Quando se fala na conservação da biodiversidade brasileira, as árvores e as florestas são as primeiras imagens que vêm à mente do cidadão. Mas há toda uma riqueza presente em ecossistemas não florestais representados por campos e savanas que, apesar da menor visibilidade em relação às florestas, ocupam cerca de 27% do território brasileiro e são de valor e importância inestimáveis, merecendo o reconhecimento e a proteção da sociedade.
As formações campestres ocupam áreas significativas em diversos biomas brasileiros. Além do Pampa, onde são mais conhecidos, os campos são encontrados na Mata Atlântica, Pantanal, Cerrado e até na Amazônia. Os campos vêm sendo descaracterizados pelo avanço da fronteira agrícola, sendo convertidos em lavouras em detrimento da sua utilização mais tradicional, para produção pecuária, atividade que é compatível com a manutenção das características campestres naturais.
Nos últimos anos, os poderes Executivo e Legislativo de alguns estados brasileiros têm cedido a pressões de setores da economia para a flexibilização de normas ambientais em prejuízo à conservação dos campos nativos. Como exemplo, Rio Grande do Sul e Santa Catarina instituíram legislações que reduziram a proteção dos campos do Pampa e da Mata Atlântica, respectivamente, retirando a proteção legal conferida pela legislação federal, especialmente a Lei nº 12.651/2012, que trata da proteção à vegetação nativa, e a Lei da Mata Atlântica (Lei nº 11.428/2006).
No âmbito federal, tramita na Câmara dos Deputados um Projeto de Lei (PL nº 364/2019) de autoria do deputado Alceu Moreira (MDB/RS), um dos líderes da bancada ruralista no Congresso, que dispõe, conforme consta na ementa, “sobre a utilização e proteção da vegetação nativa dos Campos de Altitude associados ou abrangidos pelo bioma Mata Atlântica”, bioma mais devastado do país. Apesar do enunciado aparentemente simpático, este PL propõe simplesmente a exclusão dos campos de altitude como formação natural do bioma Mata Atlântica, retirando a proteção legal dada pela Lei da Mata Atlântica. O PL busca também descaracterizar os campos nativos como remanescentes de vegetação nativa, possibilitando sua supressão para atividades agrossilvipastoris.
A proposição desse PL surge, na verdade, como uma reação de determinados setores do agronegócio às ações de fiscalização da supressão ilegal de campos de altitude conduzidas pelo IBAMA nos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina e se baseia em uma abstração reducionista defendida insistentemente por uma parte dos produtores rurais dos biomas Pampa e Mata Atlântica: a imprudente presunção de que os ecossistemas campestres nativos tradicionalmente utilizados pela atividade pecuária seriam, invariavelmente, áreas rurais consolidadas. O PL 364/2019 foi prontamente percebido por ruralistas de outras regiões do país como uma oportunidade para ampliar o afrouxamento das normas protetivas, instigando a submissão de outras propostas temerárias.
Coube a outro deputado gaúcho, Lucas Redecker (PSDB-RS), também integrante da Frente Parlamentar da Agropecuária e relator do PL 364/2019 na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, a apresentação de uma subemenda substitutiva requerendo a alteração do Art. 3° da Lei federal nº 12.651, propondo que “Nos imóveis rurais com formações de vegetação nativa predominantemente não florestais, tais como os campos gerais, os campos de altitude e os campos nativos, para os fins do inciso IV do art. 3º, é considerada ocupação antrópica a atividade agrossilvipastoril preexistentes a 22 de julho de 2008 ainda que não tenha implicado a conversão da vegetação nativa, caracterizando-se tais locais, para todos os efeitos desta Lei, como área rural consolidada”. Assim, esse substitutivo propõe estender o conceito malicioso de área rural consolidada às formações campestres presentes também em outros biomas brasileiros, fragilizando ainda mais a proteção dos campos nativos do país ao propor a isenção de autorização legal para sua supressão para uso alternativo do solo, além de criar regras confusas que inviabilizarão o estabelecimento da Reserva Legal e das Áreas de Preservação Permanente em campos nativos sob uso pastoril. Na prática, caso aprovada, a subemenda substitutiva implicará na dispensa da Reserva Legal e da autorização para supressão da vegetação campestre, ou outras não florestais, em áreas consideradas “consolidadas” em todo o território brasileiro.
Diferentemente dos impactos que ocorrem sobre ecossistemas florestais, a atividade pecuária sobre campos nativos mantém a flora e a fauna nativas, sendo, inclusive, um fator de distúrbio fundamental para a manutenção da própria fisionomia e diversidade florística dos campos. Como exemplo disso, pesquisa recente identificou que, no Pampa do Rio Grande do Sul, que cobre somente 2% da área do Brasil, existem 12.503 espécies (animais, plantas, fungos e bactérias), o equivalente a cerca de 9% da biodiversidade brasileira. A compatibilidade entre campos nativos e pecuária não ocorre por acaso e está comprovada por farta literatura científica. Esta afinidade é explicada pela história evolutiva dos campos, onde a vegetação herbácea evoluiu conjuntamente com os distúrbios causados pela herbivoria dos grandes animais pastejadores já extintos (megafauna) e, mais recentemente, pelo gado bovino e equino introduzido pelos europeus, além do fogo.
