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Publicado originalmente por Repórter Brasil
TRÊS MIL TONELADAS de ouro exportadas por Brasil, Peru, Colômbia, Equador e Venezuela entre os anos de 2013 e 2023 não possuem origem conhecida. Isso representa a metade de todas as exportações declaradas pelos países (5,9 mil toneladas) e é um sinal de que a mineração ilegal está aumentando seus volumes de exportação como nunca antes.
O levantamento inédito, com base em dados públicos dos cinco países, é parte da colaboração jornalística “Opacidade Dourada: mecanismos do tráfico de ouro latino-americano”, liderado pelo veículo jornalístico peruano Convoca e integrado pela Repórter Brasil e por outros meios latinoamericanos de imprensa.
A maior parte do desequilíbrio entre produção e exportação de ouro nesses cinco países (99%) ocorre no Peru, onde as vendas ao exterior na década somaram 4,4 mil toneladas, embora o país tenha registrado a produção de apenas 1,3 mil toneladas.
A Colômbia vem em seguida, tendo exportado 59 toneladas de ouro a mais do que sua produção declarada de 559,81 toneladas no período, enquanto o Equador registra um excesso de 12 toneladas exportadas em relação à produção (69 toneladas) entre 2017 a 2023, anos que possuem dados confiáveis para a análise.
No Brasil e na Venezuela há anos em que há mais exportações do que produção, mas os números divulgados por ambos países possuem lacunas que impedem uma análise precisa. No Brasil, foi possível analisar o período entre 2015 e 2021, quando a produção excedeu as exportações por 34 toneladas. Na Venezuela, o balanço é de 52,6 toneladas a mais produzidas do que o total exportado entre 2013 e 2023. No entanto, em ambos países a mineração ilegal está ganhando terreno.
A investigação transnacional revela que além o apetite provocado pelo aumento do preço no mercado internacional, a falta de rastreabilidade tem sido o ponto cego das políticas públicas na região, e também pesa a incapacidade das autoridades de controlar a lavagem do metal precioso.
“Outro fator é a atitude geral dos governos em relação à mineração artesanal e de pequena escala. Vemos como as políticas podem influenciar a tolerância em relação a elas”, explica Luca Maiotti, analista de políticas da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). “Por trás disso, há fatores estruturais, como a baixa presença do governo em áreas remotas de mineração de ouro, altos níveis de informalidade econômica e aumento dos preços do ouro devido a choques geopolíticos e econômicos”, completa.
Favorecido pela falta de controle e de políticas adequadas de fiscalização, o ouro ilegal segue caminhos agora desvendados por esta investigação conjunta até ser exportado para outros continentes, ocultando sua origem ilegítima. Parte desse ouro acaba em joalherias de luxo na Europa, em destinos pouco auditados, como Dubai, Turquia e Índia, e nos depósitos de conhecidas fábricas de tecnologia nos Estados Unidos.
Brasil passa de lavador a fornecedor de ouro ilegal
Dados da plataforma Amazon Mining Watch revelam que o Brasil concentra a maior parte da degradação ambiental causada pela mineração em toda a Amazônia sul-americana. Ao todo, a área afetada na floresta tropical aumentou de 9,7 mil km² em 2018 para 13 mil km² em 2023. Mas, apenas no Brasil já ultrapassa 5,9 mil km², representando 45% do total.
Além do próprio mineral, extraído muitas vezes de forma ilegal, o Brasil sempre foi um conhecido lavador de ouro irregular proveniente de países vizinhos. Segundo apuraram os jornalistas do Consejo de Redacción, garimpeiros colombianos costumam contrabandear seus carregamentos ilegais pelo rio Puruê, na fronteira com o Brasil, onde a presença de guerrilheiros colombianos gera alarme e até mesmo confrontos com a Marinha. Nessas zonas de conflito, o mineral é usado como moeda para comprar outros produtos contrabandeados.
Já o ouro venezuelano ilegal consolidou seus pontos de venda no Brasil, na Colômbia e na República Dominicana, de acordo com as investigações de Armando.Info para esta colaboração jornalística.
