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Tubarão também é gente

A imprensa em geral trata os tubarões como seres agressivos e assassinos, dos quais humanos fazem bem em manter distância. Coitados. Não passam de vítimas.

12 de maio de 2005 · 20 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Durante o governo do falecido presidente Collor o então ministro do Trabalho e Previdência Social, Sr. Antônio Rogério Magri, brindou a nação com a seguinte frase: “cachorro também é um ser humano”. Diante do tempo decorrido a frase meio que foi se perdendo e hoje é uma memória distante, tendo se tornado quase que mitológica. Na verdade, como em todo mito, o conteúdo correto da frase sumiu. Mas, como diria o Dr. Alckimin, o importante não é o fato, mas a sua versão.

O que poderia ter sido dito pela ilustre autoridade de antanho (por favor, Sr. revisor, não troque por antolhos para não agredirmos Sua Excelência)? “Cachorro também é gente” ou alguma coisa semelhante. O ex-ministro expressava uma visão que boa parte das pessoas tem em relação aos animais domésticos, pois na verdade, o ex-titular da pasta do Trabalho e da Previdência Social demonstrava uma profunda amizade pelo seu canino e, até onde me lembro, chegou a levá-lo para passear em um dos chamados “carros oficiais” que serviam ao Ministério. Ao ser flagrado por algum repórter indiscreto, o ex-sindicalista, rápido e certeiro, disparou a pérola e afirmou a humanidade do animal, o que justificaria a inusitada carona. Será que se os filhos do ex-ministro estivessem sendo levados para o colégio em um “carro oficial” ele diria, “ora, afinal, gente também é cachorro”? Resta este mistério insondável a ser esclarecido pelo tempo que, como dizia o ex-patrão do ministro, “é o senhor da razão”.

Muita gente, no entanto, tem da vida canina uma visão diferente – desculpem mas, “diferenciada” não existe na nossa língua. O cantor brega Waldick Soriano se lamentava, no programa do Chacrinha, para Beki Klabin, “Eu não sou cachorro não”, demonstrando que merecia um tratamento mais, digamos, “humano”. Eduardo Dusek, por sua vez, afirma que conheceu um garotinho que “queria ter nascido pastor alemão”. Mas, afinal de contas, por que fazemos estes freqüentes chamamentos aos animais para expressar sentimentos? Penso que se trata de uma escolha arbitrária. Explico-me melhor, nós “humanos” escolhemos determinados bichos e os humanizamos e, muita vez, consideramo-los elementos de nossa própria família. Ora, os animais que caem nas nossas benesses, certamente, têm uma vida melhor do que aqueles que desprezamos ou que nos causam pavor. Não vale a pena voltar ao tema do coitado do lobo mau.

Mas e os tubarões? Quem se importa com eles? Em “Procurando Nemo”, por exemplo, Bruce (o tubarão da história) freqüentava um grupo de auto-ajuda para “só por hoje” não comer peixes. Ora, por mais simpático que Bruce seja, o fato é que ele se dedicava a evitar – um dia de cada vez – um comportamento que para ele, como tubarão, estava absolutamente dentro do que se poderia esperar como natural. Sobre o recente episódio da captura de 18 tubarões ocorrido em Búzios, a Agência Estado noticiou o seguinte(1):

Em dois dias, pescadores capturaram dezoito tubarões em alto mar, próximo ao município de Búzios, na Região dos Lagos no Estado do Rio de Janeiro. Os animais, que costumam aparecer no litoral da região nos meses de maio e junho, eram da espécie cabeça-chata e pesavam em média 150 quilos. Dezesseis foram capturados na sexta-feira e dois hoje. Segundo informações da Associação dos Pescadores de Manguinhos, há um mês foram capturados quinze tubarões, mas o cardume se afastou, dirigindo-se para a costa do município de Rio das Ostras, voltando agora para as proximidades do litoral de Búzios. Os animais são capturados principalmente devido ao valor de venda de sua barbatana, consumida como iguaria de grande valor pela população de países da Ásia.

A prática que, no Brasil, é considerada legal, já está sendo banida em diversos países. Lanço aqui meu protesto: a globalização não pode chegar ao ponto de que a falta de apetência sexual de asiáticos sirva para martirizar os “nossos tubarões”.

