Para muita gente, o Papai Noel este ano chegou mais cedo. No dia 20 de dezembro, um juiz federal dos Estados Unidos declarou inconstitucional o ensino do criacionismo – dissimulado em uma teoria chamada “projeto inteligente” ou “intelligent design” – nas aulas de biologia das escolas de parte do estado da Pensilvânia. A decisão, se não é a primeira nesse sentido, é uma das melhores até o momento a obrigar as escolas dos EUA a pararem de confundir a cabeça das crianças sobre o que é religião e o que é ciência.
Em outubro de 2004, conforme noticiou o Los Angeles Times em sua edição de 21.12.05, os diretores da escola haviam obrigado professores a lerem para os alunos do ensino fundamental uma declaração afirmando que as idéias de Charles Darwin sobre a evolução das espécies são apenas “uma teoria…não um fato”, que “existem lapsos nessa teoria para os quais não há qualquer prova” e, ainda, que “o projeto inteligente é uma explicação para a origem da vida que difere da visão de Darwin”.
Os que apóiam essa teoria costumam argumentar que a vida envolve mecanismos tão complexos e perfeitos, que sua existência não poderia ser atribuída apenas à aleatoriedade da seleção natural. Por isso seria evidente a existência de algum idealizador inteligente, de algum plano elaborado por essa entidade, que pode ou não ser o Deus da Bíblia cristã – alguns, para dissimular o caráter religioso da teoria, chegaram a afirmar que esse criador poderia ser um alienígena ou um biólogo celular que viajaria pelo tempo. É justamente esse o argumento utilizado – o de não ser, necessariamente, Deus esse criador – para tentar conferir um caráter científico ao projeto inteligente.
Pelo menos com o juiz John E. Jones III não funcionou. Após um julgamento que durou 21 dias, nos quais foram ouvidos inúmeros peritos e testemunhas de ambas as partes, ele deu ganho de causa a um grupo de pais que decidiu processar a escola dos filhos, em Dover, Pensilvânia, para que estes aprendessem ciência, ao invés de religião, nas aulas de biologia.
Ao final das três semanas de oitivas de testemunhas, o juiz, que é religioso e considerado conservador, apontou que evidências incontestáveis demonstravam que o “projeto inteligente é uma visão religiosa, um disfarce do criacionismo, não uma teoria científica” e que, portanto, não teria lugar nas aulas de biologia. Ele considerou a atitude dos diretores da escola inconstitucional.
Os defensores do projeto inteligente protestaram, alegando que a decisão do juiz seria um ataque pessoal a cientistas que acreditam em deus, que não será capaz de ficar no caminho da ciência.
Difícil de rebater
A decisão do juiz, no entanto, dificilmente poderá ser reformada nas cortes superiores. Em primeiro lugar, não é a primeira vez que um caso como esse chega aos tribunais dos EUA e a Suprema Corte já tem um posicionamento definido, desde 1987, no sentido de que ensinar o criacionismo como ciência viola a Constituição norte-americana. Em segundo lugar, a decisão, de nada menos que 139 páginas, rebate e desmonta, um a um, cada argumento trazido pelos defensores do “projeto”, “em um julgamento em que ambas as partes trouxeram suas maiores armas”, afirmou na reportagem do L.A. Times, Douglas Laycock, da Faculdade de Direito da Universidade do Texas. Ele acrescentou, ainda, que essa decisão, justamente por suas qualidades e pelas características do processo, deverá exercer grande influência em juízes e advogados de todo o país.
A febre do criacionismo, portanto, sofreu uma grande baixa, mas não foi a primeira – o que, se por um lado é bom, pois mostra que as pessoas estão abrindo os olhos, por outro assusta, já que prova que essa confusão deliberada entre religião e ciência não foi um devaneio de um pequeno grupo de diretores, mas é uma mania nacional dos EUA. Em janeiro, por exemplo, como mostra a reportagem do L.A. Times, um juiz da Geórgia já havia dado uma decisão afirmando ser inconstitucional uma medida adotada pelo sistema escolar de Cobb Country que obrigava a colocação de adesivos pondo em dúvida a teoria de Darwin nos livros didáticos de biologia. No Kansas, o Departamento de Educação modificou a definição de ciência adotada nas escolas do estado para permitir explicações sobrenaturais em sala de aula.
O que parece inacreditável, portanto, não é. Os Estados Unidos, em pleno século XXI, continuam não querendo que suas crianças aprendam uma teoria que é aceita por praticamente todo o mundo, e para a qual existem provas contundentes, por causa de um apego exagerado à religião. Seria de dar gargalhadas, se não fosse trágico. Mas é, não apenas trágico para eles, mas para todo o mundo. Quando a mais poderosa nação do planeta tem uma mentalidade como essa, todos saímos perdendo. Em especial a natureza. Primeiro porque a visão “bíblica” de meio ambiente dificilmente é interpretada em sua vertente conservacionista, que prega o cuidado a todos os seres vivos como se fossem irmãos, criaturas de uma mesma criação. Depois porque para preservar – ou, pelo menos, para aproveitar sem destruir – é preciso, antes de mais nada, conhecer. E esse tipo de mentalidade, com todo o respeito, só faz alimentar a ignorância. É inaceitável.
O distrito escolar de Dover já informou que não vai recorrer da decisão. Os membros que apoiavam o “projeto inteligente” não foram reeleitos esse ano e a atual maioria de seus integrantes é contra a idéia.
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