Águas escuras, aparência mórbida, mau cheiro. O rio Tietê, hoje um desagradável vizinho para os paulistanos, já foi o grande aliado da maior metrópole do país. Foi ele quem propiciou as conquistas territoriais e a expansão econômica da região, e por tabela de todo o país. Por sua importância histórica e serviços prestados, em 2002 o governo estadual resolveu homenagear seu principal rio, transformando o 22 de setembro em Dia do Tietê. Neste ano, um encontro realizado no Memorial da América Latina marcou a comemoração.
Não se trata de uma reverência póstuma. Pelo contrário: um relatório divulgado no dia 24 de setembro comprova que o rio está ficando mais limpo. Ou menos sujo. O fato é que ele respira melhor do que há 14 anos, graças ao esforço de milhares de pessoas que destinam parte de seu tempo, na conturbada rotina de escola, trabalho, engarrafamento e lazer, à revitalização do Tietê.
O ano de 1991 foi um marco dessa mobilização da sociedade civil, com a criação do Núcleo União Pró-Tietê, da SOS Mata Atlântica. A origem do movimento é curiosa. Foi um programa da Rádio Eldorado, produzido em parceria com a BBC de Londres, que mostrou as impressões de dois repórteres navegando simultaneamente no Tâmisa, que cruza a capital inglesa, e no Tietê. O rio londrino vinha passando por um admirável processo de recuperação, depois de ter sido um dos mais poluídos da Europa. A repercussão do programa comoveu muitos paulistanos, que resolveram arregaçar as mangas e dar início a ações organizadas de revitalização de seu manancial.
Cerca de 1,2 milhão de assinaturas foram coletadas e apresentadas aos governos estadual e federal durante a Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento e Meio Ambiente – a Rio-92. A mobilização popular levou o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) a lançar o Projeto Tietê, uma tentativa de reduzir o lançamento de poluentes nos rios e córregos e melhorar a qualidade das águas.
A missão do Núcleo União Pró-Tietê, desde então, é fiscalizar o andamento das ações governamentais, monitorar os 149 corpos d’água da bacia do Tietê e desenvolver noções de educação ambiental com os participantes do projeto. “Desde 1993, alguns grupos já realizavam o monitoramento em diversos trechos. Mas em 2002, efetivamente, a SOS Mata Atlântica foi contratada pela Sabesp, a pedido do BID, para desenvolver este trabalho de acompanhamento e conscientização”, explica a jornalista Maria Luisa Ribeiro, coordenadora do Núcleo.
A ong apresentou no último sábado um relatório sobre a qualidade das águas coletadas mensalmente em 300 pontos do rio entre 2002 e 2005, levando em conta critérios como pH da água, temperatura, quantidade de coliformes fecais, fosfato, nitrato e oxigênio dissolvidos. Em 23 pontos, a situação foi considerada “péssima”, 168 estão na categoria “ruim” e 109 passaram no teste por terem uma água “aceitável”.
È uma evolução considerável. Em 1993, quando começaram as coletas, todos os 300 pontos variavam entre ruim e péssimo. “No início dos anos 90, os 34 municípios monitorados recebiam resíduos de mais de mil indústrias, além da carga poluidora restante. Quando a primeira fase do Projeto Tietê foi concluída, em meados de 2001, o número de indústrias que poluíam as águas tinha caído para 200. Até o final da terceira etapa, que deve ser iniciada no próximo ano, a meta é que os resíduos industriais no Tietê cheguem a zero”, diz Maria Luisa, lembrando que 40% da carga total de poluição do rio já foi eliminada.
A metodologia para a análise da qualidade das águas foi desenvolvida em 1991 pelo professor Samuel Murgel Branco, naturalista e biólogo, autor de mais de 30 publicações sobre meio ambiente. A lista com os resultados é divulgada no site da Rede das Águas, uma articulação maior de entidades que discute recursos hídricos e políticas públicas.
Hoje, mais de 7.500 pessoas estão engajadas na União Pró-Tietê. “Os grupos são muito diversificados. Temos universitários, lideranças de bairros mais carentes, alunos do primeiro e segundo graus e até índios”, conta Maria Luisa. De acordo com um levantamento realizado pelo Núcleo, 45% dos envolvidos no projeto vêm de escolas, 40% de ONGs, 8% de cooperativas de catadores de materiais recicláveis, grupos de escoteiros, empresas e igrejas, e 11% de outros locais.
O agrônomo Fabrizio Violini, coordenador de Educação Ambiental da ong, reforça que o trabalho desenvolvido pelos grupos vai muito além do monitoramento das águas do Tietê. “Isso é apenas uma porta de entrada para um amplo processo de mudança de hábitos”. As atividades vão desde o reflorestamento de áreas que margeiam rios e córregos a palestras de conscientização ministradas pelos próprios alunos que participam do projeto. Os resultados são surpreendentes. “Um dos grupos escolares criou uma ONG que promove oficinas de comunicação. Assim, o monitoramento do Tietê se transforma em programa de rádio e registros na internet”, lembra.
Há um ano, a ecóloga Elaine Silva participa do projeto e acumula experiências interessantes com os adolescentes e crianças da região norte de São Paulo. Coordenadora do programa Jovens Monitorando a Natureza Urbana, da ONG Planeta Verde, ela acredita que respeito ao meio ambiente só se aprende na prática. “A inserção de jovens em projetos como este muda as relações que eles têm com a natureza. Alguns que conheço, por exemplo, eram crianças quando seus pais invadiram a Serra da Cantareira para morar. Agora, que enxergam o ambiente de maneira diferente, eles estão reflorestando a região”, relata Elaine, esclarecendo que o loteamento já foi regularizado pela prefeitura.
Os avanços ainda não são visíveis a olho nu na região metropolitana de São Paulo, onde o Tietê já perdeu o ecossistema de várzea, grande parte da capacidade de autodepuração e a oxigenação. “Mas daqui a 20 anos, poderemos até comparar o Tietê ao Tâmisa. Acho que terá um visual mais bonito, um cheiro mais agradável”, diz Maria Luisa Ribeiro.
Se por um lado “nunca mais será possível nadar nem beber sua água”, pelo menos os peixes estão voltando. Eles já são vistos com freqüência no rio Tietê, a cerca de 90 km de São Paulo.
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