O verão atrai para o litoral as raias-viola. Elas vão parir nos próximos meses, bem pertinho da praia, depois de um ano de gestação. É o momento em que chegam também os pescadores, que provocam verdadeira chacina no berçário. Esses peixes vivem entre São Paulo e a Argentina, mas é na costa gaúcha que se concentram. Tanto que somente no Rio Grande do Sul a pescaria de raias se mantém como uma tradição.
A raia-viola estará nas peixarias do Mercado Público de Porto Alegre até o final deste mês, como acontece todo ano. É um dos peixes mais baratos nas bancas, por volta de R$ 4 o quilo. Longe de ser uma carne nobre, geralmente é usada no preparo de bolinhos. Comercializada para vários estados brasileiros, por empresas regulares e também por clandestinas, a espécie Rhinobatos horkelii está na lista oficial de animais ameaçados de extinção no Rio Grande do Sul.
”Os peixes são negligenciados na legislação brasileira de proteção à fauna. Não são considerados como fauna, mas como recursos pesqueiros. A raia-viola é uma das exceções. Há pouco mais de um ano está protegida por lei, pela Instrução Normativa 5 do Ministério do Meio Ambiente. A pesca é crime ambiental. Mas o que fazer com os pescadores que tradicionalmente pescam? Prendê-los?”, pergunta o oceanógrafo Sandro Klippel, da ONG gaúcha Igaré.
Entre 2001 e 2005, Klippel integrou a equipe do projeto “Salvar Seláquios do Sul do Brasil”, da Universidade Federal de Rio Grande (FURG). Seláquios é o nome da subclasse de peixes formada por tubarões e raias, que têm em comum o fato de serem predadores e cartilaginosos. A pesquisa foi coordenada por Klippel e pelo biólogo Carolus Maria Vooren em cerca de 800 quilômetros da costa entre o Cabo de Santa Marta, em Santa Catarina, e o Chuí, no Rio Grande do Sul. Os resultados serão publicados até o final do ano em um livro editado pela universidade, que terá o título “Ações para a conservação de tubarões e raias da Plataforma Sul” e distribuição gratuita para instituições.
Segundo o oceanógrafo, as raias – ou arraias – vivem o resto do ano a cerca de 180 quilômetros da praia e em profundidades de até 200 metros. Ou seja, bastante protegidas da predação humana. Mas quando chega o verão, começam a se aproximar do litoral, onde permanecem um mês, grávidas. É aí que viram pescaria farta e fácil.
Os partos, de em média sete filhotes, geralmente ocorrem em janeiro e fevereiro. O desenvolvimento dos embriões se completa nas águas costeiras, em profundidades menores que 20 metros. Após nova fecundação, em março, as que sobram da matança voltam a migrar para águas mais frias e profundas, onde permanecem até o próximo verão.
Criticamente em perigo
Existem vários tipos de pescaria da raia-viola. O método “rede de arrastão” é o mais usado no litoral sul do estado. Uma rede de malha fina com 800 metros de largura é jogada a cerca de 300 metros da praia, cercando o cardume. Nas praias ao norte, é preferida a malha mais larga, que prende o animal quando ele tenta atravessá-la. Muitos pescadores costumam abrir os peixes para a retirada das vísceras e dos filhotes, descartando-os como lixo.
”Nos últimos 20 a 30 anos, o número de raias no estado diminuiu de 85% a 90%, e embora a espécie apareça na categoria ‘vulnerável, com alto risco de extinção’, no Livro Vermelho da Fauna Ameaçada de Extinção no Rio Grande do Sul, nós sabemos que já chegou à categoria ‘criticamente em perigo’, que significa risco extremo de extinção”, ressalta Sandro Klippel.
O livro informa que a população da raia-viola está em declínio. O desembarque da espécie no porto de Rio Grande aumentou de 100 toneladas, em 1960, para 1.300 toneladas em 1980. A obra acentua a ineficiência da fiscalização, embora existam “inúmeras portarias emitidas pelos órgãos federais responsáveis pelo controle de pesca, que regulamentam aspectos como o tamanho mínimo permitido, época de defeso, artes de pesca consideradas predatórias, limitação do esforço de pesca, entre outros”.
Um dos indícios da redução da população é o crescente esforço dos pescadores, ano após ano, para capturar o mesmo número de animais. Outros foram colhidos nas expedições científicas realizadas desde 2001, a última recém-chegada ao porto de Rio Grande.
Para Sandro Klippel, uma das formas de enfrentar o problema é a criação de áreas de proteção integral no mar, como a que existe em Abrolhos. Outra é a educação dos consumidores de peixes, para que deixem de comprar a espécie. “Os peixes não são belos e não têm o apelo das onças e micos-leões dourados, por isso não temos muitos parceiros na luta pela proteção. A opinião pública não liga muito para as espécies marinhas, com exceções de golfinhos e baleias”, lamenta. Ele lembra que os 8 milhões de km² da área terrestre nacional têm 7% protegidos por unidades de conservação, enquanto os 3 milhões de km² do Atlântico brasileiro só têm resguardados 0,39%.
A chefe do escritório regional do Ibama em Rio Grande, Maria Odete Pereira, diz que a fiscalização não é suficiente para evitar a chacina. “Temos autuado e apreendido pescado, mas infelizmente depois da pesca. O problema é que a Instrução Normativa 5 foi criada de cima para a baixo. Se tivesse sido criada em conjunto com os pescadores, seria mais fácil que eles entendessem que precisam desse recurso e por isso precisam preservá-lo. Eles não são marginais. O que fazem é minimizar a situação, que consideram de pouca importância”.
Maria Odete diz que é comum encontrar em restaurantes peixes provenientes da atividade proibida. “A gente encontra raia-viola até mesmo em restaurantes ‘naturebas’ que têm proposta a favor da ecologia. A comunidade está totalmente desinformada sobre a proibição de pesca de certos peixes. A sociedade precisa ser responsabilizada, mas isso só se consegue com informação e com a construção de regras junto com os pescadores e armadores”, queixa-se.
* Cristina Ávila é jornalista freelancer em Porto Alegre e tem 25 anos de profissão.
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