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Vitória de Pirro na Marambaia

O que está em disputa com os “quilombolas” da ilha da Marambaia não é só uma reserva da Marinha. É o direito de viver sob leis escritas com palavras que todo brasileiro entenda.

28 de março de 2007 · 18 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Palmas para os “quilombolas” que disputam com a Marinha o direito de morar de frente para o mar em mil e quinhentos hectares de reserva, num dos últimos trechos de litoral bem conservado no Rio de Janeiro. O juiz federal Rafaelle Felice Pirro, de Angra dos Reis, deu-lhes um presente de outono no dia 20. Mandou o Incra aviar, com urgência, a receita oficial para a titulação dos lotes que eles habitam na ilha da Marambaia.

Fez mais. A sentença assegura aos moradores o direito de roçar os terrenos para culturas de subsistência. Diz que eles podem manter ou até ampliar suas casas. E estimula sua proliferação. Trata-se, em princípio, de 89 famílias. Mas elas podem virar 150, pois quem foi embora dali está convidado pelo juiz a voltar. Com quase 500 processos para a regularização fundiária de quilombos tramitando mais ou menos em surdina pelo país afora, esse pelo menos é um caso que tem tudo para chamar a atenção dos brasileiros.

Vitória de Pirro

Se tiver pelo menos o efeito provocardiscussão, pode sair pela culatra. Ou, literalmente, ser uma vitória de Pirro, daquelas que vão para a história pelo muito que se perde ao conquistá-las. Primeiro,porque manda para as cortes superiores um debate que os brasileiros estão há muito tempo evitando. E, lá em cima, haveria a chance de rever conceitos que passam sem julgamento, de fininho, nas instâncias políticas e sociais da luta pela terra.

Até o endereço ajuda. A Marambaia fica nas portas de uma das maiorias cidades brasileiras, e não nos confins da Amazônia, longe de todas as esquinas nacionais. Lá, o ponto de vista dos quilombolas tem site próprio – o Dossiê Marambaia. A ilha põe o mesmo governo em lados opostos – o majoritário, que pastoreia as chamadas “populações tradicionais”, e o minoritário, que cozinha em fogo brando as questões dos militares. O procurador regional da República Daniel Sarmento, que propôs a ação, considera supérflua a presença da Marinha na Marambaia, alegando que ela só usa a ilha em manobras e para o “turismo das autoridades”. Leia-se, no caso, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que nas folgas de seus dois mandatos passou dias ali.

Esqueceu-se de que a base serve também para conservar o que as administrações civis, na prática, abandonam, pelo simples apego às rotinas burocráticas numa terra onde elas cedem cada vez mais às conveniência políticas, as Forças Armadas mantém, em suas bases, algumas das melhores reservas naturais do país.

Manguezal protegido

A ilha da Marambaia, que está nas mãos da Marinha há cerca de 36 anos,é um oásis no cenário de degradação que se espalha à sua volta na baía de Sepetiba. E tem, à retaguarda, um exemplo ainda mais eloqüente do que pode fazer a disciplina pela preservação ambiental, ao livrá-la da bagunça generalizada.

Esse exemplo é o Centro Tecnológico do Exército, em Guaratiba. Ele ocupa uma área que,32 anos atrás, estava pronta para virar um novo bairro, com ancoradouros na porta das casas de veraneio e canais retificados nos rios que serpenteiam pelos manguezais, nos fundos da Restinga da Marambaia. Desde 1980, por obra e graça de uma comissão que destrinchou séculos de grilagem naquele filé da Zona Oeste carioca, é patrimônio da União.

Defendê-lo, para o comando do Cetex, é uma batalha sem fim. O centro passa há anos por sérias restrições orçamentárias. O Instituto Militar de Engenharia, que estava de mudança para lá, continuou ancorado na Praia Vermelha. Gorou, na pauta nacional de comércio exterior, a fabricação de material bélico concebido em seus laboratórios. No primeiro governo de Lula, ameaçou-se removê-lo para São Paulo. Por coincidência, isso ocorreu bem na hora em que o túnel da Grota Funda, aproximando-a da cidade, ameaçava a região com uma nova onda de valorização imobiliária. Os escândalos de 2005 suspenderam a mudança. Mas, ultimamente, o Ministério das Cidades promete regularizar em suas bordas a presença de 800 famílias pobres, que se instalaram irregularmente entre a estrada e o manguezal.

Manual de serviço

Durante esse tempo todo, não deixou de vigorar um só dia a ordem de serviço baixada por uma portaria de 1981, que manda patrulhar a área “por terra e pelos canais”. Tudo está devidamente estipulado pelo manual. A composição das equipes de ronda, com um chefe de seção, dois sargentos, um encarrgado da vigilância, um cabo digitador, dois soldados combatentes e, pelo sim, pelo não, um soldado padioleiro. Exige-se o preenchimento diário dos relatórios de inspeção, “lançando todos fatos observados”. Prevê-se a atualização quinzenal do cadastro de moradores, com as fichas das mudanças eventualmente executadas nas casas.

