Adoro salmão. Grelhado ou disfarçado de sushi. Ouvi mais detalhes sobre esse peixe pela primeira vez quando morei no Japão entre 1978 e 1981, como aluno de mestrado da Tokyo Suisan Daigaku (Universidade de Pesca de Tóquio). Foi um período divertido sob todos os aspectos da minha vida cultural, acadêmica e gastronômica. Mas também foi difícil a adaptação nesse país de diferenças tão marcantes de raça, cultura, idioma e clima. Onde as pessoas em geral riam de coisas absolutamente sem graça ou mantinham aquela fisionomia de samurai pronto para dar o bote, enquanto eu e meu grande companheiro Athiê quase nos mijávamos de tanto rir. Somos amigos até hoje.
Estavam incluídas no currículo do curso atividades de extensão universitária tais como visitas ao mercado de peixes de Tóquio, visitas a cooperativas de pesca e fazendas de produção de algas, moluscos e peixes. Eu perdi uma delas: a visita a uma estação experimental de produção de salmão no município de Kanagawa, ao norte de Tóquio. O velho Athiê foi quem me descreveu com precisão de detalhes a experiência inesquecível, que eu adoraria poder contar como se fosse minha.
A prefeitura de Kanagawa retificou totalmente um dos rios locais, que era o itinerário escolhido pelo salmão do Pacífico rumo à perpetuação da espécie. Todos os obstáculos naturais que dificultavam a migração dos peixes rio acima foram eliminados. E mais, foram facilitados com muito concreto para evitar a erosão das margens ameaçadas pelas construções urbanas. A subida do salmão era uma festa testemunhada pelos habitantes locais. Velhos e crianças sentavam-se horas a fio admirando os peixes. Ninguém pescava, ninguém atirava pedras e salgadinhos, ninguém dava comida e não havia ursos. Os cardumes subiam contra a corrente em uma aventura sem graça, e até meio monótona depois de alguns minutos, se comparada com aquelas cenas do “Animal Planet” nas quais os peixes dão saltos olímpicos e insistentes para vencer corredeiras e cachoeiras.
Segundo o Athiê, na estação experimental os técnicos aguardavam a chegada dos peixes que, mesmo exaustos, ainda tinham disposição para acasalar. Até isso era facilitado. Os técnicos providenciavam o que chamamos de “fertilização externa”, capturando as fêmeas ovadas e retirando artificialmente os ovos que eram colocados em uma vasilha plástica. Em seguida retiravam os espermatozoides dos machos, derramando o líquido seminal sobre os ovos alaranjados e, como numa receita da natureza, misturavam tudo com a mão mesmo. É o jeitinho japonês. Aquela maçaroca de ovos fertilizados era mantida em uma incubadora com água corrente e estupidamente gelada por algumas semanas até a libertação dos alevinos (larvas dos peixes). Os novos peixinhos eram criados com ração altamente rica em proteína, óleos e vitaminas, até atingirem o tamanho suficiente para iniciar o ciclo migratório. Cada juvenil recebia uma marca na nadadeira dorsal, onde constava uma identificação numérica para controle populacional. É nesse ponto que a história começa a ficar mais interessante.
Como se sabe, o salmão é uma espécie migratória que começa seu ciclo de vida nos rios montanhosos, nada até o mar onde passa anos se alimentando e fugindo das ameaças oceânicas. Aqueles que sobrevivem após anos de batalha na teia alimentar marinha, de algum modo (dizem que é pelo olfato), localizam o caminho de volta até onde nasceram para reproduzir, de uma só vez, toda uma nova geração de salmão. Do mesmo modo que seus pais fizeram anos antes. O ciclo de vida do salmão pode levar até 9 anos. Sabe lá onde esse peixe andou pelo Oceano Pacífico até chegar ao local onde nasceu. No dia e na hora em que o Athiê estava lá, um dos técnicos capturou uma fêmea que tinha sido marcada por ele 5 anos antes. O rapaz parecia um padrinho orgulhoso carregando seu recém-nascido afilhado com um sorriso colgate e lágrimas explodindo pelos cantos dos olhos. A chance de encontrar, não um, mas o peixe marcado anos antes, parecia menor do que ganhar na Sena acumulada.
Para encurtar essa parte da história, os peixes capturados, desovados e “masturbados” eram abatidos e consumidos no mercado interno. Mesmo aquele recuperado pelo orgulhoso técnico. Se fosse brasileiro, levava-o para casa e gastava até 1/3 do salário com aquários, aeradores, cenários, filtros e ração, para o resto da vida. A emoção do japonês era mais pelo sucesso tecnológico da reprodução do salmão do que pelo reencontro com o afilhado migrador. Isso eu descobri mais tarde. O japonês é assim mesmo. Fazer sushi e sashimi é prioridade em uma cultura milenar que não desperdiça nada, que quase não gera lixo orgânico e que precisa garantir recursos para a geração futura. Na minha opinião de consumidor, o sushi, particularmente o de salmão, foi um dos mais importantes legados culinários deixado pela cultura japonesa no final do século passado. O sabor, o visual, a maneira de comer e degustar o peixe cru temperado com shoyo e wasabi, algumas lascas de gengibre fatiado ou fiapos de nabo, só podem ser interrompidos pelos goles de saquê quente. Esse prazer deveria estar naquele banco digital de dados históricos, culturais e tecnológicos da raça humana que os americanos mandaram para o espaço.