Porém, a queda de 70% nos volumes de ouro declarados por garimpos legais no Brasil – dado revelado pela investigação da Repórter Brasil no projeto – leva as autoridades a suspeitar que o país deixou de ser um ponto de lavagem de ouro para se tornar um fornecedor de ouro ilegal. “Se a regulamentação não for aprimorada, o novo cenário não levará a uma redução da mineração ilegal, mas apenas a uma maior clandestinidade”, aponta Rodrigo Oliveira, pesquisador e servidor do Ministério Público Federal (MPF) no Pará.
Investigações recentes da Polícia Federal apontam para uma aproximação entre facções criminosas e garimpos ilegais de ouro na Amazônia nos últimos anos. Especialistas apontam que o crime organizado tem se aproveitado das rotas aéreas e fluviais utilizadas para o tráfico de cocaína entre o Brasil e os países vizinhos para transportar também o ouro ilegal, como revela a série Narcogarimpos, publicada pela Repórter Brasil em 2023.
Peru: no epicentro da ilegalidade, processadoras evadem fiscalização
No Peru, onde a exportação de ouro excedeu em três vezes o volume da produção declarada, jornalistas do Convoca foram à campo e descobriram plantas de processamento aurífero que exportam mais do que declaram como produção às autoridades, evadindo os mecanismos de controle adequados.
Um exemplo é a usina de processamento Laytaruma – a quarta maior exportadora de ouro do Peru, com mais de 1,5 bilhão de dólares em exportações para países como Estados Unidos, Suíça, Emirados Árabes Unidos e Turquia. Essa unidade está registrada na categoria de mineração de pequeno porte, o que permite que a fiscalização seja feita por autoridades regionais, e não pelos supervisores do governo central. No entanto, os repórteres identificaram a chegada de carregamentos com cerca de 650 toneladas por dia à Laytaruma, um volume muito superior às 350 toneladas que são o limite de processamento de plantas de pequeno porte.
A investigação identificou ainda que os documentos exigidos dos transportadores de ouro podem ser obtidos com muita facilidade, o que cria condições para que o ouro ilegal seja misturado à carga legal. Os caminhões levam o minério para as usinas de beneficiamento, onde é convertido em barras para ser exportado para empresas internacionais de refino.
Presença do crime organizado é desafio adicional na Colômbia
Na Colômbia, os territórios explorados ilegalmente estão sendo disputados a sangue e fogo por grupos armados como o Exército de Libertação Nacional, o Clã do Golfo ou os dissidentes das FARC. Eles lucram e se financiam com ouro sujo. “A tensão entre os povos indígenas e a criminalidade está presente. É muito desesperador”, diz o pesquisador suíço Mark Pieth, ex-presidente do Instituto de Governança da Basileia e autor do livro “Gold Laundering” (Lavagem de Ouro).
Essas redes criminosas falsificam títulos de mineração, certificados de origem do mineral, registros de mineiros de subsistência e a quantidade de ouro extraída, explica Frédéric Massé, codiretor da Rede de Monitoramento do Crime Organizado na América Latina.
Um exemplo é o que aconteceu no noroeste da Colômbia, onde um único indivíduo comprou bancos de dados de beneficiários de programas sociais e registrou 5.000 deles como mineradores independentes. Dessa forma, legalizou mais de 7,5 toneladas de ouro ilegal para serem enviadas aos Estados Unidos, aos Emirados Árabes Unidos e à Índia.
A Colômbia também se tornou um importador de ouro ilegal, segundo a investigação de Consejo de Redacción para esta série de reportagens. Suas usinas de processamento recebem remessas ilegais e removem os vestígios do mercúrio usado na extração.
Boom de mineração artesanal no Equador acende alerta
No Equador, a mineração em pequena escala, mais propensa à ilegalidade, ganhou terreno nos últimos anos. Entre 2020 e 2023, suas exportações cresceram 238%. No mesmo período, 10 novas empresas foram criadas e exportaram US$ 530 milhões, conforme revelado nesta investigação.
A Organização dos Estados Americanos (OEA) afirma que “os comerciantes e exportadores, e “em particular as novas empresas”, são o “principal ponto de entrada do ouro ilícito nos mercados legais, ocultando a origem ilícita, muitas vezes antes de vendê-lo a refinadores estrangeiros”. O método de lavagem mais usado é a falsificação de notas fiscais, em que “falsos mineradores artesanais ou empresas de fachada são nomeados para justificar a origem do ouro extraído ilegalmente”.
