Em matéria de transgênicos, o governo Lula nem tenta enganar. Está do lado dos produtores que usam essas sementes e nem quer ouvir os argumentos de produtores e consumidores que querem ter o direito de não tê-las em seus campos ou suas mesas. Tudo indica que adotará uma fórmula totalmente inócua de identificação dos produtos, que diz apenas que os grãos “podem conter transgênicos”. Essa rotulação iguala todos os grãos e sementes. Confunde os consumidores e deixa indefesos os produtores que querem proteger suas culturas naturais da invasão dos organismos geneticamente modificados. É o que os produtores de transgênicos querem e mais ninguém. O presidente Lula parece ter ficado com a opinião de seu ministro da Agricultura e, mais uma vez, desconsiderou as ponderações da ministra Marina Silva.
Mas não é uma surpresa. O governo brasileiro já havia adotado essa posição ao final da II Conferência das Partes Signatárias do Protocolo de Cartagena sobre a Biossegurança, em junho do ano passado, em Montréal, no Canadá. Apoiou a posição da Nova Zelândia, de bloqueio à iniciativa de rotulação explícita de transgênicos para transporte internacional. Defendeu que a rotulação internacional seja exatamente nesses termos: rótulos dizendo “pode conter” e não “contém”. Alinhou-se, desta forma, ao chamado “Grupo de Miami”, de exportadores de grãos, que defendem a liberação da produção agrícola de regras ambientais mais estritas. O grupo é composto por países como EUA, Austrália, Nova Zelândia, Canadá, Argentina, Chile e Uruguai. Como era necessário o apoio unânime dos presentes, a posição brasileira fortaleceu o veto à idéia. Buscar o consenso para uma nova política de rotulação era um dos pontos centrais da agenda da reunião, que terminou fracassando por causa desse bloqueio que contou com o apoio brasileiro. Mas, deve-se registrar que EUA, Austrália, Nova Zelândia e Canadá têm regimes de regulação ambiental muito mais rigorosos e muito mais eficazes do que o Brasil e bons sistemas de monitoramento de incidentes, inclusive com OGMs. Na MOP3, da qual só participam os países signatários, o Brasil é o único dos países líderes na produção de grãos, naturais e transgênicos. Por isso seu voto é decisivo.
O Ministério do Meio ambiente, na parte de notícias de seu site, ao comentar a MOP 2, de Montréal, diz que “tem pautado sua atuação, tanto nos fóruns nacionais quanto internacionais, pela defesa do Princípio da Precaução e da soberania do País na tomada de decisões”. Não é verdade. Essa atitude de bloqueio à rotulação explícita, nega o princípio da precaução. Significa, exatamente, a recusa em aplicá-lo, por parte dos produtores e de seus países.
Já é um sinal ruim o atraso na decisão. A reunião da MOP 3 abre sem que o Brasil tenha anunciado sua posição. Os argumentos contrário à rotulação específica são improcedentes. Alegam que aumentará o custo. E porque só eles deveriam ser preservados desses custos? E a grande quantidade de produtos farmacêuticos e alimentares que são obrigados a fazer rotulação específica? Os testes aumentam de forma irrisória o custo por tonelada. A maior perda é a vantagem do “transporte solidário”, que mistura grãos naturais e grãos transgênicos, para evidente prejuízo dos primeiros. A resistência dos produtores tem outra explicação: a rejeição dos transgênicos pela maioria absoluta dos consumidores, no mundo todo e, inclusive, no Brasil. Essa rejeição decorre da falta de credibilidade dos produtores e de sua incapacidade de dar garantias efetivas de que se produtos são seguros.
Se o presidente tomar essa decisão será um atraso. E um retrocesso, mesmo quando comparado a decisões passadas de companheiros seus do PT. Quando prefeito de Porto Alegre, Tarso Genro sancionou lei municipal exigindo a rotulação de todo produto transgênico comercializado no município. Quando ainda era secretário do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, Tarso Genro apoiou a decisão do governador Roberto Requião, do Paraná, de proibir os transgênicos e declarou que era a favor do princípio da precaução. Chegou a declarar, no programa “Aqui entre Nós”, da TV Educativa, que “no limite do desconhecido, é preciso que haja normas de precaução pois, ao contrário, isso pode causar um dano maior para a humanidade.” Lula ficará do lado dos setores mais radicais do agronegócio, contrários a qualquer interferência na produção, distribuição e comercialização de OGMs.