As instruções parecem, pela obviedade, a cartilha do capitão Pantaleão Pantoja para o ofício das visitadoras, no romance de Mario Vargas Llosa. Mas livraram Guaratiba da favelização que vai tomando conta da Zona Oeste. Em torno do Cetex, a população diminui lentamente . Vinte anos atrás, havia 1.994 pessoas. Há dez anos, 1.938. Quando sai alguém, depois de longos impasses judiciais, derruba-se sua casa e a reserva cresce. Resultado: é o lugar onde os alunos de Biologia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro fazem pesquisas de fauna e de flora, nos derradeiros manguezais em bom estado de Guaratiba. “É uma área muito bonita”, confirma o professor Leonardo Neves.

Palavras e leis

Mas, na ilha da Marambaia está em jogo também outro tipo de preservação – a da língua portuguesa. Na luta para transformar a história do Brasil em bandeira de luta das chamadas populações tradicionais, a Associação de Moradores da Comunidade de Remanescentes de Quilombolas da Ilha da Marambaia aderiu a um movimento nacional para mudar o sentido da própria palavra que a define. Quilombo, como diz o procurador Sarmento, passou a ser “o lugar que abriga pessoas provenientes de um passado de escravidão, mas que não são, necessariamente, escravos fugidos”.

É a nova acepção que as campanhas de expansão fundiária resolveram dar ao termo, com a chancela oficial da Fundação Cultural Palmares, que certifica quilombos, para credenciá-los a receber títúlos de propriedade. Ou seja, quilombola, no Brasil, não é mais um escravo que fugiu da senzala, mas uma palavra que escapou do dicionário.

Isso não teria tanta importância, se os moradores da Marambaia estivessem sozinhos nessa revolução semântica. Mas eles fazem parte da vasta confraria das “populações tradicionais”, que em poucos anos se multiplicaram por índios, negros, serigueiros, ribeirinhos, caiçaras, geraizeiros e outras grifes em voga entre os movimentos étnicos. Juntas, elas reivindicam a posse de 25% do território nacional.

Têm, a seu favor, o selo do “desenvolvimento sustentável”, segundo o Ministério do Meio Ambiente. Com ele, ocuparam em 2005 o Plano Nacional de Áreas Protegidas, que definirá as relações do governo com o patrimônio natural de todos os brasileiros até 2020. Viraram a senha para a proliferação de reservas extrativistas e outras unidades de uso direto, num território burocrático onde os parques nacionais e outras formas de proteção integral da natureza entraram em declínio.

Quilombola, como licença poética – ou política – está em alta desde que o governo Lula baixou, com o decreto 4.887, normas para a regulamentação fundiária dos quilombos, como manda a Constituição de 1988. Na Marambaia, o conceito veste uma história mal contada, como provou anos atrás o procurador Luiz Cláudio Pereira Leivas, especialista em defesa do patrimônio imobiliário da União. Foi, por isso, denunciado como racista.

Ali, no século 19, o comendador Joaquim José de Souza Breves desembarcava escravos trazidos da África. Mau lugar para fundar um quilombo, como explicou há cinco anos o capitão Antonio Carlos Fonteles Juaçaba, defendendo a reserva da Marinha. A ilha, disse ele, tem “dimensão reduzida”, “elevações de pequeno porte”. Na época, funcionava como entreposto de escravos, presumivelmente vigiado por um dos grandes cafeicultores e traficantes de africanos do Segundo Reinado. A primeira versão era, portanto, inverossímil.

Guerra de versões

Mas, como a palavra mudou de sentido, quilombola, na Marambaia, tornou-se sinônimo de descendente – logo, herdeiro – dos ex-escravos, a quem o comendador teria doado, de boca, a terra onde os confinava. Mas Souza Breves tinha seis mil escravos em seus cafezais na época da Abolição e, três anos depois, em 1891, sua viúva Maria Isabel de Moraes Breves vendeu a fazenda sem fazer menção, na escritura, à generosidade tardia do marido. Desafiada a tradição oral pelos papéis do inventário, a história da ilha mudou outra vez.

Agora, ela é quilombo porque é, e ponto. Talvez seja tarde para defender a reserva, depois que o juiz abriu-lhe judicialmente as porteiras para a ocupação. Se é assim, que pelo menos o país discuta até a última instância a definição de quilombola, antes que ela se torne o nome genérico das reparações imobiliárias. As leis, por serem o mínimo denominador comum de quem resolve viver em sociedade, são feitas com palavras.Onde as palavras podem significar qualquer coisa que as autoridades desejem, começa o regime do salve-se quem puder.

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