Mas nada disso teria importância para nós brasileiros se não fosse pelo recente boom de consumidores de sashimi e sushi de salmão. Maldita imprensa televisiva que me tirou esse prazer ao mostrar nas últimas semanas a contaminação do salmão com vermes parasitas. Um verdadeiro alien albino em forma de fita, roubando parte do meu bolo alimentar. Que cena horrível! Ninguém mais quer comer salmão e os donos de restaurantes estão contando os prejuízos. Na verdade acho tudo muito dramático. Afinal nem só de salmão vive o parasita. E vamos e venhamos… verme a gente controla com tecnologia, limpeza, desinfecção etc. Na pior das hipóteses, verme a gente mata com vermífugo.
As ameaças da indústria do salmão são muito mais graves. Não apenas contra nós mas contra o próprio salmão. Este é mais um candidato à extinção. Daqui a alguns anos salmão vai ser como galinha. Só se vê nas fazendas e no supermercado. Atualmente está em discussão no Congresso americano a lei que autoriza a venda e o consumo de salmão transgênico no mercado interno. Quem desenvolveu a novidade foi a empresa de biotecnologia Aqua Bounty Technologies. Dizem que a nova raça artificial pode crescer e atingir o tamanho de mercado na metade do tempo que leva um salmão selvagem para crescer (isto é, 22 a 30 meses). A ideia é vender os alevinos transgênicos para a engorda em fazendas que vão dobrar os lucros. Se esse bicho escapa para o ambiente natural, o que é óbvio que vai acontecer, ninguém sabe a tragédia genética das populações naturais quando transgênicos e selvagens começarem a se cruzar, nem o impacto ambiental causado por um competidor que chegou antes do previsto no palco da teia alimentar marinha.
Na verdade as populações de salmão selvagem já estão seriamente ameaçadas de extinção há algumas décadas pelo uso de pesticidas na agricultura, nos jardins, nos parques públicos, que invariavelmente chegam aos rios e contaminam a teia alimentar local. Quando não contamina e mata diretamente o salmão, o veneno altera seus padrões de reprodução ou provoca doenças irreversíveis . Salmão é um dos melhores indicadores de qualidade da água. Necessita de água extremamente limpa e gelada. Se ambas as condições ambientais não forem satisfeitas a população decresce rapidamente.
Do ponto de vista sanitário, pior que vermes parasitas é a contaminação química da carne de salmão. A maior parte do salmão consumido nos restaurantes vem de fazendas marinhas. Cria-se salmão em cativeiro desde a segunda metade do século XIX na Noruega, Estados Unidos e Canadá, onde os cultivos começaram em 1884. Estes são, atualmente, os maiores produtores do peixe em cativeiro, juntamente com o Chile. O Japão também começou a utilizar a técnica cedo, em 1887. Os salmões são criados em cercos de tela de nylon, chamados “tanques rede”, que ficam presos com cordas e âncoras e armados na superfície com boias. O regime é de engorda intensiva, com pouco espaço. Para evitar doenças causadas por vírus, fungos e parasitas e garantir o rendimento da produção, a ração é misturada com altas doses de antibióticos, fungicidas e vermicidas. A indústria canadense gasta cerca de 7 toneladas de antibióticos em seus cultivos todos os anos. O problema da ingestão de carne de salmão com muito antibiótico é o mesmo quando se consome carne de qualquer animal igualmente contaminada com antibióticos, como é o caso do boi, frango, porco, etc. . O consumo frequente pode desenvolver cepas resistentes de vírus que provocam doenças graves. E daí os antibióticos receitados pelo médico não fazem mais efeito e a doença se agrava.
Um artigo publicado na revista Science em janeiro de 2004 comprovou que o salmão produzido em cativeiro está mais contaminado com pesticidas do que o salmão selvagem, cuja contaminação se dá por acúmulo de substância ao longo da teia alimentar marinha da qual está no topo. O processo é lento e permanente. Os níveis de contaminação das espécies selvagens ainda parecem ser aceitáveis para consumo, se bem que não há razão para não acreditar que somos igualmente depositários de produtos químicos tóxicos e cancerígenos em nossa gordura. Afinal estamos na base, no meio, no topo e em todos os níveis da teia alimentar marinha. Ao cultivar salmão, aceleramos o acúmulo desses produtos através da ração contaminada. O peixe é contaminado de uma só vez, e com selo de garantia. O nível de pesticidas encontrado em salmão cultivado na costa oeste dos Estados Unidos por um grupo de trabalho designado pela Agência de Proteção Ambiental (EPA) foi 16 vezes maior do que no salmão selvagem. O grupo concluiu que a carne do peixe é a que tem o maior nível de contaminação por pesticidas dentre todos os itens alimentares consumidos no mercado americano. Recentemente a Holanda devolveu 22 toneladas de salmão contaminado para os produtores chilenos de Puerto Mont. O produto encontrado foi o fungicida “verde de malaquita” que está proibido há anos nos países produtores do animal.
Minha dúvida é como anda a inspeção sanitária aqui no Brasil. Se soubemos da contaminação com parasitas, foi porque algumas pessoas passaram mal. Isso serviu de alerta à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para que intensifique a inspeção sanitária do salmão, como já deve estar fazendo. Mas, e quanto a pesticidas, fungicidas e antibióticos? Será que a Anvisa monitora a concentração desses contaminantes na carne do salmão importado?
Quem me dera o único problema com a carne de salmão fosse a contaminação com vermes. Como disse no início, eu adoro salmão. E apesar de não ter salmão no Brasil, vou defender indefinidamente o direito que esse peixe delicioso tem de sobreviver e o direito que eu tenho de comê-lo sem receio de me contaminar com vermes, antibióticos, pesticidas e fungicidas.
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