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Cascos ao léu

Atropelamento de tartaruga em avenida central comove porto-alegrenses e traz à tona um problema antigo: a superpopulação de quelônios nos parques da cidade.

Liège Copstein ·
25 de agosto de 2005 · 19 anos atrás

Os gaúchos amantes de tartarugas choram a morte acidental de uma delas, atropelada ao atravessar uma movimentada avenida central de Porto Alegre, no último dia 24 de agosto. A bichinha fugiu do Parque Marinha do Brasil e virou pasta no asfalto. Não é o primeiro acidente do gênero. E é a ponta de um iceberg: a superpopulação de quelônios nos parques da cidade.

No Farroupilha e no Moinhos de Vento, as duas áreas verdes do centro da capital gaúcha, o problema é antigo e vem crescendo. Ocorre que milhares de filhotes de tartaruga vendidos pelas pet shops da cidade acabam nos laguinhos desses parques depois que as crianças enjoam de brincar com elas.

Em geral, as tartaruguinhas são vendidas sob a promessa de que não crescerão porque são “anãs”. Pior: com a recomendação de que sejam alimentadas apenas uma vez por semana, pois assim não ficarão maiores. É claro que, mesmo subnutridos, os animais que sobrevivem acabam dobrando de tamanho em poucos meses – mas aí já não são considerados tão atraentes nem cabem em seus minúsculos aquários.

Chega o momento de descartá-los, sob a alegação de que “na natureza estarão mais felizes”. E muita gente entende por natureza os lagos artificiais dos parques Farroupilha, Moinhos e Marinha.

O mais grave é que a espécie nativa das tartaruguinhas verdes do Rio Grande do Sul, a Trachemis dorbign, mais conhecida como tigre d’água, é fauna silvestre ameaçada e como tal sua venda é proibida. Nas lojas, nenhum certificado de procedência de criadouro é apresentado. E embora a lei discrimine uma idade mínima para que os filhotes sejam comercializados, alguns deles são vendidos ainda com uma pequena cartilagem temporária acima da boca que serve para quebrar a casca do ovo durante o nascimento. Têm o tamanho de uma moeda de 1 real.

Outra parte das tartaruguinhas vendidas na verdade não é originária do Brasil, sendo da variedade Red Ear (Orelha Vermelha, ou Trachemis scripta), norte-americana, cuja venda não era proibida aqui até que o Ibama alertou para a competição entre as duas espécies, a nativa e a importada. É muito fácil diferenciar as espécies. A Tigre d’Água tem uma mancha amarela clara em cada lado da região que vai dos olhos ao pescoço. Já na Orelha Vermelha (foto), como o nome indica, a marca é de um laranja forte.

“A americana é mais agressiva e adaptável, procriando com mais facilidade”, informa a veterinária Maria do Carmo Both, do Parque Zoológico de Sapucaia do Sul, na Grande Porto Alegre. “Existe até a possibilidade de que acasalem entre si, criando indivíduos híbridos”. No Zôo são abandonadas anualmente de 50 a 60 tartarugas, que passam por uma triagem. As nativas são readaptadas ao ambiente natural, e as exóticas mantidas em cativeiro.

A veterinária Rosana Breyer Caldas, responsável pela fauna do Parque Farroupilha, afirma que é impossível precisar quantas tartarugas habitam o lago local, ou quantas dessas foram abandonadas por antigos donos, pois estes costumam fazer o descarte clandestinamente. A verdade é ao lado das nativas de vários tipos, muitas Orelha Vermelha já podem ser vistas aquecendo-se ao sol, em verdadeiros rebanhos de quelônios.

A situação é semelhante no Parque Moinhos de Vento. No início do ano, funcionários da Fundação Zoobotânica estadual, auxiliados pela Brigada Ambiental, tiveram que pescar tartarugas do lago devido à superpopulação. Segundo a engenheira agrônoma Gisalma Oliveira Pugina, administradora do parque, foram retirados três tonéis contendo cerca de 50 tartarugas cada.

Apesar de tudo, as tartarugas, um dos animais mais antigos da Terra, seguem suas longas vidinhas. No inverno, entram em estado letárgico e quase não comem. No verão, procuram as margens ensolaradas para fazer seus ninhos.

Sua presença simpática é tão comum que muitos porto-alegrenses incluem em seus passeios domingueiros – para desespero de veterinários – uma parada para alimentá-las com farelos de pão, ração para gatos e até pipocas. É a praga da junkie food no reino animal. Algumas das bichinhas, de tão obesas, quase não conseguem mais se recolher às carapaças.

* Liège Copstein, é jornalista em Porto Alegre, dona de tartarugas e amante de gatos.

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