Até agora não foi resolvido o impasse. Faltam assinaturas, opiniões e, especialmente, decisões. Desde o último dia 22 de julho, quando Paulo Vilca, então vice-ministro de Interculturalidade do Peru, apresentou sua carta de demissão após um sinuoso episódio relacionado com uma resolução vice-ministerial que ele havia assinado 10 dias antes, em 12 de julho. As águas socioambientais no sudeste da Amazônia peruana estão agitadas e o sistema político do país também.
Dois dias depois, renunciou também Luis Peirano, o Ministro de Cultura. No epicentro deste desfecho, pelo menos no caso de Vilca, estava a ampliação das atividades da empresa argentina Pluspetrol no Bloco 88, área delimitada para a exploração de hidrocarbonetos que se sobrepõe à “Reserva Territorial Kugapakori, Nahua, Nanti e outros” (RTKN), lugar de altíssima biodiversidade e vizinho do emblemático Parque Nacional de Manu.
Interesses sobrepostos
Como é que as ondas sísmicas de uma exploração de gás em crescimento chegaram até tão alto nível de poder no Peru? A história tem anos, mas chegou-se a este literal ponto de ruptura através de uma cadeia de fatos recentes que faz com que Vanessa Cueto, vice-presidente da ONG Direito, Ambiente e Recursos Naturais (DAR), fale de “um cenário de pouca claridade e transparência”, a respeito da extensão das atividades extrativas do Estado.
Em 2000, quando governava neste país o polêmico presidente Alberto Fujimori, foi assinado com o Consórcio Camisea (um pool liderado pela argentina Pluspetrol, mas do qual também fazem parte as empresas Repsol-YPF, Sonatrach, Hunt Oil, Techpetrol e SK Energy) o contrato para a pesquisa e exploração do chamado “Bloco 88”. Extensão: 143,5 mil hectares. Localização: norte da região de Cusco, no sudeste da floresta peruana.
Mas acontece que este bloco estava sobre a então denominada “Reserva do Estado a favor dos grupos étnicos Kugapakori, Nahua e Nanti”, criada em 14 de fevereiro de 1990, sobre uma superfície de 443,9 mil hectares. A sobreposição de territórios com diferentes objetivos é habitual no Peru. Como mostra o Atlas “Amazônia sob Pressão”, pelo menos 84% do território da Amazônia peruana está destinado à pesquisa e exploração de petróleo e gás.
Todas as reservas de gás que existem nessa zona são chamadas com o nome genérico de “Camisea”, o que explica por que o problema surgido neste bloco seja parte do “Projeto Camisea”. Shell e Mobil já haviam tentado realiza-lo através de um contrato assinado em 1996 (também com o governo de Fujimori). Em 1998, as duas empresas se retiraram do projeto e, em 1999, foram oferecidas as jazidas a outras empresas ou consórcios.
É ai que aparece o Consórcio Camisea (2000), mas também onde é gerado um enredo amazônico de problemas e contradições. Em 2003, durante o governo de Alejandro Toledo, o próprio Estado peruano eleva a área indígena à categoria de “Reserva Territorial”, mediante um Decreto Supremo cujo artigo 3 determina que está proibido “a concessão de novos direitos que impliquem o aproveitamento de recursos naturais”.
A argumentação empresarial que seguiu consiste em dizer que os direitos adquiridos eram anteriores ao estabelecimento da Reserva, e isso é verdade. Hoje, o Projeto Camisea já trabalha em 6 poços de gás. O problema está, no entanto, quando em 2011 começou o processamento de uma ampliação do “programa de exploração” que eleva esse número para 18 poços.
Reservas, mas de biodiversidade
Nestes ecossistemas, a propósito, não só existem grandes quantidades de gás. Junto com os 8.8 TCF (trilhões de pés cúbicos) de gás que haveria, comprovados, no Bloco 88 – e no vizinho 56, que também está em “produção”. Lá é a terra dos índios Nahua, que moram nas cabeceiras do rio Serjali e estão alarmados pela anunciada expansão do projeto de gás.
Em uma carta enviada ao Ministério de Cultura no principio de agosto, eles anunciam que decidiram “não permitir o trabalho da empresa (Pluspetrol)” no que consideram seu território ancestral. Nela, também lembram que explorações anteriores propagaram a tuberculose na região, sem que o Estado tenha, até agora, chegado com a ajuda suficiente. E, é claro, temem também que sejam afetadas a caça e a pesca, meios de subsistência desta e outras etnias.