Na verdade, o noticiário sobre tubarões sempre trata de tais animais como agressivos e capazes de molestar banhistas na costa, causando até mesmo lesões gravíssimas e morte. No entanto, são “eles” as maiores vítimas. Não posso afirmar com certeza mas, provavelmente, a maior proximidade dos tubarões em relação à costa esteja ligada ao declínio dos peixes em função da sobrepesca. Mas e a caça aos tubarões?

Vejamos o caso do Equador. Além da caça aos presidentes, a caça aos tubarões é um dos esportes mais populares naquele país. A agência ANSA (2) informa que um total de 1,7 milhão de tubarões foram mortos por pescadores não autorizados entre os anos de 1997 e 2003 nos mares equatorianos e, em especial, perto das Ilhas Galápagos. O massacre dos animais se justificaria por ser o pobre animal um ingrediente para sofisticadas sopas afrodisíacas, feitas à base de barbatanas. Tais iguarias são comercializadas a aproximadamente US$ 100 o prato, sobretudo na China e em Hong Kong. Ou seja, pimenta nos olhos dos outros é refresco. Estima-se que, em função da “pesca”, tenha havido uma redução de cerca de 60% dos indivíduos. Este fato levou o governo equatoriano a editar um decreto proibindo a carnificina.

No Equador cerca de 65% da população se encontra abaixo da linha de pobreza, o que faz com que a venda de um quilo de barbatanas no mercado por US$ 65 seja um atrativo bastante importante para a selvageria. É importante observar que, na Ásia, o produto chega a alcançar US$ 300, comprovando a tese de que a pobreza é um excelente “estímulo” para a degradação do meio ambiente.

Se sairmos da pobreza de “nuestra américa” veremos que o nome chique para a coisa é Shark Finning (3). O que seria o tal Shark Finning? É a captura do tubarão para a retirada de suas barbatanas, em especial aquela triangular que fica sobre a espinha dorsal do animal. O “resto” do tubarão é descartado. Segundo as informações disponíveis, o Tubarão-Azul é o mais afetado pela estupidez. Em 1998, no Hawai eram caçados cerca de 60.000 tubarões. Isto fez com que o governo americano proibisse a prática através do Shark Conservation Act. Ora, também a Austrália proibiu a “gracinha”, daí ter a turma do “viagra” natural corrido para a América do Sul, onde as pressões da pobreza servem como “desculpa” e justificativa para o abate irracional.

A Convenção Internacional contra o Tráfico Internacional de Espécies Ameaçadas (CITES) tem dedicado atenção à proteção do tubarões. No Brasil, houve recentemente uma reformulação nos critérios para a definição de espécies ameaçadas, existindo uma nova relação que adota uma metodologia mais moderna. Elaborada pela Fundação Biodiversitas, a mencionada lista foi homologada pelo Ministério do Meio Ambiente, mediante a edição da Instrução Normativa nº 5 de 21 de maio de 2004, que apresentou uma relação de tubarões incluídos nas categorias (i) vulnerável, (ii) em perigo, (iii) criticamente em perigo, que é composta das seguintes espécies de tubarões: Tubarão-Estrangeiro, Tubarão-Galha-Branca-Oceânico, Cação-Bico-Doce, Caçonete, Cação-Cola-Fina, Tubarão-Peregrino, Cação-Lixa, Tubarão-Baleia, Cação-Anjo-Espinhoso, Cação-Anjo-Liso. Na relação de espécies sobre-explotadas constam o Tubarão-Azul, o Tubarão-Martelo, o Cação-Martelo-Da-Aba-Curta, o Tubarão-Martelo-Liso e o Tubarão-Golfinho (4).

Os tubarões são utilizados para as mais diferentes “picaretagens”. Uma delas é a “cura do câncer” através da cartilagem de tubarão. Uma bobagem sem qualquer comprovação científica que, como resultado prático, só traz o aumento do abate dos animais. Cá pra nós, os tubarões não são uma panacéia universal para a cura do câncer e da disfunção erétil.

Enfim, espero ter demonstrado que, no fundo, no fundo, o tubarão também é gente.

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