Em se tratando da mineração de sal-gema, os verbos agora são “conscientizar e integrar” as comunidades tradicionais. É o que afirma o Decreto nº 5546-R, publicado pelo governador do Espírito Santo, Renato Casagrande (PSB), para instituir o “Grupo de Trabalho Interinstitucional para o Desenvolvimento Sustentável do Polo de Sal-gema em Conceição da Barra”, norte do Estado, próximo à divisa com a Bahia.
O GT tem duas finalidades, estabelecidas no seu artigo 2º: “acompanhar os processos administrativo-minerários destinados à exploração mineral e suas decorrências nos órgãos pertinentes, inclusive o de licença ambiental” e “propor ações administrativas destinadas à conscientização do processo de exploração minerária e integração com comunidades tradicionais”.
A lista de componentes do GT, no entanto, deixa explícita as pretensões nada dialógicas da nova ferramenta criada pelo Executivo para avançar com a exploração do sal-gema no norte do Estado. O direito a voto é garantido expressamente às empresas que venceram o leilão da Agência Nacional de Mineração (ANM) em setembro de 2021, conforme consta no parágrafo primeiro desse mesmo artigo: “É admitida a participação de um representante de cada empresa responsável pelas 11 (onze) áreas de exploração do Sal-gema no Grupo de Trabalho, com direito a voto”.
Os outros votos são garantidos às dez instituições públicas que compõem o Grupo – a saber: três do Executivo estadual; duas da Prefeitura Municipal; a ANM; o Conselho Regional de Química; a Ufes e o Ifes; e a Federação das Indústrias do Espírito Santo (Findes).
Em contrapartida, não há nenhuma cadeira e nenhuma participação com voto destinada às entidades representativas dos povos tradicionais afetados pelos projetos de mineração do sal-gema – comunidades quilombolas, pesqueiras, marisqueiras e camponesas – ou a ONGs socioambientais com atuação na região.
Implementar a atividade na região é uma das principais bandeiras do atual gestor da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Seama), Felipe Rigoni (União Brasil), desde seus tempos como deputado federal. No primeiro ano de seu mandato, em 2019, ele iniciou forte diligência junto à ANM para destravar o leilão de onze poligonais identificadas pela Petromisa, empresa de mineração ligada à Petrobras, hoje extinta. O relatório, publicado em 1991, indicava o enorme potencial econômico das jazidas, consideradas as maiores da América Latina, com reservas totais estimadas em 19,4 bilhões e profundidades entre 1,2 mil e 1,7 mil metros.
Dois mil e dezenove foi o ano em que a ANM, em conjunto com o Instituto de Meio Ambiente de Alagoas (IMA), interditou a atuação da Braskem na capital alagoana, devido ao agravamento do desastre que se alastrava já por cinco bairros, atingindo mais de 60 mil pessoas com o afundamento do solo, tremores e rachaduras em imóveis e ruas da cidade localizados na superfície das minas de exploração de sal-gema.
Desde a paralisação, a Braskem afirma que passou a trazer o sal-gema do Chile para alimentar suas fábricas de soda cáustica e PVC. Em julho passado, a mineradora e a Prefeitura de Maceió anunciaram um acordo de indenização da ordem de R$ 1,7 bilhão, que corre em paralelo às ações de indenização das famílias atingidas.
Para o agora secretário de meio ambiente Felipe Rigoni, o Espírito Santo não corre o risco de viver tragédia semelhante, visto que as minas capixabas são mais profundas, as técnicas de extração hoje são mais modernas e a Área de Proteção Ambiental (APA) de Conceição da Barra, criada em 1998 com 7,7 mil hectares, conseguiu impedir um adensamento populacional na região, o que tende a reduzir os impactos sociais da atividade.
Mas para quem vive na região cobiçada, o risco é inaceitável. Pelo menos é o que afirmam categoricamente as mais de 30 comunidades integrantes do Território Quilombola Tradicional do Sapê do Norte, localizado nos municípios de São Mateus e Conceição da Barra.
Com apoio do Ministério Público Federal (MPF), elas conseguiram que a ANM retirasse, da atual fase de pesquisa, as jazidas localizadas no território certificado das comunidades. “Desse lado do rio São Mateus [margem norte] não pode explorar”, afirma Domingos Firmiano dos Santos, o Chapoca, liderança quilombola estadual e nacional, membro da Coordenação Quilombola Estadual Zacimba Gaba, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Rurais Quilombolas (Conaq) e da Comissão Quilombola do Sapê do Norte.
Sobre a criação do GT, o entendimento é de que ele não muda a posição de manter a proibição de perfuração nessas jazidas localizadas no território. “A gente não quer exploração de sal-gema aqui”, afirma. Só lamenta que até agora a posição não pode ser comunicada diretamente ao secretário, já que nenhum representante da Secretaria foi até o Sapê do Norte para dialogar e propor a tal “sociedade” no negócio do sal-gema que Felipe Rigoni anunciou em abril neste ((o))eco. “Não veio ninguém da Seama aqui falar com a gente até hoje”.
As comunidades também estão na fase final de elaboração de seus protocolos de consulta, nos moldes da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O objetivo é facilitar o cumprimento da tratativa, que vigora no Brasil desde 2007, mas tem sido sistematicamente ignorada pelos gestores públicos e empresas, que continuam a implantar empreendimentos de alto impacto socioambiental em territórios tradicionais, sem qualquer diálogo com as comunidades.
“Não vamos mais permitir que nenhuma empresa se instale no nosso território sem antes fazer a consulta livre, prévia e informada do nosso povo”, afirma Chapoca.
A reportagem de ((o))eco entrou em contato com a Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Seama) para saber como eles se posicionam diante das críticas, mas até o fechamento desta matéria não teve resposta.
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