Reportagens

Alerta vermelho

Os guarás são símbolos de resistência. Aves que sobrevivem para lembrar que ainda há natureza a ser preservada perto do mais importante porto do país.

João Teixeira da Costa ·
8 de setembro de 2005 · 19 anos atrás

Cubatão, uma segunda-feira de abril, 6 horas da manhã. O local é a Náutica da Ilha, na Ilha de Caraguatá. Estamos dentro da Baía de Santos (SP), atrás da Ilha de São Vicente. Viemos aqui encontrar o biólogo Robson Silva e Silva, para ver os famosos guarás vermelhos que vivem nos manguezais de Santos-Cubatão – e não vivem em nenhum outro lugar da costa brasileira ao sul do Maranhão.

A náutica fica de frente para o Largo de São Vicente, corpo de água que chama a atenção pelas enormes quantidades de lixo flutuando na sua superfície. Lixo doméstico, principalmente embalagens e garrafas plásticas, pedaços de madeira. Uma garça procurando alimento ali no meio.

Até aqui tudo corresponde àquela visão já um tanto antiquada de Cubatão, de um dos lugares mais poluídos do mundo, apesar de estarmos ainda distantes dos distritos industriais. Na medida em que avançamos pelo Largo do Pompeba na direção dos hábitats de manguezal do Largo do Caneu, onde vamos encontrar os guarás e outras aves que ali vivem, o que chama a atenção é a extensão e a pobreza das favelas em palafitas.

Cubatão mudou muito desde os anos 80, quando os acidentes de Vila Socó e Vila Parisi (1984/85) deram à região o sinistro apelido de Vale da Morte. Sob pressão do governo recém democratizado, as empresas do pólo industrial investiram pesadamente em equipamentos de controle de poluição, reduzindo bastante as suas emissões. Investiram também em educação ambiental e nas relações com a comunidade, e hoje não há mais lá agressões como dutos passando por dentro de favelas.

Mas nem por isso pode-se dizer que os passivos ambientais da Baixada foram zerados. Os produtos de décadas de emissões sem controle estão no meio ambiente – nos metais pesados acumulados no fundo do Largo do Caneu, por exemplo, que são absorvidos por plantas e algas. Assim entram na cadeia alimentar, com efeitos desastrosos. Além disso, a rápida e desordenada expansão das favelas é hoje a grande ameaça ao ecossistema.

E tem mais: Santos ainda é o mais importante porto brasileiro. Isso implica não apenas em movimento de navios de carga, com os acidentes inevitáveis, como também intensa pressão sobre o meio ambiente através de obras de expansão, dragagem de canais, e vazamentos de óleo combustível. Os terminais se expandem sobre as áreas de manguezais, ocupando hábitats preciosos e reduzindo o espaço disponível para a fauna dali.

Estamos avançando pelo Largo do Pompeba e subindo o Rio Casqueiro. Aqui e ali aparecem alguns trechos de manguezal, mas o entorno ainda é urbano e o que chama a atenção, além das palafitas, é a grande quantidade de urubus, atraídos pelos depósitos de lixo da região. Mas depois que deixamos para trás a Vila dos Pescadores a paisagem começa a mudar e logo nos vemos cercados pela vegetação típica de manguezal, adaptada às marés e ao alto grau de salinidade das águas.

Entramos pelo Rio Cascalho e começamos a ver os guarás – pontos de intenso vermelho que vão se resolvendo em aves elegantes, algumas delas empoleiradas nas árvores, outras se alimentando dos caranguejos que vivem nos bancos de lodo expostos pela maré baixa. Aos poucos vai ficando claro que, apesar de tudo, a fauna dos manguezais é rica. Colhereiros, talha-mares, garças, socós e outras aves são facilmente visíveis com os binóculos de Robson. Vemos ainda alguns maçaricos, aves migratórias que em breve terão retornado ao hemisfério norte, onde fazem seus ninhos.

O guará, no entanto, é a estrela, e acabou se tornando um símbolo da consciência ambiental que aos poucos vai se afirmando na Baixada. Esse caráter de símbolo se deve em grande parte ao trabalho dos biólogos Fábio Olmos e Robson Silva e Silva, que, com o apoio pioneiro da Fundação Boticário, documentaram a presença e os hábitos das aves nos manguezais da Baixada Santista.

