Reportagens

Sobrevivendo nos cacos da mata nordestina

Um macaquinho simpático e um pássaro com olhos de fogo encabeçam campanha pela preservação de parte da Mata Atlântica nordestina e por sua própria sobrevivência

Aldem Bourscheit ·
10 de abril de 2009 · 16 anos atrás

A família do baiano Eliomar Assunção Montenegro (42) migrou de Camaçari para São Sebastião do Passé no início dos anos 1970. Funcionário do Banco do Brasil, carregou consigo o desejo antigo de comprar e proteger um pedacinho que fosse da Floresta Atlântica – aquele conjunto de matas que cobria 15% do país e hoje está aos frangalhos.

Passé tem uns 42 mil habitantes, fica a cerca de sessenta quilômetros de Salvador e, diz Eliomar, exibia boas manchas de florestas quando ele botou os pés por lá. Viu muita madeira tombar nos anos seguintes para alimentar fornos de usinas de açúcar ou ceder espaço a pastagens. Com olhos atentos no que sobrou, conseguiu adquirir 150 hectares praticamente cobertos de matas em 1999. “Sempre pensava em criar alguma coisa, para proteger”, disse.

Chamado de “louco” pelos vizinhos por manter árvores de pé, juntou a papelada do terreno e tentou criar uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) no ano seguinte. Proprietários rurais que implementam esse tipo de área protegida têm descontos em impostos e podem usá-la para atividades como turismo e pesquisa. Desmatamento não. Mas deu com os burros n’água. À época, procurou o Ibama, todavia, foi “extremamente mal assessorado”, conta.

Dez anos depois da compra das terras, seu projeto começa a se tornar realidade. Haja persistência. Recursos para criação da reserva foram aprovados no último edital do Programa de Incentivo às RPPNs da Mata Atlântica. A iniciativa é coordenada por uma parceria entre Conservação Internacional, Fundação SOS Mata Atlântica e The Nature Conservancy. Outras quatro reservas em fazendas de gado também ganharam apoio não-governamental e devem ser concretizadas até o fim do ano, nos municípios de São Sebastião do Passé, Coração do Jacuípe e Catu.

Conforme o biólogo Marcelo Cardoso de Souza, presidente do Instituto Aimurandê, há anos a sensação era de total impotência frente à destruição do ambiente local alimentada pela ignorância coletiva sobre a riqueza da biodiversidade e sua importância para a manutenção das próprias atividades produtivas. A entidade investiu em palestras regionais em prefeituras, praças e igrejas e no contato direto com fazendeiros. O sucesso veio quando alguns deles foram cativados pela idéia de preservar parte de suas áreas.

“Tenho observado uma mudança de atitude nos últimos anos, com a regeneração de várias áreas historicamente destruídas, também graças à fiscalização. O maior fragmento contínuo de matas em Sergipe tem cerca de mil hectares”, disse Souza. O instituto que lidera é uma das entidades envolvidas na empreitada conservacionista.

O dinheiro destinado a essas resrvas pode parecer uma migalha no oceano das necessidades nacionais em termos de conservação, menos de R$ 21 mil, bem como suas áreas somadas, menos de 200 hectares, mas esses pequenos retalhos da mata nordestina abrigam belíssimas espécies como o guigó e o olho-de-fogo-rendado. Juntos, o carismático macaquinho e a ave com olhos avermelhados se tornaram símbolos da luta de entidades e de cidadãos pela manutenção e regeneração da Mata Atlântica entre o recôncavo baiano e o Vale do Rio São Francisco.

“Com essas espécies, endêmicas (que só vivem naquela região) e ameaçadas, vimos um cenário bom para usá-las como bandeira para se tentar salvar um pouco do que sobrou de Mata Atlântica”, comentou o biólogo Sidnei Sampaio dos Santos, coordenador do projeto Olho-de-Fogo-Rendado na Associação Baiana para Conservação dos Recursos Naturais (ABCRN).

Bandeiras da conservação

Localizado em Sergipe, apenas no ano de 1999, já gravemente ameaçado de extinção, o guigó tem parentes em outras regiões, na Mata Atlântica e na Caatinga. Outras populações do primata vem sendo descobertas, principalmente no litoral. Junto, cresce a necessidade de se preservar essas porções florestadas. “A manutenção desses fragmentos também é importante para várias outras espécies de aves e de mamíferos”, avaliou Souza, do Instituto Aimurandê.

