Criticada por entidades civis e servidores federais por supostas falta de transparência, de debates técnicos e desvios de finalidade, uma cooperação amarrada entre o governo anterior e uma ong é investigada pelo Ministério Público Federal (MPF).
Desde 1981 abrigando 135 mil hectares de ambientes e paisagens da planície alagável – pouco menos que a capital São Paulo (SP) –, o Parque Nacional do Pantanal está no epicentro de denúncias sobre um acordo de agosto de 2021 entre o ICMBio e o Instituto do Homem Pantaneiro (IHP) para cogestão da reserva federal.
A parceria válida por 5 anos prevê a cooperação para monitorar embarcações, fortalecer pesquisas científicas e combater incêndios. Não há dinheiro envolvido. O pacto foi firmado pelo então presidente da autarquia, o coronel da Polícia Militar de São Paulo Fernando Lorencini, exonerado em outubro daquele ano.
A reportagem levantou que denúncias enviadas ao MPF geraram um inquérito civil para verificar a regularidade e impactos do acordo sobre comunidades tradicionais. Uma ação civil pode ser ajuizada se forem apurados riscos de danos a bens de interesse difuso ou coletivo.
Uma das organizações críticas ao aperto de mãos é a Ecologia e Ação (Ecoa). Conforme seu diretor-presidente, André Siqueira, não houve concorrência pública para escolha da entidade civil, como pede uma lei de 2014, e outras ongs e servidores públicos foram pegos de surpresa no fechamento da parceria.
“Nossa preocupação é para que haja transparência e seriedade no que estão fazendo, o que parece que não há”, diz o biólogo.
Ele teme que o acordo não traga “transformações positivas à unidade”, como teria ocorrido com termos firmados desde 2008 pelo IHP. Numa das parcerias, diz Siqueira, não foram concluídas obras no parque com R$ 2,5 milhões doados pelo grupo EBX, do empresário Eike Batista.
Na época, a siderúrgica MMX, em Corumbá (MS), hoje uma massa falida do EBX, recorria de R$ 29,4 milhões em multas do Ibama. O valor era quase três vezes superior aos R$ 11,4 milhões repassados aos parques nacionais do Pantanal (MT), de Fernando de Noronha (PE) e dos Lençóis Maranhenses (MA).
“Não temos conhecimento das prestações de contas publicadas sobre a execução dos acordos anteriores, algo fundamental conforme a lei para novas parcerias”, conta o diretor-presidente da Ecoa. Servidores públicos engrossam as denúncias.
Ofícios do Sindicato dos Trabalhadores Federais na Área do Meio Ambiente no Mato Grosso à presidência do ICMBio em dezembro passado apontam que o acordo é usado para tentar mudar a sede do parque de Poconé (MT) para Corumbá (MS), a 1.100 km por rodovias ou 700 km por rios.
Há pouco mais de 100 km por terra da capital Cuiabá (MT), Poconé abriga o portão de entrada do parque. A administração do IHP e um escritório do Ibama estão em Corumbá.
Conforme o coletivo, a mudança fere o plano de manejo da reserva, uma espécie de manual de uso, prejudicará a fiscalização e aumentará os gastos de recursos públicos pelo deslocamento de servidores e materiais lotados em Poconé.
“Tais fatos não foram avaliados tecnicamente. Essa mudança é uma aberração. O acordo se tornou ‘muito amplo’ na prática”, ressalta o biólogo Fernando Xavier, ligado ao Sindicato e ex-coordenador-regional do ICMBio.
Em sua página, o parque nacional descreve que as instalações em Poconé têm “escritórios e residências funcionais, assim como embarcações para transporte de servidores e para as atividades de proteção ambiental”.
O Sindicato destaca, igualmente, que Bruno Águeda Ovelha não é um servidor efetivo do ICMBio e chefia atualmente a área protegida por indicação do IHP. Ele já supervisionou brigadas de combate a incêndios pela autarquia federal.
“[Ovelha] utiliza espaço cedido dentro das dependências do IHP para fazer funcionar atividades do Parque Nacional. Percebe-se […] que [essa] vinculação […] pode configurar conflitos de interesse”, destaca a entidade. O escritório do ICMBio junto ao IHP foi inaugurado em junho passado.
Pesca fisgada
O Ministério Público Federal (MPF) quer saber se o acordo entre o ICMBio e o IHP prejudicará a Comunidade Tradicional da Barra de São Lourenço, em Corumbá. A Justiça Federal permitiu em maio passado que seus moradores pesquem e coletem iscas no entorno do parque.
A decisão pede a sinalização das áreas alvo do extrativismo e a revisão do plano de manejo da reserva. A versão de 2019 do documento lista zonas de pesca artesanal, comercial e esportiva ao redor do parque, mas foi considerada insuficiente pelo MPF.