O primeiro passo, em meados da década de 90, foi a contagem do número de guarás que viviam na região. A partir dali Olmos e Silva e Silva iniciaram um trabalho de monitoramento contínuo da população de guarás e da sua ecologia. Eram 385 indivíduos em 1994. Hoje, calcula-se que sejam pelo menos 500. Esse trabalho permitiu que se aprendesse muito sobre o hábitat, a biologia reprodutiva e a alimentação do guará vermelho em Santos-Cubatão. O trabalho segue até hoje, com um novo patrocinador e uma acumulação impressionante de informação sobre as aves. Um produto desse esforço é o livro Guará: Ambiente, Flora e Fauna dos Manguezais de Santos-Cubatão, de Olmos e Silva e Silva, publicado em 2003 com o apoio da Fosfértil, empresa com forte presença no pólo industrial de Cubatão.

Essa pesquisa trouxe alguns resultados surpreendentes com relação à adaptação dos guarás e outras aves ao ambiente de Santos-Cubatão. Em primeiro lugar, as mudanças introduzidas pelo homem naquele ambiente também tiveram conseqüências positivas para essas aves. Como vimos, os guarás se alimentam de caranguejos dos bancos de lodo dos manguezais. A extensão desses bancos de lodo, no entanto, é produto da ação humana, combinando os sedimentos que descem da Serra do Mar com os depósitos de materiais de dragagem e de abertura de canais artificiais, criando um ambiente extremamente propício para a alimentação das aves. A propósito: a cor vermelha vem de pigmentos existentes na casca dos caranguejos que são a base da dieta dos guarás.

E de onde vieram os guarás? Ninguém sabe muito bem, mas é possível que sua presença atual na região seja fruto de uma reintrodução com ajuda humana. Olmos e Silva e Silva relatam ter ouvido de um ex-administrador do Orquidário Municipal de Santos que nos anos 50 e 60 aquela instituição recebia frequentemente aves de outras regiões do país, e que algumas delas fugiam ou eram libertadas. Assim, os guarás pesquisados por eles talvez não sejam descendentes daqueles mencionados nos relatos de Hans Staden e do Padre Anchieta, e sim membros da linhagem maranhense.

A relação dos guarás vermelhos com o homem não é, portanto, puramente adversária. Mas isso não quer dizer que a sua sobrevivência esteja assegurada. A sua preferência por hábitats tocados pela mão humana é fator de vulnerabilidade, pois essas áreas são oficialmente classificadas como degradadas e, portanto, alimentam a cobiça dos operadores do porto, constantemente buscando novas áreas para expansão dos cais. Um dos bancos de lodo preferidos dos guarás e das outras aves de Santos-Cubatão fica nas margens do Largo do Caneu, uma das áreas mais movimentadas do complexo portuário com constante movimento de embarcações.

Enquanto observamos as aves que se alimentam no banco de lodo do Largo do Caneu, vemos uma enorme draga trabalhando ao longo do canal que leva ao terminal marítimo da Cosipa, no fundo do estuário. Seu registro é do Rio de Janeiro, mas a tripulação parece ser chinesa. Robson nota que essa draga moderna recolhe o material do fundo no seu próprio casco e dispõe dele de maneira controlada, sob a supervisão dos órgãos de controle do meio ambiente. Já é um progresso com relação a práticas passadas, mas ainda representa risco de agitação dos metais pesados, PCBs (policloreto de bifenila) e outros produtos tóxicos que estão em repouso lá no fundo.

A draga serve de símbolo da dificuldade de se preservar o ambiente em uma região de grande importância econômica. O porto precisa crescer, e é bem mais fácil e barato dirigir essa expansão para áreas virgens do que recuperar áreas já degradadas. Mais difícil ainda é lidar com a pressão populacional que resulta no crescimento constante das favelas como a Vila dos Pescadores, que não apenas ocupam áreas de manguezais como também jogam lixo e esgoto nas águas. E como se isso não bastasse, há ainda a atividade de caçadores, matando aves e animais – como os jacarés, aparentemente muito prezados nas ceias de Natal de certos moradores das favelas da região.

Para garantir a sobrevivência dos guarás de Santos-Cubatão é preciso continuar o trabalho de conscientização iniciado pelos dois biólogos, e que já tem hoje alguns aliados na região. A Náutica da Ilha, por exemplo, criou um programa de educação ambiental, levando alunos da rede pública e privada para conhecer o manguezal e seus moradores. A própria prefeitura de Cubatão adotou o Guará como símbolo do renascimento da cidade, e procura investir no turismo ambiental como alternativa de geração de renda e empregos. O futuro das aves do estuário não está garantido, mas Fábio Olmos e Robson Silva e Silva têm se mostrado seus incansáveis defensores.

* Esta reportagem faz parte de um livro sobre os 15 anos da Fundação O Boticário de Proteção à Natureza.

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