Reportagens

Deputado quer cortar parque no Maranhão para legalizar fazendas

Área é a maior fonte de água da capital São Luís e um grande abrigo de espécies ameaçadas, como o gato-do-mato-pintadinho

Aldem Bourscheit ·
9 de outubro de 2024

Um projeto de lei tramita desde julho para legalizar grandes fazendas numa unidade de conservação estadual, no sudeste do Maranhão. A área mantém valiosas fontes de água, cenários turísticos, vegetação e animais raros ou ameaçados de extinção.

Decretado em junho de 1980, o Parque do Mirador é a maior reserva de proteção integral daquele estado nordestino. Sua conservação evita que rios como Itapecuru e Alpercatas se tornem intermitentes. Eles são a maior fonte de água de um milhão de pessoas, na capital São Luís, além de outros municípios, terras indígenas, indústria e agropecuária.

“O parque foi criado justamente para proteger essas nascentes”, lembra Roberta de Figueiredo Lima, do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Questões Agrárias (Nera) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e doutora em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

A reserva é igualmente um manancial de vida selvagem. Campos, matas, veredas e buritizais pontuam o Cerrado preservado. Apenas 8,6% do bioma estão em unidades de conservação. Já uma nota da Secretaria do Meio Ambiente e Recursos Naturais do Maranhão (Sema/MA), de setembro, afirma que ela é crucial para o gato-do-mato-pintadinho (Leopardus tigrinus).

“A espécie está na lista brasileira de espécies ameaçadas de extinção. O Parque Estadual de Mirador é a unidade de conservação mais importante do mundo para essa espécie, pois é a única área capaz de sustentar, por si só, populações ecologicamente viáveis a longo prazo”, diz o documento.

O Leopardus tigrinus está na lista brasileira de espécies ameaçadas de extinção. Foto: Animalia/Tambako the Jaguar/Creative Commons.

Ocupação especulativa

Apesar do indiscutível valor socioambiental, análises do Nera/UFMA sobre dados do Sistema de Gestão Fundiária do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) revelam que, há quatro anos, o parque já tinha 61 imóveis registrados em seus limites.

Os lotes de 1.000 ha a 43 mil ha estão cadastrados para agropecuaristas, empresas de gerenciamento de capital e investimentos, bem como empresários paranaenses e catarinenses da soja e cana-de-açúcar, mostra o levantamento, publicado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT). 

“O parque foi criado sobre terras devolutas estaduais, cujas destinações prioritárias são reforma agrária e conservação, como pede a Constituição Federal”, lembra o advogado Vitor Hugo Moraes, Assessor de Políticas Públicas do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN). 

Uma ação discriminatória do Tribunal de Justiça do Maranhão, de junho, aponta que deveriam ser “canceladas as matrículas de imóveis que estejam encravadas dentro da referida área [do Parque do Mirador]”. Tais ações separam áreas públicas de privadas.

Contudo, as terras têm servido para compensar as Reservas Legais, algo permitido na legislação florestal de 2012. Mantendo essas áreas, o empresariado faria um balanço com o desmatado em outras regiões. Além disso, o parque também é alvo de especulação.

Em páginas de imobiliárias e Redes Sociais no Brasil todo há anúncios de compra e venda de terras dentro da unidade de conservação. Os valores podem passar dos R$ 3 milhões. Nos últimos dias, ((o)eco flagrou um lote de 1.742 ha à venda no local, por cerca de R$ 700 mil.

O comércio de terras dentro e no entorno da área protegida foi aquecido pelo asfaltamento da MA-372, rodovia entre Mirador e São Domingos do Azeitão. Ela facilitará o transporte de grãos e minérios até o Porto do Itaqui, em São Luís (MA), um dos terminais exportadores do Arco Norte

Imóveis (laranja) e cursos d’água (azul) dentro Parque Estadual do Mirador (verde). Em amarelo, os imóveis ao redor da área protegida. Imagem: Daniela Strasser (2024)/Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN)/Cedida pelo Observatório dos Conflitos Socioambientais do Matopiba
Venda online de 1.742 hectares no Parque Estadual do Mirador, a R$ 400 cada hectare. Imagem: Reprodução/Facebook

Além de grandes imóveis, há mais de duzentas famílias vivendo de agricultura, extrativismo, artesanato, criação de aves, porcos e bois na reserva. A grande maioria está no sul da área protegida. Elas habitariam a região desde 1890, antes da criação do parque.

“São importantes agentes para a governança do território, contribuindo com a proteção da área”, pondera a Sema/MA. 

Dobradinha legislativa

O tamanho e as atividades registradas para o agronegócio dentro do Parque do Mirador levantam dúvidas sobre sua legalidade, ressalta Patrícia Silva, secretária-executiva do Observatório dos Conflitos Socioambientais do Matopiba. “Não podem ser regularizadas em terras públicas, têm que ter o registro suspenso”, reforça. 

Todavia, a política busca meios para legalizá-las. Um projeto de lei do deputado estadual Eric Costa (PSD) muda o desenho da unidade de conservação para manter fazendas lá dentro, inclusive na chapada rica em nascentes dos rios Itapecuru e Alpercatas. 