Mais do que a riquíssima biodiversidade, em boa parte endêmica (exclusiva do bioma), os campos nativos provêm diversos serviços ecossistêmicos. São responsáveis pela manutenção de aquíferos e cursos d’água, “produzindo” água para milhões de pessoas de diversas cidades médias e grandes, especialmente do Sul do país. Os campos armazenam e sequestram carbono da atmosfera, disponibilizando biomassa para a atividade pecuária. Na agricultura, são fundamentais na manutenção de polinizadores de plantas silvestres e cultivadas, bem como de predadores de pragas.
O entendimento de que os campos nativos historicamente utilizados pela pecuária extensiva constituem remanescentes de vegetação nativa é adotado há muito tempo por diversas instituições governamentais e de pesquisa, a exemplo do IBGE, Ministério do Meio Ambiente e Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, sendo, ainda, endossado pela Rede Campos Sulinos, que reúne mais de 30 grupos de pesquisa que estudam os campos do Sul do Brasil (RS, SC e PR). O que o PL 364/2019 está propondo, na prática, é apagar esse tipo de vegetação da Lei de Proteção da Vegetação Nativa. Entretanto, não há qualquer base científica ou justificativa de ordem técnica que fundamente a proposta de retirada dos campos de altitude da proteção legal garantida às formações vegetais que compõem o bioma Mata Atlântica e, tampouco, o enquadramento dos campos nativos do Brasil como áreas rurais consolidadas na legislação brasileira. No momento em que o Brasil tem assumido compromissos internacionais de combate às mudanças climáticas, grande parte do seu sucesso dependerá não somente do controle do desmatamento na Amazônia, mas também da redução das supressões das formações campestres e de savanas. Ressalta-se que, em recente levantamento, o MapBiomas demonstrou que a Mata Atlântica e o Pampa apresentam os maiores estoques médios de carbono orgânico do solo por hectare, em comparação com outros biomas.
Diante desse cenário, a Coalizão pelo Pampa, coletivo formado por mais de 20 entidades entre associações de servidores da área ambiental, universidades, grupos de pesquisa e ONGs, com sólida atuação socioambiental e comprometidas com a conservação e a sustentabilidade do Bioma Pampa, vem a público denunciar o profundo retrocesso e o risco de graves prejuízos ambientais, culturais, sociais e econômicos representados pelo PL 364/2019 e suas alterações. Por fim, alertamos a sociedade brasileira quanto à necessidade de mobilização para que esse projeto, concebido para atender aos interesses de poucos, mas lesivo ao patrimônio do país e aos interesses da coletividade, seja reprovado no Congresso Nacional.
Referências
Overbeck et al. Placing Brazil’s grasslands and savannas on the map of science and conservation. Perspectives in Plant Ecology, Evolution and Systematics, 125687. 2022.
Andrade et al. 12,500+ and counting: biodiversity of the Brazilian Pampa. Frontiers of Biogeography. 2023.
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Muito importante conservar os campos de altitude, campos nativos, sulinos. No entanto, os pesquisadores e ou jornalistas NÃO devem generalizar que a “PeCUARIA sobre campos nativos mantém flora e fauna nativas” em todos os tipos de campos, pois muitos campos montanos e altomontanos não resistem a tamanho impacto, perdendo sua diversidade e estrutura nativa, horizontes orgânicos de solos e suas funcionalidades ambientais. A literatura científica também deve ser interpretada melhor nesse sentido de não generalizar.
Precisamos que cada Bioma tenha as suas APPs e Reservas Legais preservaras, isto nos garantiria o previsto por lei a biodiversidade. Não adianta jogarmos tudo pra um único Bioma, mas o restante precisamos usar para produzir e vivermos! Infelizmente todos olham pra Amazônia, e ninguém quer preservar o restante. Deus nos abençoe!
Queremos comida e não capim de altitude…
É bizarro e surreal, onde tem florestas derrubam para fazer campos para o gado pastar. E onde tem campos naturais querem destrui-los para implantar frutíferas ou soja, milho, trigo etc. O ser humano parece o aprendiz de feiticeiro e está disposto a destruir tudo o que não entende em que possa colocar as mãos.
Excelente texto
Os projetos que propõem mudanças nas áreas são fundamentais para manter as atividades de pecuária sustentável na região dos Campos de cima da Serra do RS. Somos sequestradores de carbono e queremos segurança jurídica por mais 100 anos, como fomos até aqui.