Nosso primeiro livro vermelho da extinção tinha capa azul. Talvez porque as coisas não parecessem tão pretas há 38 anos, quando ele saiu por obra e graça do biólogo Adelmar Coimbra e do agrônomo Alceo Magnanini, dois decanos do ambientalismo no Brasil, onde os bosques têm mais vida. Tanta vida, que acabamos de emplacar nada menos de 3.908 espécies na lista de possíveis candidatos a uma vaga na arca da União Internacional para a Conservação da Natureza, edição 2006. Não é nada, não é nada, mais um pouco não é nada mesmo.
O novo inventário mundial da devastação mistura hipopótamos africanos com ursos polares, peixes oceânicos com gazelas do deserto e outras criaturas que, entre si, só têm em comum as más relações com os seres humanos. São, ao todo, 16.119 espécies. O Brasil conseguiu botar na lista até a Araucaria augustifolia. Ou melhor, o pinheiro do Paraná, símbolo oficial do estado, onde continua espetado na bandeira, decora praças em Curitiba e parece tão comum na paisagem rural que mal dá para imaginá-lo como árvore “criticamente ameaçada”.
Mas são as matas de onde ela veio que estão acabando. Na virada do milênio, restavam 0,8% de florestas com araucárias no território paranaense. Com essa percentagem, começou no começo da década uma campanha para salvá-las do completo aniqüilamento antes que fosse tarde demais e uma corrida para passar na motosserra as últimas sobras enquanto ainda era tempo. O placar fechou, por enquanto, em quatro reservas para as araucárias no Paraná e duas em Santa Catarina. Uma sexta unidade de conservação, em Ponta Grossa, encalhou na fila de Brasília.
Ao mesmo tempo, os tais 0,8% de florestas, que poucos anos atrás pareciam assinalar a fronteira do inadmissível, viraram uma saudosa lembrança do passado recente. O índice caiu em poucos anos para uma fração da fração. Há quem fale no Paraná em 0,4%, o que não deixa de ser uma façanha notável para um povo que herdou a araucária de sementes brotadas numa época em que os dinossauros governavam a terra. Mesmo assim, para mostrar que a briga ainda não acabou, o deputado paranaense Max Rosemann conseguiu açular o Ministério Público a conferir o que pode estar por trás da atitude suspeita de quem se mexeu para defender essas árvores.
No fundo, entra lista, sai lista, o Brasil continua o mesmo. Um lugar onde essas coisas nunca vão acontecer. Como era na década de 30, quando o naturalista Rodolpho von Inhering publicou o primeiro e único Dicionário dos Animais do Brasil. Apesar de insustituível, o livro passou muitos anos enterrado em sebos, como raridade bibliográfica. E, ao ressuscitar em 2002, em edição organizada pela Universidade de Brasília, mostrou como o país envelhecera desde o seu lançamento. Ihering viveu numa terra onde tudo parecia inexaurível. E por isso seus verbetes, ao falar dos bichos, nunca perdem de vista o interesse de quem está aí para caçá-los. O tempo tornou-os duplamente informativos. Eles descrevem, com rigor científico, o que o Brasil tem. E, com licença poética, o que está perdendo.
Da capivara, por exemplo, diz que ela “passa o dia escondida, perto da água, e só à noitinha vem pastar. Assim, só a espingarda pode valer ao caçador”. A cutia não só “é muito apreciada pelo prazer venatório que proporciona, como também pelo excelente sabor de sua carne”. E se, perseguida pelos cães, ela se entocar, o caçador pode “facilmente obrigá-la a sair, fazendo entrar fumaça no buraco”. No jacu convém atirar com cuidado. “Porque as penas das asas, muito rijas, resistem a uma carga fraca de chumbo” e, “mal feridas, essas aves, ainda que venham ao chão, estão perdidas para o caçador, pois com incrível rapidez e desenvoltura sabem procurar o local mais intrincado da mata”. Em compensação, apanhadas de surpresa, “suas tentativas de fuga, desordenadas e loucas, até provocam o riso”. Pois é. Ihering, como as listas de extinção, dá saudades do Brasil.
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