Se passar na Assembleia Legislativa, o proposto encontrará uma lei estadual modificada ano passado que permite regularizar até 2,5 mil ha para quem comprovar “a morada permanente e cultura efetiva, pelo prazo de 5 anos”. Acima desse tamanho, só com autorização da Assembleia.

“Há um risco grande e concreto de que o Parque perca uma parcela muito importante de seu território”, avisa a advogada Patrícia Silva, mestre em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural pela Universidade de Brasília (UnB).

Em seu projeto, de número 280/2024, Eric Costa alega querer corrigir divergências entre o que seriam as “medidas reais” da unidade de conservação estadual e o estipulado desde o decreto que a criou nos anos 1980. A questão não é simples.

O deputado Eric Costa (PSD) na única audiência pública sobre o georreferenciamento do Parque Estadual do Mirador, em 17 de setembro, no município de Fernando Falcão (MA). Foto: Alema/Divulgação

Dança dos limites

O Parque do Mirador foi decretado com 700 mil ha, similares a ⅓ da área de Sergipe. Em 1989, foi ampliado para 766,8 mil ha. A Sema/MA reconhece 500,8 mil ha “para fins de gestão”. O plano de manejo do parque está em aprovação. Agora, Eric Costa quer “ampliar” a área para 502 mil ha.

“Essa extensão não apenas soluciona a disparidade entre os textos legais, mas também fortalece as ações de preservação ambiental, garantindo a proteção de áreas vitais para a biodiversidade regional”, disse o deputado em notícia da Assembleia Legislativa do Maranhão. 

Ele não atendeu nossos pedidos de entrevista até o fechamento da reportagem, pois, conforme seus assessores de gabinete, esteve com compromissos excessivos ligados às eleições municipais. Costa foi prefeito de Barra do Corda (MA), de 2013 a 2020.

Enquanto isso, Roberta Lima, do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Questões Agrárias da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), lembra que a região do parque é pressionada pela agropecuária desde os anos 1970. À época, uma sentença já tinha comprovado que as terras eram públicas.

“O estado deveria ter reconhecido e demarcado as posses legítimas, mas não não cumpriu a sentença e, em 1980, criou o Parque do Mirador”, explica a doutora em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

De lá para cá, o governo estadual ainda não demarcou a unidade de conservação e o judiciário maranhense enfileira pedidos para registros de terras em seus limites. 

“Isso tudo só favorece a grilagem de terras no Parque Estadual do Mirador”, destaca Vitor Hugo Moraes, Assessor de Políticas Públicas do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN).

Áreas recortadas (vermelho) e acrescentadas (laranja) no Parque do Mirador pelo projeto do deputado Eric Costa (PSD). Imagem: Manifestação Técnica/SBAP/Sara/Sema-MA/2024

Já a análise da Sema/MA lista que falta uma justificativa técnico-científica para mudar o traçado do parque, que isso complicará sua regularização fundiária, estimulará mais conflitos e que áreas importantes para a conservação serão desprotegidas.

“A Superintendência de Biodiversidade e Áreas Protegidas (SBAP) manifesta-se de forma desfavorável ao PL nº 280/2024, sugerindo-se a não aprovação da proposta pela Assembleia Legislativa do Maranhão”, ressalta o órgão ambiental estadual.

Pressões múltiplas

Considerado um “um marco na conservação ambiental no Maranhão” pela Sema/MA, o Parque do Mirador também é vítima da falta de fiscalização e de ilegalidades como desmate, queimadas e incêndios e caça de animais silvestres., mostrou ((o))eco. 

O cenário não é diferente do enfrentado por outras áreas preservadas no Matopiba, região entre os estados do Maranhão, Tocantins, Piaui e Bahia sob forte expansão da agropecuária industrializada.

“No Matopiba ocorreu 47% de todo o desmatamento do país em 2023 e 74% do desmatamento do Cerrado no mesmo período”, detalha uma nota técnica da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa), de junho.

Tamanha pressão acelerou inclusive a certificação de imóveis privados em áreas indígenas no Maranhão, no governo Jair Bolsonaro. A Terra Indígena Porquinhos teve 35 registros, mostra um balanço do Conselho Indigenista Missionário. 

No território, cerca de mil pessoas da etnia Canela Apanyekrá dependem do Cerrado preservado e de águas que fluem igualmente do Parque do Mirador. A possível tomada da unidade de conservação pelo agro ameaça o futuro dessas pessoas.

Terra Indígena Porquinhos, no Maranhão, ao norte do Parque do Mirador. Foto: Felipe Werneck/Ibama/Wikimedia Commons

“Crianças, adultos e idosos bebem e tomam banho nas águas dos rios. Ficamos preocupados que, quando chover, todos os venenos da soja e do eucalipto irão para a terra indígena”, reclama Paulo Thugran, liderança na Terra Indígena Porquinhos.

Segundo ele, a validação de fazendas onde hoje é o Parque Mirador será fonte de mais desmatamento, queimadas, poluição e doenças. “Deveríamos estar cuidando de nossas matas e rios, de tudo que a gente mais precisa para viver”, destaca Thugran.

Procurada pela reportagem, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) não se pronunciou sobre a situação da Terra Indígena Porquinhos.

  • Aldem Bourscheit

    Jornalista brasilo-luxemburguês cobrindo há mais de duas décadas temas como Conservação da Natureza, Crimes contra a Vida Sel...

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