Reportagens

Legado Tanaru: terra de povo indígena dizimado ganha sinal verde para virar parque

Decisão histórica do STF abre caminho para criação do Parque Nacional Tanaru, em Rondônia, onde vivia o “Índio do Buraco”, último representante de seu povo, morto em 2022

Duda Menegassi ·
17 de setembro de 2025

Quando há quase exatos três anos um indígena, último representante de seu povo, morreu, seu território – cerca de 8 mil hectares de Amazônia em pé – entrou em disputa. De um lado, os que desejavam proteger a memória e a floresta que abrigou o último dos Tanaru, que ficou conhecido popularmente como “Índio do Buraco”. E do outro, os interesses de fazendeiros, grileiros e madeireiros em ocupar, desmatar e explorar esse pedaço da Amazônia que sobreviveu no sul de Rondônia graças aos indígenas. Na última quinta-feira (11), uma decisão histórica do Supremo Tribunal Federal (STF) deu sinal verde para continuidade da preservação do território Tanaru, com a homologação do plano de trabalho para criação de um parque nacional no local. A resolução representa ainda um avanço importante no reconhecimento dos direitos dos povos isolados.

A decisão do ministro Edson Fachin, do STF, é parte da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 991, que trata dos direitos dos povos indígenas isolados e de recente contato e da proteção dos seus territórios. A ADPF foi apresentada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) em junho de 2022, cerca de dois meses antes da morte do indígena, que tinha entre os pedidos a regularização e proteção das terras indígenas com presença de povos indígenas isolados e de recente contato.

O Parque Nacional Tanaru será implementado sobre a Terra Indígena Tanaru, que nunca chegou a ser homologada, e terá como um dos seus principais objetivos “o reconhecimento e preservação da memória material e imaterial do povo Tanaru, recentemente dizimado”, detalha Fachin em seu texto. E sua implementação será “acompanhada do desenvolvimento de estudos sobre memória e verdade do Povo Tanaru”, complementa o ministro, que destaca o ato como reparação histórica da violência e vulnerabilização sofrida pelos povos originários do Brasil.

Pouco se sabe sobre a história do povo Tanaru – que recebeu esse nome em referência ao rio que cruza seu território, distribuído entre os municípios de Chupinguaia, Corumbiara, Parecis e Pimenteiras do Oeste.

De acordo com Fabio Ribeiro, coordenador executivo do Observatório dos Povos Isolados (OPI), desde a década de 80 havia relatos da presença de grupos de indígenas isolados na região. Apesar disso, a FUNAI (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) emitiu na época uma certidão negativa que atestava a ausência de indígenas no local, o que abriu caminho para o genocídio dos povos que viviam ali. Evidências indicam que em 1995, uma chacina encomendada por fazendeiros dizimou os Tanaru. 

Apenas um único indivíduo conhecido do povo sobreviveu, apelidado de “o Tanaru” ou de forma mais infame “Índio do Buraco”, devido aos misteriosos buracos que escavava pelo território e deram fama ao indígena.

Um dos buracos misteriosos feitos pelo indígena Tanaru. Foto: Survival Internacional/Divulgação

Para garantir a proteção do último Tanaru, desde 1997 uma ordem judicial de restrição de uso resguardou 8 mil hectares de floresta para sobrevivência do indígena, que recusou o contato até o fim da sua vida. A medida foi renovada continuamente pela justiça desde então. Em 2015, a última portaria da FUNAI (nº 1.040/2015) havia prorrogado a proteção por 10 anos.

A portaria restringe o ingresso, locomoção e permanência de terceiros que não façam parte da equipe da FUNAI no território. O instrumento tem como objetivo garantir a proteção dos povos indígenas enquanto tramita o processo oficial de demarcação de terras – um processo que pode levar décadas até a homologação. A regularização da Terra Indígena Tanaru era uma das peticionadas pela ADPF 991.

Com a morte do indígena, em 2022, o prazo da restrição chegando ao fim e uma pressão cada vez maior em cima do território, organizações indigenistas, os ministérios dos Povos Indígenas (MPI) e do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) e Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) se uniram para pensar na destinação da terra, com o objetivo comum de mantê-la protegida.

“Você só pode demarcar uma terra para usufruto exclusivo de um povo. Com esse povo não existindo mais, ainda que por extermínio, houve esse imbróglio jurídico. E todo o trabalho do MPI foi no sentido de argumentar que se não temos a possibilidade legal de demarcar a terra, isso não impede que o Estado reconheça que ali é um território indígena. E começamos a pensar como faríamos isso”, explica Beatriz Matos, diretora do Departamento de Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato da Secretaria Nacional de Direitos Territoriais Indígenas no MPI.

A solução foi então criar um parque nacional – uma unidade de conservação de proteção integral que permite como usos apenas a pesquisa científica, educação ambiental e o turismo – com foco na reparação histórica e no reconhecimento do crime de genocídio de um povo.

