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A política entre Protos e Leptos

Num livro sobre as armas químicas que insetos e parasitas usam na natureza, o escritor William Agosta cria uma fábula sobre sociedades que fazem tudo o que podem para se dar mal.

28 de setembro de 2006 · 18 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Parece um roteiro de filme sobre a guerra dos mundos. Mas é uma história real, passada em dois formigueiros. Num deles, viviam os Protos, que acabavam de descobrir um ninho de Leptos na vizinhança. “Sem dúvida, lá estavam eles, entrando e saindo, com suas cargas de comida”, conta William Agosta, logo nas primeiras linhas de um livro cujo título, em inglês, ocupa metade da capa. “Ladrões, trapaceiros e assassinos”, diz o cabeçalho, em letras garrafais, como se estivesse cobrindo uma campanha eleitoral no Brasil. Abaixo, vem esclarecimento: “Histórias da química na natureza”. Química, no caso, não tem a ver só com as propriedades da matéria. Trata também dos feitiços naturais que manipulam relacionamentos.

Há mais coisas entre o cheiro do manjericão e o gosto da pizza do que faz crer nossa vã gastronomia. Nos laboratórios da Universidade de Cornell, o entomólogo Tom Weisner cuida há décadas de decifrar as fórmulas que fazem de cada encontro das plantas com os insetos uma aula avançada de alquimia. Mas Agosta deve ser o primeiro a extrair do microscópio uma aventura antropomórfica, com começo, meio e fim. Já não se faz um La Fontaine como antigamente. Agora na receita das fábulas entra muita Ciência.

Tráfico de escravos

O fato é que, descoberto o esconderijo subterrâneo dos Leptos, duas formigas que exploravam o terreno voltaram depressa ao quartel. E lá ninguém precisaria ser um especialista para ver que a notícia, ao se espalhar, deixou os Protos agitados. “Um acampamento dos Leptos a poucos passos de distância! Ate onde qualquer um era capaz de lembrar, os Protos sempre mantiveram os Leptos como escravos e, como os escravocratas em qualquer lugar do mundo, eles precisavam renovar de vez em quando seus plantéis de cativos. Para os Protos, nada funcionaria direito sem os Leptos”.

São eles que fazem todo o trabalho da colônia. Cuidam das crias, buscam comida, limpam a casa. Tornam-se tão prestimosos, que participam até dos recrutamentos para combater outros Leptos. Os Protos só têm que fazer força na hora de prendê-los. Nas longas tréguas, ficam zanzando à toa pelo formigueiro. Se querem alguma coisa para comer, cutucam o escravo mais próximo. E ele lhe traz o alimento na boca. Não é preciso traduzir muitos parágrafos da minuciosa dissertação de Agosta sobre a vida cotidiana dos Protos. Os brasileiros têm quase 400 anos de experiência histórica na matéria.

Vamos portanto ao combate, porque é ele que interessa. “Assim que os batedores apresentaram seu relatório, uma força-tarefa bem armada de Protos e escravos se apresentou à sua volta. E, quando o grupo atingiu tamanho suficiente, os batedores os guiaram até o acampamento dos Leptos”, continua Agosta. Marcharam em coluna, sem perder a trilha. Encontraram no caminho a sentinela, que ficara montando guarda. E partiram diretamente para a boca do formigueiro.

Sociedade avançada

Os Leptos não pareciam dispostos a se entregar sem resistência. Mas os Protos, como se sabe, tinham escravos dispostos a qualquer sacrifício nos combates corpo a corpo. Eles se atracavam com os Leptos livres até a morte, enquanto os Protos, como se não tivessem nada a ver com isso, entravam tranquilamente no formigueiro rival , desciam até duas câmaras mais remotas, onde ficam os berçários, e voltavam carregando, vivas, as larvas que iriam repovoar a senzala. Um Proto que se preza não mete as antenas em serviço sujo. E, como explica Agosta, “um Lepto capturado logo depois do nascimento e criado entre os Protos certamente se adaptará à servidão sem reclamar”.

Nada disso é ficção, exceto pelos nomes supostos. Os Protos se chamam na verdade Protomognathus americanus. E os Leptos, Leptothorax curvispinosus. Embora escravocratas, os Protos constituem o que se poderia designar como “uma sociedade avançada”. Não praticam o canibalismo, ao contrário dos Leptos que, além de se matarem uns aos outros, eventualmente se devoram. Os Leptos se engalfinham em lutas mortais. Os Protos usam armas químicas para sabotar seu instinto de defesa. No livro de Agosta, essa história está no primeiro capítulo, para atrair o leitor pelas páginas adentro, onde esses mecanismos são explicados. Aqui, ela só veio lembrar que o governo brasileiro deve saber alguma coisa sobre as últimas descobertas da entomologia que nós, pelo visto, ainda não sabemos.

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