Foi só eu dizer na televisão que o Parque Nacional do Itatiaia está abandonado, para se materializar na minha frente, meio esbaforido, o botânico Sérgio Sarahyba. Ele desceu a serra só para isso. Veio ao Rio de Janeiro como se falar mal do parque o deixasse pessoalmente ofendido. Queria explicar que, na prática, aquela unidade de conservação tem chefe, sim. Só não é o chefe que a superintendência do Ibama, depois de longas consultas políticas, aboletou no posto em 2004, quando o governo Lula ainda cevava, na febre das nomeações partidárias, a infecção generalizada que agora eclode em Brasília como crise do mensalão.
Oficialmente, Itatiaia passou esse ano e tanto nas mãos de um biólogo concursado que não se aclimatou no parque. Ia pouco à sede. Quando ia, entrava no gabinete pelos fundos. Circulava o mínimo possível no território sob sua jurisdição. E meses atrás pediu exoneração do posto, como se estivesse exausto de tanto não trabalhar. Parece mentira, mas tem gente que pelo visto consegue não gostar de Itatiaia. E gente que não gosta do parque mesmo depois de ganhá-lo numa disputa de consumiu meses de interminável politicagem.
Acabou sobrando para Sarahyba, que virou gerente interino dessa área deslumbrante, mas complicada. Itatiaia, o primeiro parque nacional do Brasil, espera há quase 70 anos o desfecho do quiproquó fundiário, que confinou a União num terço de seus 30 mil hectares. O resto tem dono, por motivos nem sempre bem explicados, pois se trata de terras inteiramente contidas nos 48 mil hectares das cinco fazendas que o governo federal comprou, em 1908, do comendador Henrique Irineu Evangelista de Souza, filho do Barão de Mauá. Desse latifúndio, menos de 10 mil hectares foram vendidos mais tarde a colonos de origem européia, supostamente aptos a introduzir o cultivo de frutas típicas de clima temperado no ar frio da Mantiqueira. O resto é grilagem.
Enfiado na fronteira entre três estados, no meio de um labirinto de administrações municipais, o parque é quase urbano. Está cercado pelas cidades que crescem sem parar no Vale do Paraíba, entre o Rio de Janeiro e São Paulo, as duas maiores concentrações urbanas do país. Abriga centenas de casas de campo, de um lado da serra, e confina com pastos, do outro. De seus picos dá para ver, em dias claros, as chaminés das fábricas de Porto Real, os arranha-céus de Rezende e as favelas que margeiam a Via Dutra. Nessa vizinhança, o parque só existe se houver muita vigilância.
Mas, nos últimos anos, faltou dinheiro até para pagar os guardas de uma empresa de segurança e o serviço terceirizado que cobra o ingresso, na entrada. Quem passa pelo portão à noite não tem a quem pagar os R$ 3 da entrada por pessoa e R$ 5 por carro, preços congelados há tantos anos que hoje valem mais ou menos a metade de um pedágio nos postos da rodovia Rio-São Paulo. Às vezes, até ônibus aproveitam o horário gratuito. E é preciso ligar no dia seguinte para os hotéis, acertando uma visita ao caixa.
É tudo muito complicado. E, por essas e outras, a rotina de quem o chefia um parque como o do Itatiaia inclui uma negociação sem fim de acordos que conciliam as normas do parque contra a indisciplina geral de vizinhos e visitantes. Somem-se a essa carga normal os problemas de uma longa interinidade, e dá para imaginar como tem sido a vida de Sarahyba. Esse professor de botânica anda em campanha permanente para catequisar “a população do entorno”. Seguindo a pista de acessos clandestinos ao interior do parque, acabou chegando por exemplo “a uma comunidade de jovens inteligentes”, que moram nos arredores de Itamonte, junto às bordas da reserva em Minas Gerais.
O grupo pareceu-lhe simpático à conservação ambiental. E, segundo ele, conheciam muito bem a região. Achou-os praticamente prontos para serem guias turísticos no parque. Resolveu treiná-los e credenciá-los, num “programa de inclusão”. E, se puder, pretende montar postos de controle para esses voluntários abrirem o olho para o que acontece naquele lado da serra, que fica a mais de uma hora da sede. Com pesquisadores do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, quer criar roteiros turísticos com informações sofre a fauna e a flora de Itatiaia, um lugar que os especialistas nunca se cansam de estudar mas às vezes entedia os leigos em poucas horas de passeio desinformado.
Com as turmas de pós-graduação da Universidade de Juiz de Fora, está reavaliando a capacidade de carga das trilhas no interior do parque, às vezes muito batidas. Nestas férias de julho, reabriu o abrigo que sempre serviu para acampamentos de escoteiros, até chegar a um ponto em que não servia mais para nada. E transformou em Centro de Convivência a Casa de Pedras na subida para as Agulhas Negras que, com o tempo, acabara monopolizada pelas manobras do Exército no planalto. Para agosto, marcou uma reunião do conselho consultivo, a primeira depois de um ano e meio sem convocação. Dito isso, Sarahyba acha que não é justo dizer que o Parque Nacional do Itatiaia está à matroca. Mas ele se engana. Injusto é o descaso das autoridades que despejaram toda essa carga na mesa de um gerente interino.
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