O ecossistema de crime e violência também se expandiu no país, diz a Fundação Ecociencia. Um exemplo são grupos de indígenas Achuar, da Amazônia equatoriana, que estão minerando com maquinário caro, cujo transporte para essa área remota envolve um investimento pesado. “Alguém está colaborando com eles para realizar essa atividade. E dada a proximidade com a fronteira e esses contextos transfronteiriços, sugere-se que essa ajuda venha de movimentos criminosos de tráfico de drogas e outras atividades”, conclui Ecociencia.
O registro de concessões de mineração está fechado no Equador há seis anos devido aos protestos de grupos indígenas, que exigem uma lei de consulta prévia. Mas isso não impede a exploração dos solos amazônicos: na bacia do rio Punino 784 hectares de floresta foram perdidos somente em 2023, apesar de ser uma área sem acesso rodoviário. Grupos criminosos colombianos e equatorianos operam no local e devastaram a selva para extrair ouro.
Ouro legal responde por apenas 20% do mercado na Venezuela
Na Venezuela, a exportação de ouro é monopólio do Banco Central. Entretanto, estima-se que o “ouro legal” represente apenas 20% do total extraído a cada ano – fora dessa fatia, o tráfico de ouro envolve máfias espalhadas em muitos níveis da sociedade, incluindo funcionários públicos, militares e guerrilheiros colombianos, de acordo com o estudo da OCDE Gold flows from Venezuela.
“O regime de [Nicolás] Maduro não está desmantelando a mineração irregular”, diz Cristina Burelli, diretora da SOS Orinoco. Segundo esta ativista, os militares estão ganhando terreno no negócio ilícito. “É uma tendência em diferentes partes da Venezuela. Por um lado, as forças armadas removem os líderes que controlam as minas, mas os substituem por pessoas com igual mentalidade. E a mineração continua da mesma forma e está se expandindo”, conclui.
Com as sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos ao setor de ouro na Venezuela, o Banco Central teve que mudar seus destinos de exportação. Em 2021 e 2022, o Líbano foi o destino de mais de 90% das vendas do metal precioso da Venezuela – o que leva organizações não governamentais a alertarem para os riscos de lavagem de ouro, já que este é um país de trânsito, que compra e revende o mineral.
Legislação negligente é ponto em comum entre países
No Brasil, os garimpos vivem uma expansão alarmante, um fenômeno que segundo Fabiano Bringel, pesquisador da Universidade do Estado do Pará, é fruto de “uma remoção gradual dos obstáculos legais formais que, de certa forma, disciplinavam essa atividade”. Isso ocorreu especialmente após o impeachment da ex-presidente Dilma Roussef (2016) e com a chegada ao poder de Jair Bolsonaro (2019-2022).
Por exemplo, em 2022, foi aprovado um suposto “aprimoramento” do Código Brasileiro de Mineração que flexibiliza a concessão de licenças para garimpeiros sob o argumento de que a mineração artesanal e de pequena escala está sendo incentivada. Com isso, os pedidos de exploração mineral que não forem respondidos pela Agência Nacional de Mineração em 60 dias, serão automaticamente considerados como aceitos.
Bringel comenta que há um “contorcionismo regulatório recente” que acabou com conceitos que diferenciavam a mineração legal do garimpo ilegal. “Há uma série de atividades que, por sua natureza, sequer poderiam ser consideradas garimpo, e que, apesar disso, continuam se valendo de normas menos protetivas”, explica.
Assim, barcos com equipamentos sofisticados e maquinário pesado são vistos nessas zonas de exploração. Outra norma controversa define o limite de concessão de 50 hectares por garimpeiro individual, 1.000 hectares por cooperativa ou até 10.000 hectares se a cooperativa operar na Amazônia.
No Peru, o poder político também favoreceu diretamente a mineração informal. Desde 2002, existe uma Lei de Formalização que tem como objetivo fazer com que os mineiros artesanais e de pequena escala regularizem sua situação e se adaptem aos padrões ambientais. O prazo inicial para adesão era de um ano, mas ele foi prorrogado tantas vezes que, 22 anos depois, ainda é possível proceder a regularização. E recentemente surgiu uma nova iniciativa para prorrogar mais uma vez essa data limite até 2027.
Como no Brasil, esses registros formais de mineração também foram usados para como lavras fantasmas que registram a produção apesar de estarem inoperantes.
