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Mais do que tomates

Uma apreensão de folhas de tomate pela Receita Federal em julho e uma investigação de biopirataria até hoje não concluída pelo Ibama mostra o despreparo para lidar com banalidades.

Débora Crivellaro ·
10 de outubro de 2006 · 18 anos atrás

Apreensão de folhas de tomate por suspeita de biopirataria deveria ser um caso de fácil solução, mas não é. Toca o telefone na sede do Ibama, em São Paulo. A Receita Federal acabara de apreender envelopes considerados suspeitos numa unidade dos Correios na Zona Oeste da cidade e solicitava a presença de agentes do Instituto. A suspeita era de crime contra o patrimônio genético e recaía sobre a portentosa Unilever, um dos maiores fornecedores de bens de consumo do mundo. A multinacional tentara embarcar 768 frascos com conteúdo vegetal para seus laboratórios na Inglaterra. O material estava envolto num pacote onde se lia “documentos”, mas foi revelado pela máquina de raio-x, o que levantou suspeitas entre os funcionários da Receita.

Convocada a dar explicações, a Unilever declarou que os frascos continham folhas de tomate, encaminhadas ao exterior para pesquisa, um procedimento habitual entre os materiais utilizados na fabricação de seus produtos. A suspeita que recai sobre a multinacional é de biopirataria, ou crime contra o patrimônio genético. A empresa defendeu-se argumentando que folhas de tomate são de domínio público, presentes em bancos de germoplasma em todo o país. Mesmo assim, o Ibama apreendeu o pacote e notificou a Polícia Federal – a denúncia aguarda para ser distribuída para o delegado ambiental em Goiás, onde fica a Delegacia do Meio Ambiente e Patrimônio Histórico (Delemaph).

O Ibama garante que o conteúdo vegetal apreendido no fim de julho ainda está sob investigação no Instituto Biológico, em São Paulo, e que nenhum documento conclusivo foi produzido até o momento. Mas Lucia Rossi, pesquisadora do Herbário do Instituto de Botânica de São Paulo, conta que já produziu dois laudos. O mais recente há cerca de um mês, a pedido do próprio Ibama, e que os dois reiteram a mesma conclusão: os envelopes apreendidos continham nada mais, nada menos do que folhas de tomate.

Confrontado, o Ibama mantém a afirmação de que o material continua em análise e de que ainda não há nenhum documento produzido. Mas o fato é que, apesar de nem o Instituto Ambiental nem a Unilever confirmarem, até uma vultuosa multa já foi aplicada, isso no momento da apreensão, sem que nada se soubesse sobre o conteúdo dos frascos apreendidos.

Trapalhadas

Este episódio resgata a discussão sobre a falta de treinamento de alguns fiscais do Ibama no que diz respeito à identificação de biopirataria. Também reforça a necessidade de uma legislação uníssona e coesa sobre patrimônio genético e sua devida divulgação, o que evitaria, em grande parte, casos como o ocorrido com a multinacional. “Estamos afinando nossos instrumentos para atender a casos como esse”, reconhece Thomaz Toledo, assessor técnico do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), órgão pertencente ao Ministério do Meio Ambiente.

Pela lei, até o transporte de inocentes folhas de tomate podem incorrer em biopirataria. É necessário apenas saber se as folhas foram extraídas de uma espécie exótica ou não – o termo exótico é aplicado aos tipos que não ocorrem naturalmente em ambientes brasileiros, não sendo, assim, considerados patrimônio genético. Se o material da Unilever for enquadrado nesse grupo, o envio a Inglaterra recai na legislação que regula coleta e transporte de material biológico (que implicaria numa autorização prévia do Ibama). Se, ao contrário, ocorrer naturalmente no Brasil, a empresa precisaria ter seguido a Medida Provisória 2.186-16/2001, que constitui como órgão responsável pela regulação do acesso e da remessa de patrimônio genético o CGEN.

De acordo com as regras vigentes, qualquer atividade que envolva acesso ao patrimônio genético com finalidade de pesquisa científica, bioprospecção ou desenvolvimento tecnológico – esses últimos com potenciais usos comerciais – precisa ser previamente notificada. A legislação que discorre sobre esses temas ainda é difusa, mas há consenso entre os técnicos ouvidos de que, fossem folhas de tomate ou não, espécie exótica ou patrimônio genético, o CGEN ou o Ibama deveriam ter sido consultados previamente pela Unilever antes do envio do material.

Até a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) entrar em vigor – o Brasil é país-membro desde 1994 –, os recursos genéticos eram considerados como patrimônio da humanidade, podendo ser acessados livremente. Hoje estão previstos em lei a soberania sobre os recursos e a repartição de benefícios. “Atualmente essas questões de envio de material biológico estão cercadas de certa paranóia”, atesta Edilson Paiva, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e da Comissão Técnica de Biossegurança (CTNBio). Paranóia à parte, a forma como foi e vem sendo tratado o caso das folhas de tomate da Unilever revela como o Brasil e seus fiscais ainda não estão despreparados para lidar com a questão da biopirataria.

* É jornalista freelancer em São Paulo.

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