Colunas

Nunca na história do Egito…

Quer saber o que mudança climática tem a ver com política? Pergunte ao arqueólogo americano Brian Fagan. Ou ao egípcio Ipuwer, que viu isso de perto há quase quatro mil anos.

13 de novembro de 2006 · 18 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

O pior é que a pergunta parecia simples. Qual a primeira medida de política ambiental que o presidente deveria anunciar para o segundo mandato? Coisa rápida, de um minuto, com o gravador rodando do outro lado da linha e a emissora de rádio pronta para botar imediatamente a resposta no ar. O difícil era atender a expectativa de soluções concretas. Não valia dizer que, passada a campanha eleitoral, está na hora de anunciar que o meio ambiente é um problema grave e convém a população se preparar para tempos difíceis, diante das previsões cada vez mais unânimes e soturnas sobre o aquecimento global. Em outras palavras, estrear aqui a moda da “verdade inconveniente”, que Al Gore lançou no cinema.

Nada feito. Ao fim da resposta, a pergunta voltava sempre ao ponto de partida. “Mas qual a medida? Me-Di-Da”. Não adiantou explicar que, por definição, o desmesurado não tem medida. Ele exige uma atitude, como a do primeiro-ministro Winston Churchill prometendo “sangue, suor e lágrimas” aos ingleses na Segunda Guerra Mundial. Mas não é hora de falar em Churchill. Nem caberia num minuto de entrevista uma boa história de governos às voltas com mudanças climáticas, como a contada pelo arqueólogo Brian Fagan, num livro sobre “fomes, enchentes e imperadores” que os tradutores continuem devendo ao Brasil.

Gafanhotos famintos

Ela começa no Egito, há mais ou menos quatro mil anos. Mas é tão atual que ainda nem ficou pronta. Passou séculos enterrada, como um tesouro na tumba, entre as antigas dinastias que ergueram monumentos prodigiosos e os intervalos obscuros, cuja marca arquitetônica é a cicatriz deixada por traves de madeira nas pedras de Luxor, quando os muros do templo se favelizaram. Sinal de que a desordem social tinha rompido todas as represas da administração pública, subindo mais que as águas do Nilo.

Nessas ocasiões, “todo o Alto Egito morria de fome, a tal ponto que as pessoas deram para comer seus próprios filhos”, como se lê no túmulo de Ankhtifi, funcionário graduado da burocracia provincial, que morreu por volta de 2.160 a.C. Suas inscrições funerárias descrevem um Egito “faminto como um gafanhoto”, com “a população indo de norte a sul” à cata do que comer. Não convém tomar esses documentos ao pé do hierógrifo, avisa Fagan. São antes de mais nada acertos de contas com o outro mundo. E nunca se sabe o que um pouco de exagero pode conseguir do lado de lá. No caso, mostrando como Ankhitifi encarou bem a crise. Mas, lidas “nas entrelinhas”, as lápides compõem um mosaico verossímil das secas arrasadoras, “em que os saqueadores andavam por toda a parte”, as taxas da natalidade caíam e os faraós destronados acabavam seus reinados no fundo do rio.

Nada mais lógico, porque eles eram os representantes oficiais do sol na terra. Mortos, viravam estrelas. Vivos, administravam a própria imortalidade, espetando pirâmides no céu e fazendo de conta que, cá embaixo, regulavam, por intercessão divina, as enchentes vitais para agricultura, a vida cotidiana a estabilidade do trono em que pousavam. O papel dos faraós era fingir que mandavam no rio. Mas, na prática, o rio mandava neles, avisa Fagan.

Se o verão era chuvoso na África tropical, o Nilo subia, irrigando o deserto seis mil quilômetros correnteza abaixo e inaugurando, no delta, um próspero ano novo. “Quando ele sobe, a terra fica em júbilo”, dizia um hino egípcio. Senão, “o corte nas oferendas de comida pelos deuses” punha “grandes e pequenos na fila de execução”. O rio virava “um sepulcro”, queixou-se Ipuwer, um escritor que há quase quarto mil anos viu de perto um Período Intermediário.

O que Ipuwer não viu foi a fonte dessa mixórdia cósmica. Nem podia. Ela ficava então muito além do fim do mundo, na costa do Peru. Chama-se El Niño, a alteração na temperatura no Pacífico que perturba as monções no Oceano Índico, enguiçando, segundo Fagan, “as bombas d’água que mantinham o Antigo Egito funcionando”. El Niño só viria a cair na boca do povo depois que o aquecimento do planeta sacudiu os termômetros da imprensa. É um recém-chegado à História antiga. Ipuwer não podia saber disso. Nós podemos. Mas dizem no ministério do Meio Ambiente que o presidente Lula não gosta nem ouvir falar em mudança climática. O que nos põe em dia com as grandes tradições faraônicas.

Leia também

Colunas
13 de dezembro de 2024

A divulgação é o remédio

Na década de 1940, a farmacêutica Roche editou as Coleções Artísticas Roche, 210 prospectos com gravuras e textos de divulgação científica que acompanhavam os informes publicitários da marca

Reportagens
13 de dezembro de 2024

Entrevista: ‘É do interesse da China apoiar os planos ambientais do Brasil’

Brasil pode ampliar a cooperação com a China para impulsionar sustentabilidade na diplomacia global, afirma Maiara Folly, da Plataforma CIPÓ

Salada Verde
13 de dezembro de 2024

Área de infraestrutura quer em janeiro a licença para explodir Pedral do Lourenço 

Indígenas, quilombolas, ribeirinhos, peixes endêmicos e ameaçados de extinção serão afetadas pela obra, ligada à hidrovia exportadora

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.