A pecuária no Mato Grosso funciona com uma ocupação de menos de um boi por hectare, uma fração do que é possível. Isso incentiva o desmatamento de novas áreas e é resultado da baixa capacitação do produtor e de uma cultura de investir apenas no aumento do rebanho e não na melhoria das pastagens. O projeto Novo Campo criou um modelo de investimento que aumenta até quatro vezes a produtividade, sem risco financeiro para o produtor. Trata-se de um projeto-piloto de pecuária intensiva, que, se replicado em grande escala, será uma das chaves para o desmatamento zero na Amazônia.
Volta por cima
Por oito anos, o pecuarista Francisco Militão assistiu à degradação de suas pastagens que perdiam a capacidade de manter o tamanho de rebanho. A única saída era alugar pasto em outras propriedades para acomodar o seu gado. O negócio ia mal: o número de cabeças de gado estagnou, enquanto a extensão de terra exigida para mantê-lo subia. “Minha propriedade caminhava para se tornar toda degradada, e crescia a despesa com aluguel de outros pastos. Sem dinheiro na mão, ou eu vendia a fazenda ou investia em melhorias”, diz Militão. Foi quando, há quatro anos, entrou para o projeto Novo Campo, e com ele virou o jogo. Acabou com a necessidade de arrendamentos nos vizinhos e colocou a sua fazenda, a São Matheus, de 544 hectares e 800 cabeças, no caminho de quadruplicar a capacidade de gado que comporta. Se todos os pecuaristas seguissem esse exemplo, por tabela, acabaria a pressão da pecuária por novos desmatamentos. E essa pressão é a maior de todas.
A São Matheus fica no município de Alta Floresta, norte do Mato Grosso, porta de entrada da Amazônia e pólo de expansão agropecuária, onde boa parte dos 83 mil habitantes é loira de olhos azuis. São paranaenses, catarinenses ou seus descendentes, gente do sul do Brasil que migrou em busca de terra. Militão, 55, há trinta anos no Mato Grosso, tem avós espanhóis e migrou do Paraná.
A cidade de Alta Floresta completou 40 anos, contabilizados a partir da chegada de Ariosto da Riva, chamado de “o último bandeirante”. Quando aportou por lá, incentivado pelo governo, montou fazenda onde plantava cacau, milho, guaraná, entre outros. De um avião, hoje exibido no centro da cidade, levava os recém-chegados para do alto escolher os lotes de floresta que iriam adquirir. Viveu em uma casa azul situada na rua que agora leva seu nome. Hoje, ela é sede do Instituto Centro e Vida (ICV), ONG há 15 anos ativista no combate ao desmatamento na região.
Alta Floresta, ou “Falta Floresta”, como é carinhosamente apelidada, já perdeu 55% de sua área verde. O estado do Mato Grosso, por sua vez, perdeu 38%, que foram ocupados principalmente pela pecuária.
Morte súbita
Os problemas de sempre aparecem na região: especulação fundiária e expansão ilegal da soja e do gado. Pelo potencial de conflito, o ICV, única ONG atuando no norte, prefere apostar na parceria. Há quatro anos, iniciou o projeto Novo Campo, baseado em uma metodologia desenvolvida pelo Ministério da Agricultura, através da Embrapa Gado de Corte, chamado Boas Práticas Agropecuárias – ou BPA. O Novo Campo almeja revolucionar a prática pecuária na região.
No início, o maior problema era convencer os fazendeiros a adotarem o projeto de uma ONG, vista como velha inimiga de guerra. O truque foi uma fatalidade que fez cruzar o caminho dos fazendeiros e do ICV. Trata-se do fenômeno da morte súbita – degradação repentina e veloz do capim no pasto, tornando-o imprestável para o boi. O problema é comum ao norte do Mato Grosso, onde o regime intenso de chuvas e solos de baixa permeabilidade deixam a espécie de capim braquiária, originária da África, suscetível à infestação por fungos. O efeito foi devastador e pôs em risco o negócio de pecuaristas como Militão. A necessidade, então, falou mais alto e as porteiras começaram a se abrir.
Grandes retornos, técnicas simples
A inovação do BPA é usar um pacote de práticas acessíveis, mas que juntas multiplicam a produtividade. “No Mato Grosso, a média de cabeças de gado por hectare é menor que um boi”, diz Vando Telles, 35, diretor da empresa PECSA (Pecuária Sustentável na Amazônia), braço de consultoria privada criado a partir do Novo Campo. “Em Alta Floresta, uma região boa, essa taxa sobe para 1,1 boi por hectare”, continua. “Na média, as fazendas-piloto vão a 1,9, mas as áreas de alta intensidade alcançam 2,8, um ganho de quatro vezes sobre o resultado típico no Estado”.
