Na estrada para Santa Helena, Aldérico Coltro vai apontando nos campos de soja os morros baixos que, sem grudar os olhos na linha imaginária que ele traça com o queixo, o forasteiro certamente não veria. “Aquilo é Estrela Africana”, ele diz, indicando um capim igual aos outros. “Ele dura dez anos. Depois, perde a força, cede terreno às pragas e os tocos rebrotam. Quando esse pasto cansar, não será replantado. E, aí, a mata vai tomar conta dele, sem ninguém fazer nada para isso”.
Cento e tantos quilômetros atrás, ao pegar o volante da picape, ele aparentava ser o colono que já foi. Vermelhão, calado, com chapéu de palha na cabeça, botina nos pés e a corpulência parruda de quem passou a vida com os músculos ocupados demais para perder tempo em academia de ginástica. Mas foi só abrir a boca para se converter num agrônomo cravejado de diplomas. Agora mesmo, aos 45 anos, depois de se formar em Fitoterapia, voltou à universidade para fazer Arquitetura e Urbanismo.
Noite no campo
Ele chegou a Santa Helena aos quatro anos de idade, no auge da corrida migratória que tirou sua família do Rio Grande do Sul para colonizar, em 1965, a floresta maciça do Oeste paranaense. Os Coltro derrubaram o mato, tiveram a primeira motosserra da vizinhança e formaram um sítio de treze alqueires que, com os cinco filhos crescidos, ficou pequeno para tanta boca. Ele e três irmãos saíram de casa, então, para desbravar 210 alqueires em Machadinho do Oeste, Rondônia.
Cresceu entre queimadas, num tempo em que o Banco do Brasil só abria a carteira de crédito agrícola para quem abrisse o último palmo de sua propriedade. Lembra-se dos meses de estiagem em que, voltando das aulas à noite, via o campo brilhar mais que a cidade. Santa Helena só tinha na época duas ruas iluminadas. E, nas leiras, as fogueiras ardendo eram sem conta.
Coltro credita sua “consciência ambiental” a três safras perdidas, quando voltou de Rondônia para tocar o sítio da família. Com as quebras sucessivas, empregou-se dezoito anos atrás numa frente de trabalho que começava a plantar, nas bordas do reservatório de Itaipu, a mata ciliar que hoje separa o lago do mar de soja. A barreira de árvores nativas cobre, de ponta a ponta, a fronteira ocidental do Paraná.
Daí aos outros programas da empresa foi um pulo. Para amortecer o impacto da agricultura sobre a água da usina, Coltro ajudou os proprietários rurais a trocar o arado pelo plantio direto, os fertilizantes químicos pelo adubo natural, as voçorocas pela curvas de nível e os esgotos carregados de veneno agrícola por rios que correm entre margens arborizadas.
Bolsa-família
Levou o serviço tão a sério, que acabou aplicando na própria terra o que propunha para a terra alheia. O sítio de Santa Helena, ele não se contenta com os 20% de mata que a lei exige, mas raramente se cumpre. Está acrescentando à sua reserva legal outros 30%. No que era pasto atrás de casa já se caminha numa capoeira baixa, mas cerrada. Ele visita os ipês, angicos e canafístulas com o desembaraço de quem acompanha a vida íntima de cada muda. Diante de um arbusto que mal desponta na vegetação rasteira, é capaz de desfiar toda uma história: “Está vendo? Veio para cá com quinze centímetros”. E a descrição vai longe.
Mas Coltro sabe que não é só com esse tipo de trabalho que as coisas entrarão nos eixos. Ao contrário, o que promete mesmo é o desaparecimento de mão-de-obra disposta a capinar, por qualquer preço, as dobras de morro onde as máquinas não chegam. Sem ela, o Brasil deixará enfim de fazero que não deveria. “Toda a região está se arrumando espontaneamente, porque esta serra vai daqui ao Mato Grosso do Sul”, ele afirma.
Sem notar, ele ecoava, 185 anos depois, um projeto de José Bonifácio para arrumar o país com a Independência: abolir a escravidão muito antes que campanhas humanitárias levassem a sério o assunto, para estancar o suprimento inesgotável de braços cativos pelo tráfico africano, que a seu ver permitia aos brasileiros derrubar florestas, em vez de cultivar a terra. Agora é só rezar pela saúde do Bolsa-Família, que vai aos poucos esvaziando o eito.
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