O nome científico do guigó, Callicebus coimbrai, é pura homenagem ao primatólogo Adelmar Faria Coimbra-Filho, que percorreu o Nordeste na década de 1970 alertando sobre a destruição da Mata Atlântica e pedindo a proteção de algumas áreas pelo “poder público”. Por fim, não foram protegidas. Provável explicação para a atual pindaíba ecológica da região.

Até 1994, acreditava-se que o olho-de-fogo-rendado (Pyriglena atra) só habitava matas em Santo Amaro (BA). Naquele ano, foi localizado em Catu, por Sidnei dos Santos, da ABCRN, e em Sergipe, por Marcelo Cardoso, do Instituto Aimurandê.

Depois de gastar a sola da bota visitando 160 fragmentos de matas no ano de 2004, ficou claro para Santos que o olho-de-fogo vivia em áreas comuns ao guigó. E logo após ter ajudado a convencer os cinco primeiros proprietários a criar RPPNs, outros decidiram abraçar a causa. “Pelo menos oito proprietários também estão interessados em ter suas reservas. Algumas pessoas nem sabiam que as matas abrigavam espécies ameaçadas e demonstraram sensibilidade para proteger o que está desaparecendo”, contou.

Ainda não se sabe de onde virá o dinheiro para apoiar esses fazendeiros.

Mais proteção, por favor

Conservação no Brasil, como se sabe, é sempre uma corrida contra o tempo. Os fragmentos de Mata Atlântica nos cerca de 30 mil quilômetros quadrados (Km2) onde vivem o guigó, o olho-de-fogo-rendado e inúmeros outros animais no Nordeste, somam menos de 150 Km2. Uma ninharia. Além disso, estudos apontam que existem na natureza menos de dois mil guigós e cerca de 500 indivíduos de seu parente da Caatinga (Callicebus barbarabrownae) – igualmente ameaçado e descoberto nos anos 1990. “Nos últimos cinco anos, vi muitas áreas que visitei desaparecerem para dar espaço ao gado, eucaliptos, fornecer lenha para padarias ou madeira para serrarias. Muito foi perdido”, lamentou Sidnei Sampaio, da ABCRN.

Complicando a situação, a região é disputada por assentamentos da reforma agrária e os locais de ocorrência do primata saltaram de 15 para 40 nos últimos anos, graças a estudos conduzidos por universidades e pelo Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Primatas Brasileiros, do Instituto Chico Mendes (ICMBio), por exemplo.

Puro contraste entre o branco, o negro e o vermelho vivo de um olho-de-fogo-rendado. (Foto: Sidnei Sampaio dos Santos)
Puro contraste entre o branco, o negro e o vermelho vivo de um olho-de-fogo-rendado. (Foto: Sidnei Sampaio dos Santos)

Conforme o diretor do centro, Leandro Jerusalinsky, o governo vem encaminhando de estudos sobre o macaquinho e seus parentes para incentivar a conexão de fragmentos de Mata Atlântica, incentivar atividades produtivas sem desmatamento e para criar áreas protegidas federais abrigando os primatas. As investigações são focadas em conhecer sua distribuição geográfica, características biológicas e requisitos ecológicos do guigó, envolvendo inclusive seis pesquisas em universidades federais. “Queremos atacar a necessidade de conservação em várias frentes. Esses estudos estão gerando o conhecimento básico para podermos estabelecer estratégias adequadas à conservação do guigó e seus habitats. Já temos algumas áreas candidatas (para unidades de conservação). O processo deve ser retomado com a estruturação do ICMBio”, disse.

Uma alternativa seria alterar limites de parques nacionais já consolidados, como o da Chapada Diamantina, para abrigar uma área onde vive o guigó-da-Caatinga.

Atuando desde 2004, o Projeto Guigó é coordenado pelo CPB e apoiado por entidades como Universidade Federal de Sergipe e Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos. Ainda não consolidou nenhuma área protegida federal, mas levou à criação do Refúgio Estadual de Vida Silvestre da Mata do Junco, com cerca de 400 hectares, e de uma RPPN na Fazenda Castelo, no município de Santa Luzia do Itanhy, com cerca de 300 hectares. Ambas em Sergipe e morada de guigós. A espécie também é registrada em vários pontos da Área de Proteção Ambiental (APA) Sul de Sergipe, tipo de unidade de conservação que não oferece praticamente nenhuma proteção a espécies ameaçadas. Mas, no geral, as “ações de conservação ainda são insipientes”, reconhece Jerusalinsky, do ICMBio.

