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STF derruba Marco Temporal, mas abre nova disputa sobre o futuro das Terras Indígenas

Análise mostra que, apesar da maioria contra a tese, votos introduzem condicionantes que preocupam povos indígenas e especialistas

Karina Pinheiro ·
19 de dezembro de 2025

O julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) invalidou na última quinta-feira (18) pela segunda vez, a inconstitucionalidade do marco temporal para a demarcação de Terras Indígenas, rejeitando a tese que restringia o direito territorial apenas às áreas ocupadas em 5 de outubro de 1988. A decisão, no entanto, está longe de representar um ponto final no conflito. A leitura dos votos revela que, embora o marco temporal tenha sido formalmente afastado, parte do Tribunal admite novas regras, prazos e exceções que podem redesenhar e, segundo organizações indígenas, fragilizar o regime constitucional de proteção dos territórios tradicionais

O julgamento analisa a constitucionalidade da Lei nº 14.701/2023, aprovada pelo Congresso como reação direta ao próprio STF, que já havia rejeitado o marco temporal no Tema 1031 da repercussão geral. O relator, ministro Gilmar Mendes, votou pela inconstitucionalidade do núcleo da tese, posição seguida por Alexandre de Moraes, Flávio Dino, Cristiano Zanin, Luiz Fux e Dias Toffoli, formando maioria.

Direito originário reafirmado

Nos votos que acompanham o relator, há consenso quanto a um ponto central: os direitos territoriais indígenas são originários, anteriores ao Estado e protegidos pelo artigo 231 da Constituição. Cristiano Zanin e Flávio Dino destacam que se trata de direito fundamental e cláusula pétrea, que não pode ser reduzida nem por lei ordinária nem por emenda constitucional, reafirmando a jurisprudência consolidada do STF

Alexandre de Moraes reforça que o Congresso não pode editar norma que contradiga diretamente decisão da Corte em controle concentrado ou em repercussão geral, sob pena de violar a separação dos Poderes e a segurança jurídica.

As novas condicionantes

Apesar disso, os votos também introduzem elementos que deslocam o debate para um novo patamar de tensão. Um dos pontos mais sensíveis é a possibilidade de o Estado alegar “impossibilidade” de demarcação e oferecer terras equivalentes às comunidades indígenas. Para a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a proposta resgata práticas históricas de remoção forçada, incompatíveis com o direito originário e com o vínculo espiritual, cultural e ambiental dos povos com seus territórios

Outro ponto criticado é a criação de prazos administrativos. Pela lógica apresentada no voto do relator, após determinado período do trânsito em julgado, pedidos de reconhecimento territorial deixariam de resultar em demarcação e poderiam ser convertidos em desapropriação por interesse social. Especialistas alertam que esse mecanismo esvazia o caráter imprescritível do direito indígena à terra.

Criminalização das retomadas e impacto ambiental

A análise dos votos também evidencia preocupação com a possibilidade de criminalização das retomadas indígenas, prática recorrente em contextos de omissão estatal prolongada. Ao admitir remoções e restrições sem considerar a morosidade histórica dos processos demarcatórios, a decisão pode agravar conflitos fundiários, sobretudo em regiões como o Mato Grosso do Sul e o sul da Bahia.

Do ponto de vista ambiental, os impactos são diretos. Terras Indígenas são reconhecidas como uma das barreiras mais eficazes contra o desmatamento, como mostra um estudo publicado em 2019, realizado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP). Qualquer flexibilização no regime de demarcação tende a ampliar a pressão sobre florestas, rios e áreas de alta biodiversidade, contrariando compromissos climáticos assumidos pelo Brasil.

Divergências internas e próximos passos

Embora acompanhem o relator no afastamento do marco temporal, ministros como Flávio Dino, Zanin e Toffoli apresentam divergências relevantes. Dino, por exemplo, rejeita a aplicação de regras do processo judicial aos laudos antropológicos e defende que, em casos de sobreposição com Unidades de Conservação, deve prevalecer o usufruto indígena, reforçando o papel das comunidades como guardiãs dos biomas.

Para a Apib e organizações aliadas, o julgamento ainda deixa em aberto uma questão central: se o STF irá apenas substituir o marco temporal por outros mecanismos de restrição ou se reafirmará, o entendimento já firmado no Tema 1031, em 2023.

  • Karina Pinheiro

    Jornalista formada pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), possui interesse na área científica e ambiental, com experiência na área há mais de 2 anos.

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