Antes que os pés pousassem no Rio de Janeiro propriamente dito, a cabeça já se sentia em casa. A bordo do táxi, saindo do aeroporto, ouvia-se uma voz feminina repetindo sem parar o chamado da central de atendimento, pedindo um carro para buscar um passageiro “na comunidade do Borel”. Sem resposta. O eufemismo desfila nos dicionários pela ala das palavras como “concordância” e “harmonia”. Mas faltava um motorista, na manhã ensolarada, disposto a subir a favela, mesmo se o carioca deu para chamar de comunidade o que, a rigor, pode ser anti-social. A moça insistiu em vão até o fim da corrida.
Na outra ponta da viagem, ficara a lembrança de outro exemplo de comunidade, o da Conservancy, que cuida do Central Park para o Departamento de Parques Recreação da prefeitura de Nova York. Ela também é o produto de uma reação espontânea da sociedade à falência da administração pública. Surgiu nos anos 70, quando seus jardins afundavam no chão de terra batida, seus lagos se assoreavam, seus monumentos se escondiam sob pichações e era difícil passar por baixo das pontes sem ouvir, na melhor das hipóteses, uma insistente proposta para contribuir com o tráfico de drogas. Nos bosques e lagos ao norte da rua 103, recomendava-se nem pisar. E áreas inteiras estavam sob processo informal de privatização, por adolescentes e marmanjos que, onde bem entendiam, demarcavam seus campos comunitários de beisebol.
Foi quando a Conservancy resolveu, literalmente, botar as mãos naquela mixórdia. Hoje, dois terços do orçamento que mantém o Central Park vem dos 20 milhões de dólares que a turma arrecada anualmente, passando o chapéu entre famílias endinheiradas, empresas, fundações “e usuários como você!”, como proclamam as placas que espalhou nas alamedas. As taxas de adesão começam em 35 dólares por ano e ajudam a manter os 250 funcionários e três mil voluntários que trabalham nessa restauração sem fim.
Milhões de dólares
Desde 1980, a Conservancy investiu nesse programa 350 milhões de dólares. Mas não entra só dinheiro na equação. Com ele vieram pessoas que, de ancinho na mão, varrem folhas secas na relva com cara de quem poderia supervisionar o serviço do alto de suas coberturas na Quinta Avenida. Os banheiros do Central Park, além de sabonete e papel higiênico, que poderiam ser, mas não têm nada de banais em parques públicos, têm quadros na parede, como luxo inesperado. O domingo enche de turistas inclusive o Charles Dana Discovery Center, no Harlem Meer, porque nada em suas alamedas parece fora de alcance, desde que os índices de violência caíram no Central Park a menos de um décimo do que eram vinte anos atrás.
Até aí, nada demais. A cidade inteira anda se derramando para dentro de seus antigos guetos. O jornalista Adam Gopnik, que voltou a morar em Nova York depois de cinco anos como correspondente na revista New Yorker em Paris, declara-se espantado, num livro recente, com a mudança geral do ambiente, “sem a presença deformadora do crime violento”. Ninguém mais se desvia na calçada de tipos mal vestidos. E Nova York lhe deu a impressão de que foi invadida por verdadeiro engarrafamento de carrinhos de bebê. Mas só no Central Park se constata que nem os esquilos abordam mais os transeuntes, pedindo comida. O parque, com a flora recuperada, dá conta de alimentá-los sozinho, dispensando sobras de sanduíches.
Esse, sim, tem tudo para ser um sinal dos tempos. Além dos 25 milhões de seres humanos que percorrem o parque por ano, os bichos se espalham cada vez mais largamente naqueles 3,4 quilômetros quadrados, por sinal um território menor que o do bairro de Copacabana. Ali já se registrou a presença de 275 espécies de aves, inclusive papagaios sulamericanos, que se aclimataram ao frio de Manhattan. Riqueza de fauna costuma ser um privilégio da vida nos trópicos.
A Floresta da Tijuca, mesmo cercada por comunidades como a do Borel, tem mais espécies do que lá. Mas só no Central Park qualquer pessoa pode se apresentar no Henry Luce Observatory, aquela imitação de castelo medieval na vizinhança do Museu de História Natural, pegar emprestada uma mochila, com binóculo, caderno de anotações e guia de campo, para engrossar instantaneamente uma das comunidades que mais proliferam atualmente nos Estados Unidos – a dos observadores de aves.
Contra os políticos
Tudo isso pode ter muito a ver com a “tolerância zero” do ex-prefeito Rudolph Giuliani, mas é obra, antes de mais nada, de uma reação dos novaiorquinos à histórica indiferença dos políticos pelo Central Park. Pena, porque ele é filho legítimo da era das evoluções, que levou à invenção dos museus na França e dos parques nacionais nos Estados Unidos. Ambos foram tesouros dedicados ao povo, numa época em que a política ainda não inventara o populismo.
O Central Park, tal como foi concebido em meados do século 19 pelo paisagista Frederick Law Olmsted e pelo arquiteto Calvert Vaux, era uma legítima instituição democrática. O projeto ficou gravado até nas aberturas de seus muros, onde há portas para os Mineiros, os Acadêmicos e os Estrangeiros, por exemplo. O novo livro de Gopnik chama-se “Through the Children’s Gate”. Ou seja, pela porta das crianças, a que fica na Quinta Avenida, em frente à rua 76.
Construí-lo exigiu o trabalho de 20 mil operários por 16 anos e a remoção de subúrbios pobres de Nova York, como o Seneca Village, um reduto de negros libertos que, hoje, se fosse no Brasil, teria todos os títulos para se autoproclamar um quilombo. Mas o próprio Olmsted, um visionário que também esteve por trás da campanha para instituir os primeiros parques nacionais do mundo, na Califórnia, não agüentou a antipatia dos comissários nomeados pelo partido Democrata. Foi demitido em 1860.
Dali para a frente, a prefeitura oscilou entre as mãos de administradores que abandonavam o Central Park à própria sorte ou o transformavam em parque de diversões, como fez o prefeito Fiorello LaGuardia nos anos 30, acabando em seu interior com um ensaio de favelização depois da quebra da Bolsa de Nova York, ao mesmo tempo que escancarava os jardins a espetáculos e eventos.
Conselho de cidadãos
Nesse vai e vem, o Central Park chegou à década de 1970 como um lugar perigoso e mal freqüentado – mais ou menos como acontece atualmente, no Rio de Janeiro, com o Parque da Cidade, a antiga chácara do industrial Guilherme Guinle que vem sendo rapidamente reprivatizada pela comunidade que a invadiu, nas encostas do bairro da Gávea.
A diferença é que, em Nova York, a população tomou o partido do interesse público e, em plena crise fiscal da prefeitura, o Central Park Task Force firmou com o prefeito Edward Koch um pacto para resolver o problema. Logo depois, o Central Park Conservancy tomou as rédeas do programa de manutenção e reforma. E assim, há três décadas, o Central Park está entregue a um conselho de cidadãos. E vai muito bem, obrigado.
Tornou-se uma prova de que o braço comunitário pode alcançar muito longe, quando não serve só para afagar as favelas de uma cidade com um belo diploma da autocomplacência. Comunidade não é, ao contrário do que a semântica do populismo vai consagrando no Brasil, sinônimo de favela. A não ser pela falta de uma elite para tratar o que é patrimônio coletivo.
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