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Mudaria o Natal ou o clima?

Ele não consta da lista de espécies ameaçadas, mas não resistirá ao aquecimento global. Não existe, mas corre risco de extinção. Ou seja: sobrou até para o Papai Noel.

22 de dezembro de 2004 · 20 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Este site cumpre o doloroso dever de avisar que o Papai Noel está na lista de extinção. Será uma vítima certa do aquecimento global. Por mais refrigerados que venham a ser daqui para a frente os shopping-centers, há limites para a credulidade humana. Que criança do século XXI será capaz de acreditar em alguém que veste, num planeta cada vez mais abafado, uma roupa desenhada para enfrentar as quedas de venda da Coca-Cola nos invernos novaiorquinos da década de 30?

Como todas as espécies adaptadas demais ao ambiente onde nasceram, o Papai Noel só pode ser suscetível às variações de temperatura. E nele se pode desconfiar de tudo, a começar pela sua existência. Mas sobre suas origens não paira a menor dúvida. Ele é nórdico. Tem todos os traços de um artista sueco chamado Haddon Sundblom, que lhe deu as feições definitivas, usadas dezembro após dezembro há mais de 70 anos. Até passar pelas mãos desse marqueteiro, o velho não tinha aparência fixa, muito menos universal. Ora encarnava como duende minúsculo, ora como um gigante balofo. Antigamente distribuía sob o pseudônimo de São Nicolau. Começou a vida magro como uma bruxa do Halloween, entrando na casa dos outros durante a noite metido, como um sonâmbulo, num camisolão que ia até os pés.

Sundblom profissionalizou-o. Dizem que, à falta de retrato oficial, emprestou-lhe o próprio rosto. Papai Noel tornou-se, desde então, o auto-retrato do ilustrador, que estava na ocasião a serviço de uma agência americana de publicidade. Com Sundblom, aprendeu também a se apresentar melhor em público. Antes, circulava com roupas de pele, como um esquimó qualquer. Dali para a frente, ganhou o inconfundível uniforme de trabalho, incorporando ao vermelho tradicional da fantasia natalina a cor que já era marca registrada do refrigerante. Fez um dos casamentos mais sólidos do mercado publicitário.

Trabalhando em dupla, a lenda e o refrigerante melhoraram a vida um do outro. A Coca-Cola achou nele um meio de vender seu produto gelado mesmo nos meses mais frios do ano. Não por acaso, Sundblom carregava nas tintas brancas, emoldurando seu Papai Noel em cenários glaciais. Com o velho, a marca ganhou as novas gerações, mercado que, originalmente, não era o seu forte. Feito com um xarope de cafeína e folha de coca, a bebida se insinuava, nos anúncios, como a poção mágica que turbinava o ancião obeso na noite de 24 de dezembro, ajudando-o na dura faina de entregar presentes a crianças que o planeta passara a multiplicar em ritmo de explosão demográfica. Mas só entrou firme na dieta infantil depois que o padroeiro dos meninos bem comportados empunhou a garrafa de cintura fina como um cetro gasoso.

Em troca, Papai Noel ficou quase tão popular e globalizado quanto a Coca-Cola. Sundblom era um artista de mão cheia. Nos anúncios, seu Papai Noel parece até hoje mais verossímil do que a cópia de carne e osso que se intitula o único Papai Noel autêntico – ou, pelo menos, a mais fiel imitação do garoto-propaganda septuagenário. O tal Papai Noel de verdade mora nas montanhas de Korvatunturi, no extremo norte da Finlândia, em cima do Círculo do Polar Ártico. Dirige no inverno trenós puxados por renas. É acolitado, como a Xuxa, por um comitê de baixinhos em trajes típicos, como miniaturas da guarda suíça do Vaticano.

O Papai Noel finlandês – ou seja, o Joulupukki – leva o papel a sério. Ou se leva a sério no papel. Além do mais, tendo DNA sueco e nacionalidade finlandesa, é duplamente escandinavo. Ocupa uma residência oficial que parece construída pelos engenheiros da Disneyworld. Vive num cenário que um Papai Noel de loja só vê em lata de biscoito. Declara, em seu site na internet, que quando não está fabricando brinquedos passa as horas vagas fazendo pão de gengibre. Seis anos atrás, ele veio ao Brasil – ou enviou um clone, o que dá no mesmo – para inaugurar em Penedo, no estado do Rio de Janeiro, a única filial brasileira da genuína Casa de Papai Noel.

A cidade mereceu a exclusividade por ter brotado em terra de colonos que vieram da Finlândia nos anos 20. Dispostos a levar aqui uma vida natural, mas novatos nos trópicos, eles compraram, perto de Resende, uma fazenda no Vale do Paraíba. Encaixado entre a Serra do Mar e a Mantiqueira, o lugar tem longos verões sufocantes. Mas foi ali que o interior fluminense conheceu a legítima sauna finlandesa e viu pela primeira vez o legítimo Papai Noel finlandês.

Ele saiu no inverno de Rovaniemi, na Lapônia, e veio parar diretamente no verão do Vale do Paraíba. Pegou um dia daqueles na festa de inauguração. Teve que esperar em sua cadeira, na Casa do Papai Noel, enquanto as autoridades percorriam as outras atrações da Pequena Finlândia, com todos os salamaleques de praxe. E conta a lenda – ou seja, dizem os repórteres encarregados de cobrir a solenidade – que ao chegar finalmente à sua presença os convidados encontraram o Papai Noel desfalecido. Feito sob medida para as noites nevadas, ele não agüentou o meio expediente no Vale do Paraíba. Como o urso polar, o pingüim da Antártida ou a própria Coca-Cola, só funciona com muito gelo.

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