Mosaico de Áreas Protegidas
O Smithsonian Institute estima que na região existam 152 espécies de plantas por hectare. Além disso, 600 espécies de invertebrados, 800 de aves, 120 de peixes, 86 de répteis, 69 de mamíferos e 300 de morcegos, roedores e mamíferos pequenos
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Trata-se de uma preocupação legítima, ligada à história e ao meio onde vivem. A Reserva Territorial Kugapakori, Nahua, Nanti e outros (RTKN) está na bacia do Baixo Urubamba, um rio que irriga vastas terras amazônicas, onde abundam flora e fauna, tanto que lá estão juntas e ao mesmo tempo ameaçadas 4 áreas protegidas (além da reserva territorial): o Santuário Nacional de Megantoni, um ecossistema de floresta; o Parque Nacional Otishi; a Reserva Comunitária Machiguenga e o Parque Nacional do Manu.
O Smithsonian Institute estima que na região existam 152 espécies de plantas por hectare. Além disso, 600 espécies de invertebrados, 800 de aves, 120 de peixes, 86 de répteis, 69 de mamíferos e 300 de morcegos, roedores e mamíferos pequenos. Essa riqueza é usada para fins medicinais ou de alimentação pelos Nahua, Matsiguenga, Yine Yaminahua, Asháninka, Nanti, Amahuaca, Nomatsiguenga e pelos Yanesha.
O Bloco 88, também está na zona de amortecimento do Parque Nacional do Manu (a RTKN é vizinha), fundado em 29 de maio de 1973 e reconhecido pela UNESCO como Reserva Mundial da Biosfera. O Manu é considerado um dos lugares com maior biodiversidade em todo o planeta, ainda está quase intocado, e abriga grupos de índios “em isolamento voluntário”, que vivem nessa condição para evadir impactos diversos, como os que causaram seringueiros e madeireiros, e que agora são provocados pelos projetos de exploração de hidrocarbonetos.
Uma situação similar aconteceu em Megantoni e Otishi, onde a presença deste tipo de nativos é recorrente. Neste último parque nacional, calcula-se que há 85 famílias em diversos graus de isolamento e que, de fato, vivem dos recursos da floresta, povoada por variada fauna, que também correrão perigo.
Megantoni, por exemplo, é o habitat de 3 espécies ameaçadas de extinção: o urso-de-óculos, o macaco-aranha e a maracanã-de-cabeça-azul. Nesta área protegida está também o Pongo de Mainique, um lugar que os índios Matsiguenga consideram sagrado. Não há como ignorar toda essa importante riqueza cultural e biológica, que não recebe a devida evidência quando se discute sobre as reservas de gás.
A razão pela qual o Estado peruano parece não querer retroceder na tentativa de ampliar a exploração do Bloco 88 cai na realpolitik. Essa jazida é a que permitiria cumprir uma promessa eleitoral do presidente Ollanta Humala, que consistia em oferecer ao público um botijão de gás que hoje custa 30 soles peruanos (R$ 25) por 12 soles (R$ 10). Até agora, não foi possível porque 60% do gás de Camisea é para exportação, do 1 bilhão de pés cúbicos diários produzidos, 600 milhões vão para fora e 400 milhões ficam no Peru.
O gás escapa
No dia 10 de agosto passado, o ministro de Energia e Minas declarou que a “Pluspetrol buscará mais reservas de gás dentro do mesmo bloco”. No horizonte presumivelmente próximo, está a possibilidade de que o avanço exploratório da empresa consiga o gás extra necessário para que haja “gás para todos”.
Segundo Aurelio Ochoa, ex-presidente de Perupetro, a empresa estatal peruana dedicada a promover contratos de exploração, para isso é preciso que o Consórcio Camisea assine um “adendo”, em que se comprometa que os milhões (ou quase trilhões inclusive) de pés cúbicos de gás que virão da ampliação fiquem no Peru.
Se isso acontecer implicará, simultaneamente, na construção de gasodutos que cheguem até a costa, o que aumentaria o impacto nos delicados ecossistemas do Baixo Urubamba. Por isso Vanessa Cueto, vice-presidente da Direito, Ambiente e Recursos Naturais (DAR), afirma que todo esse labirinto ao redor do Bloco 88 colocou em evidência “uma série de debilidades do Estado para enfrentar este tipo de projetos de grande vulto”. Os mecanismos são inadequados e as autoridades não são competentes.
