No meio da Amazônia existem regiões conhecidas como “várzeas”, onde na estação das cheias as águas dos rios podem subir até mais de 10 metros por alguns meses. Nesses locais, para sobreviver os animais precisam nadar, voar ou subir em árvores.
Nas várzeas as casas ribeirinhas são tipicamente palafitas ou flutuantes, adaptadas a essa sazonalidade. As populações tradicionais vivem em meio à biodiversidade amazônica, com sumaúmas, ciganas, peixes-boi, botos-cor-de-rosa e onças-pintadas. Mas esta nem sempre é uma relação harmoniosa.
Há pouco mais de 20 anos, “Seu Manduca” saiu para pescar na região da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, no interior do Amazonas. Era período de cheia e estava remando sua canoa em meio à floresta alagada, encostando em uma árvore. De olho nas águas, ouviu um barulho vindo de cima e, ao se virar, deparou-se com uma onça-pintada se lançando sobre ele. Seu Manduca conseguiu segurar uma das fortes patas dianteiras da onça que tentava lhe agarrar, mas a outra pata o envolveu e os dois se atracaram e caíram da canoa. Imersos nas águas, a onça o soltou e se afastou, deixando seu rosto e seu braço atingidos no ataque. Mesmo ferido, Seu Manduca remou por mais de três horas até sua casa, na Vila Alencar.
Nas várzeas de Mamirauá, a onça-pintada apresenta um comportamento único: as onças nadam e vivem sobre as árvores das florestas alagadas por três a quatro meses do ano, durante a cheia amazônica. Neste período, as onças dessa região, que costumam pesar de 40 a 60 kg, vivem grande parte de suas rotinas no alto de árvores com até 30 metros de altura: dormindo, se alimentando, acasalando e criando seus filhotes.
Em função desse comportamento, onças capturadas e monitoradas por pesquisadores (através de um colar com sinal de rádio e GPS), podem ser avistadas em uma iniciativa de turismo de base comunitária dentro da Reserva em seu hábitat. Dessa forma, a própria oportunidade de avistar uma onça-pintada influencia na relação entre esses animais e moradores locais.
Na época em que ocorreu o ataque a Seu Manduca, seu filho mais novo era criança e até hoje se lembra de ver o pai chegando em casa ferido. Assim como outros de seus irmãos, hoje ele trabalha como guia de turismo e já participou do avistamento de onças-pintadas. A oportunidade de observar esses animais de perto mudou sua percepção: a onça se transformou de um animal perigoso para admirável, digno de ser fotografado.
Esta mudança na forma de encarar a onça-pintada no turismo acaba gerando o chamado “efeito guarda-chuva” sobre diversas outras espécies, ressaltando a importância da proteção de seus ambientes naturais. Tendo em vista que novas iniciativas de turismo de base comunitária estão sendo implementadas em comunidades locais na região, há a tendência deste efeito positivo do turismo se disseminar.
Seu Manduca vive até hoje na comunidade Vila Alencar. O caso felizmente resultou apenas em algumas cicatrizes e uma história para contar. Há alguns anos teve a oportunidade de participar de uma captura de onça para colocação de um colar de monitoramento para pesquisa. Ao se aproximar da onça, já anestesiada, Seu Manduca deu um leve puxão na orelha dela e – mesmo não sendo o mesmo animal – com bom humor lhe deu uma bronca por tê-lo atacado anos antes.
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