importância de nossos pesquisadores brasileiros, que mesmo diante de tanta mazela em relação a pesquisa cientifica conseguem está publicando excelentes trabalhos e contribuindo muitíssimo com nossa aquisição de conhecimento.