O que aconteceu com Vilca, o vice-ministro de Interculturalidade, corrobora essa observação de forma dramática. A resolução que ele assinou no dia 12 de julho foi acompanhada de um relatório técnico que questionava o estudo de impacto ambiental feito para a desejada ampliação das operações de exploração. Ele encontrou no documento nada menos que 82 pontos questionáveis, que giravam em torno das atividades econômicas e da saúde dos povos indígenas, tanto os que estão em isolamento voluntário quanto aqueles “em contato inicial”, uma categoria intermediária que implica contatos esporádicos deste grupo com populações já estabelecidas. Em uma das 168 páginas do detalhado relatório, observa-se que esses grupos “realizam migrações ocasionais em busca de recursos, o que os classifica como uma etnia puramente caçadora, coletora e pescadora, sem ter adquirido um caráter sedentário”.
O trânsito aéreo, o desmatamento, a presença de uma força de trabalho estranha ou o uso de perfuradoras e outras máquinas causariam, segundo Vilca e sua equipe, impactos “severos ou críticos”, diz o documento, que afetariam “a saúde e o modo de vida de populações altamente vulneráveis”. No dia 15 de julho, o relatório com as observações detalhadas foi postado no site do Ministério de Cultura.
Misteriosamente, poucas horas depois a resolução e o relatório desapareceram do site. As versões sobre o motivo deste extravio não são claras. Entretanto, poucos dias depois apareceu outra resolução, anunciada por Juan Jiménez, presidente do Conselho de Ministros, onde se explica que a primeira resolução não era válida porque, supostamente, “faltava informação” para que permitisse emitir um relatório. Em 22 de julho, o vice-ministro se demitiu do cargo.
Nos dias seguintes, as observações baixaram a 13 e foi o Ministério de Energia e Minas (MEM) que apareceu com mais força no debate público, através da Direção Geral de Assuntos Ambientais e Energéticos (DGAA). O parecer do Ministério de Cultura submergiu. Jiménez também se converteu em porta-voz do espinhoso tema, o que sugere a importância que o projeto Camisea tem para o Peru.
O Bloco 88, onde existe uma reserva de gás, se sobrepõe sobre a “Reserva Territorial Kugapakori, Nahua, Nanti e outros”. Pela alta biodiversidade e a presença de povos indígenas, poderia ter outros usos. |
Decisões pendentes
No dia 24 de julho, o Ministério de Cultura foi assumido por Diana Álvarez Calderón, que até hoje não se pronunciou sobre o tema, de forma similar ao que fez o presidente Humala em sua mensagem na festa nacional de 28 de julho, embora este seja um tema crucial para suas políticas de governo. Vilca também está em compreensível silêncio.
Em 6 de agosto, em uma carta para a nova ministra – e para os ministros de Ambiente e Energia e Minas, e para o chefe do Serviço Nacional de Áreas Protegidas do Peru (SERNANP), o Defensor Público, Eduardo Vega, pediu que fossem atendidos os questionamentos feitos na resolução e no relatório de Vilca. “As observações mostradas na resolução – diz a carta – concordam com o dever do Estado de proteger os direitos fundamentais à vida, à integridade e à saúde”.
Ele se refere aos índios (em isolamento, em contato inicial ou já em contato) que moram na área do Bloco 88. Eles seriam os primeiros afetados se, como diz a ONG DAR, não for desenvolvida “uma estratégia integral de mitigação dos impactos diretos e indiretos na bacia do Urubamba, que inclua o Bloco 88 e o resto de blocos de hidrocarbonetos da zona”. Uma exploração desordenada, ou exagerada, impactaria as populações humanas e os ecossistemas.
Embora essas imensas reservas de gás sejam necessárias para o país, as vastas reservas de biodiversidade desta área, que dão vida a 9 etnias que a habitam, e que oferecem serviços ambientais valiosos deveriam ser colocados na balança. Para defender esse ponto, criou-se a expressão “governança ambiental”, apresentada ao público pela campanha ‘VenGasAlSur’, um grupo formado pela DAR, o Governo de Cusco e organizações regionais.
Será necessário esperar, no entanto, que os mais altos funcionários, incluindo o próprio presidente, abrace e implemente a ideia de “governança ambiental”. Por enquanto, sobra confusão. Continua um ir e vir de relatórios e resoluções sobre este assunto controverso, enquanto nas florestas do Urubamba o gás por enquanto permanece sob o solo onde vivem povos indígenas e uma exuberante biodiversidade. Enquanto isso, as decisões sobre o Bloco 88 caminham em uma dimensão ainda indefinida das práticas do Estado peruano.
Saiba mais
Situação da Reserva Territorial Kugapakori, Nahua, Nanti e outros e a ampliação do Projeto Camisea
Carta dos índios da comunidade de Serjali sobre a ampliação do Bloco 88
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