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Tesouros que o Rio de Janeiro reenterrou

Feito por um desses funcionários públicos que teimam em fazer alguma coisa sob a inércia do governo, um guia das águas minerais do Rio de Janeiro dá o mapa dos tesouros perdidos.

29 de agosto de 2008 · 16 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Há mais ou menos 120 anos, um ex-escravo chamado Domingos Camões descobriu uma fonte de água mineral no subúrbio do Rio de Janeiro. A lei Áurea era então uma novidade na política brasileira. As leis contra a discriminação racial ainda custariam muito a aparecer e pegar. E, muito antes que isso acontecesse, Camões já estaria na história com a alcunha de Beiçola.

Foi ele quem teve, em 1909, a idéia de engarrafar seu achado. Vendia-o de porta em porta, em vasilhames de cinco litros, para uma freguesia que vizinhança ia do Engenho Novo a Cascadura, dividida administrativamente em vários bairros e fundida numa liga genérica de favelas. Camões viveu 104 anos. Mas seu monopólio durou pouco. Em 1914, a fonte já se transferira para as mãos da Águas Santa Cruz Ltda., uma empresa fundada por imigrantes portugueses, cujas instalações se vêem hoje por trás do muro, no pedágio da Linha Amarela. Ficam bem ao pé da favela Serra do Padilha, na Água Santa.

Pé de favela

O lugar mudou muito, apesar de uma Área de Proteção Ambiental e de um Parque Ecológico que, na prática, ainda não saíram do papel. Mas a sede da Santa Cruz está bem conservada. E a fonte continua em forma, segundo o geólogo Lúcio Carramillo Caetano, do Departamento de Recursos Minerais do Rio de Janeiro, que a examinou pela última vez dez anos atrás. “Eu coletei a água ao pé da favela, levei ao laboratório e não havia o menor sinal de contaminação”, diz ele. O terreno, pelo visto, tem sua própria blindagem geológica.

Ele fez, há dois anos, com outros sete autores, todos geólogos e economistas a serviço do governo estadual, o inventário das águas minerais no Rio de Janeiro. A equipe encontrou muita água boa em tubulações enferrujadas, como as de Santo Antônio de Pádua, no noroeste fluminense. Na região de morros descascados, em processo de desertificação, jaz uma fonte de água iodada, com propriedades medicinais, “sem igual no continente”. O proprietário do terreno loteou-o. Sobrou, no meio dos lotes, abandonada, a fábrica de 1936.

Caetano tem na cabeça há 15 anos o mapa completo das minas de águas carbonatadas, radiativas, magnesianas, e seus usos no tratamento de problemas digestivos, circulatórios, infecciosos, ósseos ou tireodianos. Mas os brasileiros, em geral, não acreditam  mais nessas histórias. Água mineral, atualmente, serve para matar a sede. E aí, quanto menos gosto ela tiver, melhor ela desce pela goela do mercado.

A crenologia, que estuda os efeitos terapêuticos dos minerais, sumiu até dos dicionários da língua portuguesa, embora exista no Ministério das Minas e Energia uma Comissão Permanente de Crenologia. As estâncias hidrominerais resistem como lugares de lazer, e não de tratamentos à base de água e dieta, dosados por especialistas em hotéis onde as pessoas iam no século passado para engordar, e não para emagrecer, como fazem agora nos spas – sem  lembrar que a Spa original é uma fonte belga, freqüentada por pacientes com prescrição médica há quase um milênio.

No Brasil, a moda prevalece sempre sobre a tradição. Menos para Caetano, que tenta, há mais de uma década, oficializar um roteiro turístico para manter vivo pelo menos o patrimônio cultural que brotou das fontes históricas no Rio de Janeiro. Governo nenhum, até agora, levou adiante o projeto. Mas ele é um desses funcionários que teriam todos os estímulos do mundo para desertar o serviço público brasileiro. E acha que está se está metido nisso é para fazer alguma coisa.

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