Mato Grosso | Alta Floresta | Fazendas-piloto | Ãreas Intensivas | |
Cabeças/hectare | 0,76 | 1,12 | 1,92 | 2,80 |
Arrobas/hectare | 3,36 | 22 | 10,98 | 22,00 |
Lucro/hectare | Até R$ 100 | Até R$ 100 | Até R$ 680 |
Outra medida é a quantidade de arrobas por hectare (uma arroba é o equivalente a 15kg de carcaça de carne). Telles conta que esse indicador é de 3,36 arrobas/hectare na média mato-grossense e atinge 22 arrobas nas áreas intensivas do Novo Campo, um crescimento de 6,5 vezes. O efeito na lucratividade é semelhante. Ele salta de algo entre zero e R$100 por hectare/ano para incríveis 680 reais nas áreas de pecuária intensiva.
Nada depende de tecnologias sofisticadas. Um dos princípios é a adoção de ferramentas de controle de custos, para permitir ao pecuarista saber quanto valem seus bois. “Na prática, muitos dos que estão no campo não têm ideia de como ler números. Não sabem avaliar receitas e despesas “, diz Telles. A capacitação da mão de obra é outro ponto crítico. Para além do cumprimento da legislação trabalhista, o que já é um avanço para uma atividade que ainda figura como adepta do trabalho escravo, a ideia é gerar comprometimento dos funcionários em adotar melhores práticas.
Na sequência começam os trabalhos de reforma da pastagem degradada, que trata o capim como uma plantação tradicional. A diferença é quem colhe: o boi. Entram em cena análise de solo e a preparação do terreno para receber nutrientes e plantio. O cálculo de alimentação suplementar com ração para os animais leva em consideração a época do ano e as características da propriedade e dos animais. Outras práticas são a implantação de sistema interligado de canalização de água para melhor aproveitamento do animal, proteção aos cursos de rio e recuperação de margens degradadas, além de planejamento do território para garantir a rotação das áreas de pastagens.
Gargalo no crédito
Reformar a pastagem, no entanto, não é barato. Sai a uns R$3 mil por hectare, um terço do valor de aquisição da terra, hoje, em torno de R$9 mil o hectare. Para que esse investimento aconteça é preciso vencer a resistência da cultura de negócios do pecuarista e mostrar que vale a pena. Além disso, é crucial o acesso a crédito. Só assim projetos como o Novo Campo podem vingar e se disseminar.
“É fácil falar para um agricultor captar um milhão de reais no banco para lavoura. Mas não adianta falar para o pecuarista pegar empréstimo para comprar calcário para o solo, ou semente de capim. Aquilo não faz parte da vivência dele. O pecuarista só tem um conceito de investimento: gado. É só para comprar gado que ele aceita pedir empréstimo”, diz Telles. O problema é que o boi é abatido, mas a terra fica. Com o solo degradado e o capim morrendo, o gado emagrece, o produtor se descapitaliza, acaba ou cedendo o seu espaço para a agricultura, saindo em busca de outro canto para desmatar, ou abrindo mais floresta ali mesmo onde está.
Segundo Telles, o investimento feito em um projeto Novo Campo se paga entre 3,5 e 4 anos. Para financiá-lo, a PECSA tem uma parceria com o fundo francês Althelia, que disponibilizou 11,5 milhões de euros (R$ 43 milhões) com um intuito de beneficiar 10 mil hectares.
“O produtor entra com a terra e nós com o investimento, assumindo o risco. Não é um modelo de financiamento, é parceria rural”, diz Telles.
O caminho para a grande escala, no entanto, ainda é longo. Em Alta Floresta, a capacidade de abate é de 860 mil cabeças por ano. Já a das fazendas incluídas no projeto Novo Campo não chega nem a 2% do abate do município – cerca de 15 mil cabeças/ano. Só a rede de fast food Mc Donald’s compra do Brasil 1 milhão de cabeças/ano.
Vigilância
Os critérios ambientais para se entrar no projeto Novo Campo são severos. A primeira exigência é comprovar a legalidade das fazendas por onde passam os bois. Em geral, eles nascem em fazendas de cria, que os repassam para fazendas de engorda, as quais, por sua vez, os vendem para o abate. Rastrear o bezerro desde a sua origem é essencial para limpar a cadeia da pecuária do desmatamento ilegal. Isso pois, as fazendas de engorda com frequência crescente precisam comprovar a sua legalidade aos frigoríficos compradores, enquanto o fazendeiro da cria costuma passar incógnito e ainda tem facilidade para desmatar e sair impune.
Existe um pulo do gato para melhorar o monitoramento: o boi só circula entre fazendas com o porte de um documento obrigatório, o Guia de Trânsito Animal, ou GTA, usado para fins de vigilância sanitária, como garantir a vacinação contra a febre aftosa. Hoje, o GTA é a única fonte que revela a origem do animal, mas, como contém dados comerciais, por lei, é um papel sigiloso. Nem o Ministério Público ou os frigoríficos podem requisitá-lo. Mas, se o pecuarista quiser figurar entre os atuais 23 produtores inscritos no Novo Campo, vai precisar convencer seus fornecedores a liberarem estas informações, para garantir que nenhuma fazenda da cadeia desmatou ilegalmente. Além disto, a meta é limpar também o circuito que produz a ração do animal. O programa trabalha hoje somente com fornecedores de milho que estejam em conformidade com as leis ambientais e zerados em desmatamento ilegal.