Uma das raras imagens feitas do indígena conhecido como “Tanaru”, o último representante de seu povo, feita em 1996. Imagem: Vincent Carelli

A diretora do Departamento de Povos Isolados comemorou a decisão do STF como o desfecho desse imbróglio jurídico. “Essa situação exigia inovação e coragem por parte do poder público, pela especificidade desse evento. Nós assistimos ao fim de um povo indígena na nossa frente e havia uma necessidade absoluta do reconhecimento. Porque senão você deixa que a morte desse indígena faça com que esse território possa estar disponível, até para aqueles que provocaram o próprio massacre e que nunca foram punidos”, alerta.

Ela explica que o parque nacional terá como foco justamente a preservação da memória e do patrimônio não apenas ambiental, mas histórico e arqueológico dos povos que viveram ali. “Preservar esse território como lugar de memória e não-repetição de um genocídio que ocorreu ali”, resume Beatriz.

O parque também permitirá a continuidade dos estudos arqueológicos, já em andamento, para entender a história do local e dos seus ocupantes.

“O território como ele se encontra hoje, foi manejado e preservado como resultado da habitação desse indígena e desse povo. A própria floresta guarda a memória desse povo ali. Preservar a floresta é preservar a memória daquele povo”, afirma a diretora do MPI.

O coordenador do OPI reforça que a criação do parque deve ser um símbolo de uma história que não pode se repetir. “Um genocídio incentivado pelo Estado, impetrado pelos fazendeiros, um crime que não foi investigado, não foi punido. Esse parque nacional é o mínimo de reconhecimento que o Estado pode fazer. E a gente espera que o Estado invista recursos na proteção dos povos isolados para que outros povos não desapareçam”, diz.

A decisão do STF prorroga a restrição de uso no território até que seja concluído o processo de criação do parque. De acordo com o plano de trabalho homologado por Fachin, a previsão é que o parque seja criado em abril de 2026, aproveitando a ocasião do Dia dos Povos Indígenas, celebrado no dia 19.

“É uma vitória não só em relação à terra Tanaru, mas de todo movimento indígena”, celebra o coordenador do OPI, Fabio Ribeiro. “Esse caso deu visibilidade pra pauta dos povos isolados e todas as pressões que eles sofrem, além de abrir um precedente importante sobre seus territórios”, completa.

Casa de palha usada pelo indígena Tanaru. Foto: FUNAI

Atualmente, de acordo com a FUNAI há 115 registros de povos indígenas isolados no país, sendo 29 referências confirmadas, todas na Amazônia Legal.

“Agora nossa briga é para que a gestão desse parque seja compartilhada de forma que a FUNAI, que foi o órgão principal que cuidou dessa área, possa continuar participando do monitoramento e proteção da área, não só o ICMBio”, afirma Fabio, da OPI.

Desde a morte do indígena, respaldada pela portaria de restrição de uso, a FUNAI continua seu trabalho de monitoramento e proteção do território, por meio da Frente Etnoambiental Guaporé, que atua diretamente no território. O esforço tem segurado o avanço do desmatamento no território.

“Há uma pressão enorme nessa porção sul de Rondônia, próximo da divisa com Mato Grosso. O entorno é quase todo desmatado, a não ser onde tem outras terras indígenas ou unidades de conservação. Atualmente há pequenas entradas de desmatamento tanto a leste quanto oeste do território, mas são áreas pequenas ainda. Você vê que tem pressão, mas não conseguiram entrar graças a esse trabalho da Frente Etnoambiental”, destaca a diretora do MPI.

Os mistérios do povo Tanaru

“Tanaru”, o último representante de seu povo, foi encontrado morto em agosto de 2022 por uma equipe da Frente de Proteção Etnoambiental Guaporé, da FUNAI, que regularmente visitava a área, respeitando o não-contato. Ele estava na sua rede no interior de sua casa de palha, vestido com adereços e um tipo de chapéu, sem sinais de trauma.

Após o seu falecimento, uma equipe de arqueólogos da Universidade de São Paulo (USP), por meio do projeto Amazônia Revelada e em parceria com o Observatório dos Povos Isolados (OPI), deu início a pesquisas de artefatos e sítios arqueológicos na terra indígena.

Muitas perguntas provavelmente ficarão sem resposta para sempre, como qual o nome, etnia e língua desse povo. As pistas deixadas na floresta poderão apenas dar elementos que expliquem a história, o modo de vida e, quem sabe, a motivação por trás dos buracos que deram fama ao Tanaru. 

“Nós fizemos um sobrevoo usando tecnologia chamada LiDAR [Light Detection and Ranging – usado para escanear a terra por debaixo da cobertura vegetal] e identificamos sítios arqueológicos, sítios que acreditamos que são mais antigos até do que os feitos pelo Tanaru, mas as evidências da presença dele são abundantes”, conta o arqueólogo Eduardo Góes Neves, professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP.

O arqueólogo defende que o Parque Nacional Tanaru seja protegido também como um patrimônio histórico. “É importante que o Brasil não esqueça que esse é o território de um indivíduo sobrevivente de um massacre e que esses massacres de populações indígenas ocorreram inúmeras vezes em Rondônia. É importante que essa história não se apague”, ressalta.

  • Duda Menegassi

    Jornalista ambiental especializada em unidades de conservação, montanhismo e divulgação científica.

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