Segundo ele, grupos de guigós têm sido avistados em pedaços de mata inferiores a dez hectares, menores que os 20 hectares médios que sustentam uma família na Mata Atlântica. Conforme o biólogo, isso pode ser uma adaptação ou resistência que, em pouco tempo, não garantirá a sobrevivência da espécie. Os pequenos primatas formam casais estáveis e seus filhotes devem procurar outras matas quando atingem certa idade. “Em fragmentos pequenos, ficam mais expostos à caça, predadores e falta de alimentos. Além disso, o acasalamento entre parentes pode gerar deformações e reduzir sua resistência a doenças ou alterações climáticas”, disse Jerusalinsky.

Daí a importância de se preservar e interligar a maior quantidade possível das parcelas restantes de mata na área onde resistem os guigós e outros animais. Mesmo pequenos, esses fragmentos são fundamentais para sua sobrevivência. “A criação de RPPNs é uma iniciativa complementar muito importante e temos incentivado sua criação”, alegou o diretor do CPB.

Ao menos três das reservas particulares que devem ser reconhecidas até o fim do ano com apoio não-governamental poderão ser interligadas para formar um “corredor” e ajudar na regeneração das matas regionais, beneficiando o guigó, o olho-de-fogo-rendado e outras jóias quase perdidas da natureza brasileira. “Se seguirmos só olhando para a Amazônia, o resto vai virar deserto”, avisou Eliomar Assunção, de São Sebastião do Passé.

Incentivo às RPPNs

O dinheiro que será aplicado nas cinco RPPNs nos municípios baianos de São Sebastião do Passé, Coração do Jacuípe e Catu servirá para levantamento fundiário, mapeamento e burocracia junto aos órgãos ambientais. O trabalho, no entanto, não pára por aí, conforme Marcelo Cardoso, presidente do Instituto Aimurandê. “É interessante que sigamos com a assistência a esses proprietários, partilhando com eles a necessidade da conservação, ajudando a elaborar planos de manejo e assim por diante”, disse.

Atitude indispensável. Até porque muitos proprietários precisam de uma fonte de recursos para manter as reservas que criarão. “Não comprei ela (fazenda) visando lucro, pensei em levar estudantes, fazer educação ambiental. Mas hoje tenho que pensar em alguma coisa para tirar algum recurso financeiro, como plantar um pouco de açaí. Manter aquilo tem custo alto e não estou conseguindo manter do jeito que gostaria”, comentou Eliomar Assunção, baiano de Passé. Sua RPPN cobrirá cerca de 80 dos 150 hectares da fazenda.

O último edital aprovado pela Aliança para a Conservação da Mata Atlântica aplicará R$ 500 mil em 43 projetos para criação de RPPNs em Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Bahia, Paraíba, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, Ceará, Sergipe e Alagoas. Essas parcelas privadas devem ampliar em 3.760 hectares as áreas protegidas e apoiar o manejo de 8.387 hectares na floresta mais ameaçada do País. O dinheiro vem do Banco Bradesco, TNC e de uma parceria entre Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio) e banco alemão KfW.UC:Geral.

Atalhos:
Instituto Aimurandê
Aliança para Conservação da Mata Atlântica

Projeto Guigó/ICMBio
Página da Lista Vermelha da IUCN tratando do Guigó (Callicebus coimbrai)
Capítulo do Livro Vermelho da Fauna Brasileira tratando do Olho-de-fogo-rendado
Estudo sobre populações de Callicebus coimbrai, de Leandro Jerusalinsky, Marcelo Oliveira, Ronaldo Pereira, Valdineide Santana, Paulo César Bastos e Stephen Ferrari, publicado em 2006 no periódico Primate Conservation.

 

  • Aldem Bourscheit

    Jornalista cobrindo há mais de duas décadas temas como Conservação da Natureza, Crimes contra a Vida Selvagem, Ciência, Agron...

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