O objetivo final é controlar de ponta a ponta a cadeia da pecuária e rastrear o animal do nascimento ao abate.
Os brincos de identificação são um reforço tecnológico adotado pelo Novo Campo para atingir esse objetivo. Cada animal recebe o dispositivo que contém um número individual. O uso não é obrigatório no Brasil, mas há mercados externos que o exigem.
Cultura de desmatar
O pecuarista na Amazônia é antes de tudo um tradicionalista, como eles próprios se definem. A atividade tem como características empregar mão-de-obra não qualificada e pouca tecnologia. A paixão pelo ofício e altas doses de teimosia figuram também no rol de peculiaridades. “O pecuarista geralmente absorveu o sistema antigo dos pais e avós”, conta Francisco Militão. “Se estava degradando a natureza, comprava novas áreas ou derrubava mais floresta”.
Militão fala de um tempo em que tudo era permitido. Tempo de ocupação desenfreada da Amazônia, quando o produtor era incentivado pelo próprio governo a derrubar florestas a qualquer custo, até em margens de rios. Trinta anos depois, recuperar as matas que protegem os cursos d’água é lei. Militão cumpre à risca.
Ganhos da porteira para dentro
“Dá para colocar todo o rebanho do Mato Grosso em metade da área. Não precisaria de desmatamento nenhum por pelo menos uns 30 anos. Até lá, novas tecnologias terão surgido”, diz Vando Telles.
As projeções do Imea (Instituto Mato-grossense de Economia Agropecuária) confirmam: a previsão até 2022 para o Mato Grosso é de redução de 20% da área de pastagem para abrigar um rebanho que se estabilizará em 29 milhões de cabeças. O segredo estará em aumentos de produtividade como o que propicia o Novo Campo. Já para a agricultura o cenário é reverso: por já empregar altos níveis de tecnologia, a expectativa é de que a sua expansão se dê em terras hoje usadas para gado. Telles garante que é possível reduzir área de pastagem para cedê-las à agricultura.
A principal crítica do lado de quem está pensando em investir é de que o mercado não vê valor agregado em carne temperada a boas práticas. “Eu invisto em toda esta qualidade, mas chego no frigorífico e ele paga o mesmo preço da carne das vacas velhas do Seu João”, reclamam os fazendeiros. Vando retruca: “o grande poder do produtor é da sua porteira para dentro. Sobre o mercado ele não tem domínio, mas sobre a sua fazenda, sim”. As exigências dos grandes compradores também crescem. Fruto de pressões do Greenpeace, desde 2013, a rede de supermercados Walmart criou um sistema próprio de monitoramento da carne oriunda da Amazônia. A rede garante que seus clientes não encontrarão carne de procedência desconhecida em suas gôndolas e promete desenvolver parcerias com fornecedores que busquem garantir a qualidade dos produtos.
“Nós somos apaixonados por pecuária. Crescemos vendo nossos pais formar a propriedade. Fomos criados com este olhar rural”, diz Francisco Militão. Ele se orgulha dos resultados que obteve e mostra detalhes em sua fazenda pensados para melhorar a sustentabilidade da produção. Cercou as áreas próximas a cursos de água e criou uma rede para captação de água, distribuída em bebedouros artificiais — “áreas de lazer” dos bois –, mantidos limpos com o uso de peixes. Fez reflorestamento com espécies nativas, cujo sombreado é abrigo dos animais contra o sol quente.
Tudo o que fez, considera investimento, não gasto. Orgulha-se em especial de ter mudado a própria mentalidade: “Agora sinto que estou trabalhando de forma empresarial. Sei qual a previsão do meu gado, quantos animais vou matar e quando. Há um planejamento financeiro. Isso trouxe de novo a esperança para a nossa atividade”.
Se todo pecuarista seguir o caminho de Militão, o problema do desmatamento no Mato Grosso — e na Amazônia — pode estar com os dias contados. Mas Militão ainda representa uma pequena fração do esforço necessário.
Especial Sob a Pata do Boi
Esta reportagem faz parte do projeto que busca melhorar a eficiência dos acordos da carne e da soja, realizado em parceria com o Imazon e apoio da Gordon and Betty Moore Foundation
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É óbvio que a concentração de gado em sistemas intensivos vai trazer outros problemas ambientais e não vai frear o desmatamento, pois mais pessoas vão querer criar gado por se uma atividade lucrativa e não área aberta pra todos, o problema é a criação de gado.