Como ((o))eco mostrou, pelo menos desde 2008 há pressões para liberação da pesca esportiva no entorno da área protegida federal, frequentado por hotéis flutuantes e outras embarcações recheadas de turistas e pescadores.
Parte dos anseios comerciais foi atendida por uma portaria de 2020 do ICMBio, que autorizou pescarias em parques e outras unidades de proteção integral em todos os biomas, incluindo o Pantanal. A medida ainda não foi revogada pelo atual governo.
Preto no branco
Documentos obtidos pela reportagem via Lei de Acesso à Informação contam que o acordo de parceria e a mudança do acesso ao parque nacional foram sugeridos pelo IHP (Instituto Homem Pantaneiro) ao menos desde maio de 2020 e acatados por dirigentes do ICMBio.
Os temas foram debatidos inclusive com o então diretor de Criação e Manejo de Unidades de Conservação, o coronel da Polícia Militar de São Paulo Marcos Simanovic. Ele presidiu a autarquia de novembro de 2021 até ser exonerado, neste governo. Simanovic já participou como aluno e palestrante do curso Estratégias para Conservação da Natureza, promovido pelo IHP para policiais do país todo.
Em março de 2021, um parecer da Advocacia Geral da União (AGU) dispensou o chamamento público de outras possíveis candidatas ao acordo de gestão do parque nacional pela “natureza singular do objeto da parceria” e pela “inviabilidade de competição entre as instituições parceiras potenciais”.
O IHP já responde pela gestão de outras áreas protegidas naquela região do Pantanal: as RPPNs (Reservas Particulares do Patrimônio Natural) Acurizal, Penha, Dorochê, Rumo Oeste e Engenheiro Eliezer Batista, além de 4 fazendas e um sítio. As demais são geridas por outras ongs, governo federal e proprietários privados.
O diretor-presidente do Instituto Homem Pantaneiro (IHP), Angelo Rabelo, coronel aposentado da Polícia Militar, afirmou a ((o))eco que a parceria de 2021 com o ICMBio renovou duas décadas de trabalho dedicadas à área protegida, historicamente carente de recursos humanos e financeiros.
“As críticas [ao acordo] são mais de caráter pessoal do que institucional. Nossa relação sempre foi para manter o parque funcionando”, diz.
Conforme Rabelo, recursos mobilizados pelo IHP beneficiaram a reserva federal com a construção de um hangar, reforma de edificações, bombas solares de água, sistema automatizado para monitorar a pesca e outros impactos, combate a incêndios, comunicação por rádio e Internet.
“Mais de R$ 5 milhões foram investidos nos últimos 15 anos em obras e manutenção no parque nacional, sempre com anuência de sua chefia”, descreve.
Também há projetos para ampliar e regular o turismo, fomentar o pesque-solte para preservar a fauna aquática e, adiante, reverter recursos de créditos de carbono à conservação regional. Um relatório do 2º semestre de 2021 ao fim de 2022 para atividades ligadas ao acordo pode ser conferido aqui.
Quanto à possível mudança da sede do parque nacional, o diretor-presidente do IHP afirmou que a mesma é prevista em seu plano de manejo e traria vantagens à área protegida e aos cofres públicos, como traz ofício da ong em maio de 2020 ao então presidente do ICMBio, o coronel da Polícia Militar de São Paulo Homero Cerqueira.
A “alteração permitirá a redução dos custos operacionais na manutenção de veículos, infraestrutura, logística e suporte existentes hoje. A economia ocorre em função da otimização [do] uso das estruturas do IHP, que estarão disponíveis (por exemplo, barco para transporte de insumos até o PARNA Pantanal e estrutura física para a sede administrativa)”.
Quanto à pesca regional, Rabelo denunciou que saltaram de 15 para 100 as famílias pescando no entorno do parque desde a comunidade da Barra de São Lourenço. “Há um descontrole sobre essa atividade”, afirmou.
O ICMBio não quis conceder entrevista sobre o acordo com o IHP. Sua Assessoria de Imprensa informa que o processo para mudança da sede do parque foi suspenso pela troca de governo e que será “oportunamente” reavaliado.
Uma fonte da Associação Nacional dos Servidores Ambientais (Ascema) comenta que o acordo será revisado pela nova direção da autarquia federal e pode ser incluída no “revogaço” em curso de medidas do governo anterior.
Atualização (23/01/2023): O Instituto Homem Pantaneiro (IHP) entrou em contato com a redação de ((o))eco no dia de hoje pedindo direito de resposta. A íntegra da mensagem pode ser lida aqui.
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