Quem poderia imaginar que aqueles meninos de 12 anos, circulando pelos corredores do Congresso Nacional, olhos curiosos em tudo e todos à sua volta, pudessem ter tanto a ensinar?
Encontrei-os por acaso, participando de um seminário sobre Áreas Contaminadas na Câmara dos Deputados. Rodrigo Romuldo da Silva (na foto, discursando) e Thiago Leite Cereijo (à direita, à frente) chamaram a atenção pela desenvoltura com que falam da situação da Lagoa de Carapicuíba, cidade com 600 mil habitantes na região metropolitana de São Paulo. A surpresa é ainda maior quando se descobre que os meninos fundaram uma ONG, a Lago Vivo, quando tinham apenas 9 anos de idade.
Tudo começou numa aula de Ciências na 3ª série da Escola Engenheiro Mário Soares Souto. A professora Gilmara Inês de Almeida Lopes, hoje coordenadora da escola, falava sobre meio ambiente e contaminação das águas. Notando o interesse dos garotos, resolveu organizar uma visita à Lagoa de Carapicuíba. Rodrigo e Thiago testemunharam o efeito da poluição no local, destino de quase toda a lama retirada do fundo do rio Tietê. Eles se entristeceram ao perceber o estado do que acreditavam que fosse o cartão de visitas de sua cidade. Na verdade a lagoa é um piscinão de entulho, onde as crianças insistem em brincar e pescar, apesar do cheiro ácido de esgoto e da poeira que arranha os olhos e a garganta.
A Lagoa de Carapicuíba foi escolhida como depósito para os 6 milhões de metros cúbicos de lodo e lixo que serão retirados do fundo do rio Tietê para reduzir as enchentes da capital paulista. A obra faz parte do Projeto Tietê, que o Governo do Estado de São Paulo vem realizando desde 1992. Parte dos R$ 688,3 destinados ao projeto vem do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Japan Bank International for Cooperation (JBIC), que justificam o empréstimo pelo benefício ambiental de despoluir o Tietê. Mas a verba acaba bancando a poluição da lagoa.
A área da Lagoa de Carapicuíba com o material retirado do Tietê será aterrada e sobre ela será construído um parque de diversões para a população extremamente carente da região. “Mas quem é que vai querer brincar ali?”, pergunta Rodrigo. “No Tietê existe ferro, manganês, chumbo e outros materiais que são prejudiciais à nossa saúde. Se for feito o parque, as crianças nem vão poder andar descalças”, ensina o menino.
Ele tem razão. A presença de metais pesados no material retirado do Tietê já foi comprovada por vários estudos. Desde o início de 2002, uma disputa jurídica vem gerando liminares proibindo e liberando a retirada do lodo do rio e seu depósito em Carapicuíba. A poluição da lagoa causou mortandade de peixes em 2003 e fez com que o Ministério Público Estadual convocasse especialistas para estudar o solo da região. O Instituto de Ciência e Tecnologia em Resíduos e Desenvolvimento Sustentável (ICTR), formado por profissionais da Unicamp e da USP, constatou a presença de metais como chumbo, cromo total e cádmio – com efeitos cancerígenos – e pesticidas como o heptacloro. O despejo de material tóxico chegou a ser suspenso por ordem do Supremo Tribunal Federal (STF) porque estaria causando problemas de saúde na população local. Mas em outubro de 2004 foi novamente liberado.
O Governo do Estado de São Paulo afirma que não há contaminação na área da lagoa. Informa que 95% do material retirado é enviado a Carapicuíba e que os 5% restantes – onde estariam os metais pesados tóxicos – vão para aterros devidamente habilitados. Diz ainda que o aterro e o parque público não vão afetar o meio ambiente. Pelo licenciamento da obra, resíduos inertes (restos de rocha e solo) podem ser despejados na lagoa.
Não bastassem os problemas atuais, o histórico do local é de dar calafrios. Com 800 metros de largura por mil de comprimento, a lagoa foi formada artificialmente num local de escavações de mineração. Ao longo do tempo, passou a receber várias fontes de poluição, incluindo parte do esgoto da cidade. Fica ao lado de um conhecido lixão que, apesar de fechado, continua a liberar chorume para o subsolo, e dele para as águas.
“Não somos contra o parque, mas do jeito que está, todo mundo pode ficar doente se brincar ali”, contesta Thiago. “De que adianta resolver o problema de enchente em São Paulo, limpar o Tietê, se vai poluir o lago da nossa cidade?”. Cerca de 20 crianças e adolescentes formam a ONG Lago Vivo. Nos últimos três anos, organizaram passeatas e manifestações contra o aterro de Carapicuíba. Rodrigo e Thiago, que já fazem planos para trabalhar como biólogos ou políticos (“para poder fazer alguma coisa”), querem ser recebidos pelo prefeito da cidade.
Enquanto isso não acontece, a dupla tem sido convidada a estar em diversas cidades para ajudar outras crianças a formarem suas “onguinhas”, como se definem eles próprios. Também participam de debates como o que discutiu Áreas Contaminadas na Câmara dos Deputados, em maio. Ali, no centro da política nacional, falaram do novo projeto da ONG: estão gravando um documentário com depoimentos de moradores da região. “Queremos mostrar o que o povo pensa e que o parque seja feito com terra boa”, afirmam.
O mais importante para eles, nas viagens realizadas Brasil afora, é ver que existe uma série de problemas ambientais de escalas variadas, mas que também há pessoas engajadas na luta pela defesa do meio ambiente. “Precisamos conscientizar os políticos da importância do meio ambiente para as crianças”, fala Rodrigo. “Se nos unirmos para preservar o meio em que vivemos, não assistiremos mais ao que acontece na Lagoa de Carapicuíba”.
* Fabrício Escandiuzzi é jornalista e bacharel em direito. Colabora com as revistas Época e Criativa.
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