A identificação não impede a produção, distribuição ou comercialização de transgênicos. Apenas dá aos consumidores o direito de saber o que estão comprando. A própria oposição dos produtores a qualquer informação precisa, mostra que eles não têm segurança a respeito de seus produtos. Se a questão fosse apenas de imagem, podiam enfrentá-la com campanhas de esclarecimento, dados de pesquisa, monitoramento sistemático e análise de incidentes. O fato é que a ciência não sabe dizer se os transgênicos são ou não nocivos à saúde. Além disso, já há evidências de que têm efeitos colaterais de outra natureza como, por exemplo, aumentar o uso de pesticidas, ao longo dos anos de produção.
O Greenpeace acaba de divulgar uma pesquisa da doutora Sue Mayer, da Genewatch, uma ONG do Reino Unido que monitora desenvolvimentos em tecnologia genética, sobre incidentes com transgênicos. O relatório lista uma série de casos de contaminação de culturas por sementes transgênicas – por falta de regras de identificação e segregação – plantações ilegais e efeitos colaterais adversos do uso de sementes transgênicas, nos últimos dez anos. São 113 casos oficialmente registrados, em 39 países, inclusive o Brasil, de 1996 a 2005. Devem ser muito mais, mas o relatório só analisou os que tinham registro oficial.
O problema básico é que existe, ainda, muita ignorância sobre os riscos no uso de transgênicos. É uma tecnologia muito nova, que ainda não teve tempo suficiente de uso para se poder avaliar seus efeitos no médio e longo prazo. Mas essa sucessão de incidentes e as evidências de que as sementes, por serem mais resistentes, têm alta capacidade de contaminação e colonização de outras culturas, é prova eloqüente da necessidade de mais cautela. A regulação, estabelecendo regras mais claras de plantio, identificação e rotulação, segregação, transporte, distribuição e comercialização de transgênicos é uma alternativa à proibição ou restrições territoriais, quantitativas ou de uso. Ela defende os produtores que não desejam usar sementes transgênicas em sua produção, por razões ambientais ou comerciais, ou ambas e protege os consumidores que não queiram consumir esse tipo de produto. É uma regra democrática e pluralista, que não impede o uso pelos que desejam usar, mas garante a segurança dos que não desejam usar.
Se o Brasil repetir o Canadá, a partir da semana que vem, quando hospedar a III Conferência das Partes Signatárias do Protocolo de Cartagena sobre a Biossegurança, em Curitiba, será um vexame. Como anfitrião trabalharia ativamente para sabotar o avanço das regras mundiais de biossegurança e levar mais essa reunião ao fracasso.
De novo, nenhuma surpresa: fez assim nas duas últimas Conferências das Partes da Convenção do Clima (COP) e Encontro das Partes Signatárias do Protocolo de Kyoto (MOP), como comentei na época.
A diplomacia do presidente Lula tem duas faces: a turística e a política. A turística é um sucesso de mídia e de opinião pública. A política tem sido atrasada em muitas áreas, mas principalmente na política ambiental. O Brasil está, hoje, entre os agentes internacionais que impedem o desenvolvimento das instituições de governança ambiental global.
Leia também
Congresso aprova marco da eólica offshore com incentivo ao carvão
Câmara ressuscitou “jabutis” da privatização da Eletrobras e assegurou a contratação, até 2050, de termelétricas movidas a gás e carvão. Governo estuda veto →
Paul Watson, ativista contra a caça de baleias, deixa prisão na Groenlândia
O canadense, fundador de ONGs como Greenpeace e Sea Shepherd, estava preso há 5 meses por acusações do Japão relacionadas a embate com navio baleeiro, em 2010 →
ESEC Murici, em AL, fica mais de 2 meses sem fiscal após afastamento de chefe da unidade
Analista foi afastado da fiscalização por ação que culminou na demolição de terreiro em parque na Bahia; ele alega não ter percebido uso religioso do local e não ter tido direito à defesa →