Um projeto de 25 anos que salvou as tartarugas-da-amazônia do risco de extinção começa a ver seus resultados serem corroídos pelo apetite da população e pelos seguidos cortes orçamentários decididos em Brasília.
Em 1979, a tartaruga-da-amazônia (Procnemis expansa) estava destinada a desaparecer em dez anos. Se existe até hoje, isso se deve ao trabalho do Centro Nacional de Conservação e Manejo de Quelônios da Amazônia (Cenaqua), que ajudou cerca de 50 milhões de filhotes a alcançar os rios da região após o nascimento. O número é quase oito vezes maior do que o registrado por seu similar, e muito mais conhecido, Projeto Tamar, que se dedica à conservação das tartarugas marinhas no litoral brasileiro.
Há três anos, as verbas do Cenaqua para salvar as tartarugas-da-amazônia foram cortadas por pura e simples contenção de gastos. Os gabinetes da capital federal consideram que a espécie está livre da extinção. Não pelo controle das ameaças à maior tartaruga da região amazônica, mas pela recuperação das populações nativas. O problema é que, enquanto o trabalho de conservação da espécie foi enfraquecido, a carne do animal continua a ser mercadoria valiosa para a população ribeirinha. As tartarugas prestam-se à culinária, herdeira das tradições indígenas, e são disputadas pelo tráfico de animais silvestres para serem revendidas nas grandes cidades das regiões Norte e Centro-Oeste. Ao consumidor final, chegam cotadas a R$ 15 o quilo. Um animal de grande porte, comumente servido em grandes festas, pode ser vendido por até R$ 500.
Os atrativos comerciais incentivam a criação das tartarugas em cativeiro. Já são 120 os criadores que engordam os animais antes de vendê-los ao consumidor, com aval do Ibama. Seria uma solução para aliviar a pressão da caça clandestina, não fosse um detalhe. Apesar da criação em cativeiro ter sido aprovada em 1991, o abate do animal ainda não foi regulamentado, o que limita as possibilidades de venda e as transações interestaduais. A carga tributária também prejudica o negócio. Atualmente, os criadores só vendem o animal vivo a pessoas físicas da mesma região ou a restaurantes, o que é permitido pela legislação existente, com técnicas de abate caseiras.
Os números são a melhor tradução do fracasso da criação comercial. De acordo com dados do Ibama, há cerca de 1 milhão de tartarugas sendo criadas em cativeiro no Brasil, porém apenas 12 mil foram comercializadas desde 1991. Projeto substituto do Cenaqua, o Centro de Manejo e Conservação de Répteis e Anfíbios (RAN) estima que haja 200 mil animais prontos para o abate no Brasil. Sem a regulamentação, porém, não há como dar vazão para o produto.
Vale mais a pena ser criador clandestino. Eles não precisam investir em instalações apropriadas nem em alimentação especial, não pagam impostos e não esperam um ano e meio para engordar os animais ao ponto de abate. Os impostos correspondem a nada menos que 89,35% do preço da venda legal das tartarugas. Sobre cada real faturado com a carne do bicho incidem 18% de ICMS, 27,5% do lacre do Ibama, 36% de Tarifa de Fiscalização Ambiental (TFA) e mais 7,85% destinado ao imposto de renda, PIS, Cofins e Contribuição Social. Este cálculo foi feito pelo diretor do criadouro Profauna, Paulo Bezerra, levando em conta o valor de 10 reais por quilo.
A caça e a criação clandestina envolvem métodos cruéis. É comum, por exemplo, o uso de currais onde os animais que viviam na natureza são colocados por uma ou até duas semanas para emagrecerem antes do abate. Isto é feito porque a carne com excesso de gordura é pouco apreciada pelos consumidores. Os currais são construídos no meio da floresta, com cercas de estacas da mata nativa ou em covas de até 1,5 metro de profundidade.
Outra técnica é esperar o momento da desova e virar as tartarugas com o casco para baixo até que morram ou sejam recolhidas e levadas ao curral. Os caçadores também estendem redes de uma margem à outra dos rios onde elas desovam. Essa prática pode matar o animal por afogamento e prejudica a sobrevivência de outras espécies, como o peixe-boi. Segundo o técnico ambiental do Ibama em Roraima, Antonio Galdino de Souza, as redes são tão grandes que é bastante difícil tirá-las do rio.
Roraima é o estado onde a desova e a eclosão dos ovos é mais tardia, entre os nove onde há presença dos quelônios. Devido à localização próxima à linha do Equador, que influencia o ciclo das águas, as baixas dos rios no estado acontecem por volta de janeiro, mês em que ocorre a desova. Em março, nascem os filhotes. Em outros estados amazônicos, a desova começa em junho. Por isso, em 2005 só foram realizadas atividades de manejo em Roraima. O Ibama de lá encaminhou 12 mil filhotes para os rios. O próprio Galdino reconhece que é um número pequeno, quase insignificante, para a atividade. O estado já conseguiu manejar 734 mil tartaruguinhas, na temporada 1996/1997.
A queda é reflexo direto do corte de verbas. Segundo a coordenadora de conservação e manejo do RAN, Vera Lúcia Ferreira Luz, nesta última temporada o orçamento para os quelônios da Amazônia foi de pouco mais de R$ 100 mil, para ser dividido entre nove estados e 16 bases de manejo. Ou seja, menos de R$ 10 mil por base, para uma atividade que requer mão-de-obra intensiva e alto investimento em transporte por terra e água. Nos anos “bons”, quando o número de filhotes manejados passava tranqüilamente da casa do milhão, o orçamento girava em torno de R$ 500 mil a R$ 600 mil. Não sobrava dinheiro (segundo Vera, o ideal seriam R$ 2 milhões em valores de hoje), mas pelo menos o trabalho garantia bons resultados.
Eles podem ser avaliados pelo número de fêmeas que comparecem anualmente aos tabuleiros (bancos de areia) para desovar. No Rio Guaporé, o número de “matrizes” pulou de 820 para 2.200 depois de dez anos de manejo. No Tapajós, ele dobrou: de 600 para 1.200. Mas em alguns locais, apesar dos esforços, houve queda. É o caso do rio Trombetas, onde em 1989 foram registradas 850 matrizes desovando, e só 200 no final do ano passado, de acordo com dados de Richard Vogt, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).
Com a redução da fiscalização e do manejo, já é possível perceber os danos às tartarugas nas apreensões que são feitas. Galdino lembra que há alguns anos os animais apreendidos chegavam a pesar 60 quilos e às vezes passavam de um metro de comprimento. Ou seja, eram adultos. Hoje, é cada vez mais raro achar um animal deste tamanho. A maioria das tartarugas apreendidas ainda está na juventude. A diferença demonstra que a pressão da caça já começou a reverter o trabalho de 25 anos.
A falta de verba também limitou bastante o desenvolvimento de pesquisas sobre o ciclo de vida e os costumes do animal. Por sua vez, a escassez de conhecimento científico afeta os criadores. “Tartaruga não é peixe, não é galinha, não é porco. Elas demoram para crescer”, diz Vogt, do Inpa. No início, os fazendeiros levavam até quatro anos para conseguir levar a tartaruga ao tamanho de abate. A demora é uma das razões que esfriou o ânimo dos criadores, deixando-os com um “grande pepinão nas mãos” como avalia Galdino. Mas, do jeito que a coisa vai, ou as tartarugas aprendem a correr, ou os criadores finalmente verão o retorno do investimento. Seu produto se tornará exclusivíssimo.
* Rodrigo Squizato mora em São Paulo, é repórter free-lancer e formado em administração de empresas pela Fundação Getúlio Vargas.
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