Na Colômbia, para resolver as lacunas na cadeia produtiva do ouro, o Congresso aprovou uma regulamentação que obriga os comerciantes de ouro e outros metais preciosos a aplicar critérios de due diligence. Embora tenha entrado em vigor em julho de 2022, quase dois anos depois a medida ainda não foi implementada porque o Ministério de Minas não emitiu diretrizes específicas para regulamentar o processo.
A indecisão política também afeta os processos de fiscalização no Equador, justamente quando a incidência desse crime ambiental está em seu auge. Há quatro anos, o então presidente Lenín Moreno decidiu fundir os três órgãos de supervisão dos setores de mineração e energia em uma única instituição – uma operação fracassada, em que muitos recursos foram perdidos, na visão do ex-ministro de Minas do país, Fernando Benalcázar, entrevistado para esta série.
Em maio deste ano, o atual presidente, Daniel Noboa, separou novamente as agências, e as competências da Agência de Regulação e Controle de Mineração foram reestabelecidas. Em 2019, o órgão tentou coletar amostras de laboratório para corroborar a pureza e o peso declarados pelos comerciantes, na tentativa de identificar negócios ilegais. Mas a medida provocou a ira do setor e acabou revertida, com os controles voltando a ser menos rigorosos.
Índia e Emirados Árabes são os novos ‘players’ do mercado global
Nos últimos anos houve uma reconfiguração do mercado internacional de ouro, com o surgimento de dois novos grandes compradores: a Índia e os Emirados Árabes Unidos (EUA), que estão entre os principais destinos do ouro exportado oficialmente do Peru, Equador, Brasil e Colômbia.
“Por meio da lavagem, o ouro sai do Peru e não vai diretamente para a refinaria nos Estados Unidos ou na Suíça. Ele vai para Dubai (EUA), vai para a China. E sabemos que nesses dois países eles não levam as regras tão a sério”, explica Livia Wagner, especialista da Iniciativa Global Contra o Crime Transnacional, uma organização internacional que promove estratégias para combater o crime organizado.
A Suíça continua sendo o principal demandante de ouro do mundo, com importações no valor de US$ 94 bilhões em 2022, de acordo com o Observatório de Complexidade Econômica do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Ao contrário do que se poderia imaginar, seus fornecedores de ouro mais importantes naquele ano não eram latino-americanos, mas os Estados Unidos (22,4%), os Emirados Árabes Unidos (8,7%), Burkina Faso (6,2%), África do Sul (5,9%) e Rússia (3,9%).
“Originalmente, a Suíça tinha 70% do ouro do mundo. Agora isso caiu para cerca de 50%, porque há outros refinadores, como Dubai. Mas muito pouco ouro fica na Suíça”, explica Mark Pieth. Na verdade, esse país europeu é, ao mesmo tempo, o maior exportador mundial do metal dourado (US$ 101 bilhões em 2022), pois o minério que ele refina – ou seja, purifica – é reexportado para o Oriente Médio, a Índia ou a China, onde há uma próspera indústria de joias.
Assim, o ouro lavado na América do Sul engrossa as carteiras dos principais atores globais, adorna as vitrines do setor de luxo e é guardado nos cofres dos bancos centrais das principais economias. A essa altura, as cicatrizes deixadas a milhares de quilômetros de distância nos ecossistemas e nas vidas humanas não são mais visíveis. De longe, é uma questão de perspectiva.
Esta reportagem foi produzida como parte da investigação transfronteiriça “Opacidade Dourada: mecanismos de tráfico do ouro latinoamericano”, liderado pelo veículo jornalístico peruano Convoca e integrado pela Repórter Brasil e por outros meios latinoamericanos de imprensa.
Expediente
Coordenação e edição geral: Milagros Salazar (Convoca)
Brasil: Hyury Potter e Naira Hofmeister (Repórter Brasil)
Equador: Plan V
Colômbia: Juan Carlos Granados e Óscar Parra (Rutas del Conflicto / Consejo de Redacción)
Peru: Paul Tuesta, Roberth Orihuela, Milagros Salazar, Gonzalo Torrico (Convoca)
Venezuela: Lisseth Boon (Armando.info), Lorena Meléndez, Ronna Rísquez (Alianza Rebelde Investiga, formada por Runrunes / El Pitazo / Tal Cual).
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